sexta-feira, 27 de março de 2009

0923) Ver filme na moviola (2.3.2006)



Nos meus tempos de cineclubista, quando nos deparávamos com um filme muito difícil, ou muito bom, dizíamos: “Eita, isso aí é filme pra se ver na moviola!” A moviola é a mesa de montagem para os filmes feitos em celulóide. Uma mesa cheia de engrenagens de tração para acelerar, retardar, ver de trás pra frente, imobilizar uma imagem, etc. Ver um filme na moviola significava ter o poder de examinar o filme em seus menores detalhes, do jeito que nos conviesse. Uma vez passei uma tarde inteira analisando uma cena curta de O Encouraçado Potemkin, em que um marinheiro, revoltado com a má qualidade da comida do navio, ergue um prato no ar e o espatifa contra a quina da mesa. Um primor de montagem, onze planos diferentes em menos de dez segundos. Mas só se percebe na moviola.

Na moviola, deixamos de ser o espectador passivo, que só faz receber e assimilar. Assumimos uma posição ativa, de quem encosta o filme na parede, vasculha seus bolsos, checa suas credenciais, pergunta suas intenções. Podemos entrar na intimidade do filme, reconstituir o pensamento criativo do diretor. Quando fazemos isto com um filme que julgávamos conhecer bem é que percebemos o quanto a primeira visão de um filme é superficial, quanta coisa deixamos de perceber, quanta coisa nos enganou. (Tenho uma admiração enorme pela falecida Pauline Kael, que escrevia críticas notáveis sem jamais rever o filme)

Quando inventaram o videocassete e agora o DVD, ficou muito mais fácil ver um filme assim. O DVD é nossa moviolazinha doméstica, que nos permite brincar com as imagens, analisar uma cena, dissecar um trecho de edição, acelerar ou retardar o fluxo para sentir melhor o ritmo daquele trecho. Mal termino de ver um filme já estou com vontade de voltar para o começo para vê-lo “como se deve”.

E aí percebo que a moviola, o VHS e o DVD não fazem mais do que proporcionar a nós, os escravos do tempo cinematográfico, daquele fluxo de imagens que nunca pára e que nos arrasta consigo, a experiência de imensa liberdade e de imenso poder que tem o leitor de um livro. Este, sim, determina ele próprio o tempo de duração e os vetores de direção de sua experiência estética. Vai para onde quer, pára quando lhe dá na telha, salta para adiante, volta, compara com algo que tinha visto atrás, relê a mesma passagem cinco ou dez vezes até extrair-lhe todo o sumo. O leitor é e sempre foi o dono do livro, capaz de desmontar o texto escrito com seus dedos e seus olhos. Só muito recentemente o espectador de cinema (do cinema doméstico, no caso, diante do DVD-player) passou a conhecer esse grau de autoridade, de autonomia, de poder. Como é bom poder ver e rever um filme de Welles ou de Truffaut com a mesma liberdade de movimentos com que lemos um poema longo de Jorge de Lima, um conto de Cortázar, um romance de Ellery Queen. Vê-lo em profundidade, conhecê-lo em raio-X, até a medula de seu esqueleto.

0922) A liberdade de expressão (1.3.2006)


(Cox & Forkum)

Salman Rushdie, autor dos Versículos Satânicos, sabia do que estava falando quando afirmou: “Sem a liberdade de ofender alguém, não existe liberdade de expressão”. Ele se referia, gato-escaldadamente, à perseguição que sofreu durante anos por parte de muçulmanos radicais, por ter feito um personagem de seu livro dizer e pensar coisas desrespeitosas sobre o Profeta Maomé. O assunto volta aos jornais hoje devido aos protestos dos muçulmanos contra as charges publicadas em jornais da Dinamarca, onde Maomé é tratado com zombaria.

Não sei se o caro leitor já se deparou com um paradoxo científico que volta e meia aparece nas revistas. Coloca-se a seguinte questão: “Se criarmos um líquido que seja o Solvente Perfeito, ou seja, capaz de dissolver qualquer substância, e o colocarmos num Recipiente Invulnerável, que não pode ser afetado nem pelo ácido mais forte... o que acontece?” O problema não admite resposta, porque tem uma contradição interna. Estamos postulando a existência de duas coisas (Solvente Perfeito, Recipiente Invulnerável) que, por definição, se excluem mutuamente. No Universo em que exista uma delas, a outra, obviamente, não pode existir.

Algo de parecido se dá com dois valores abstratos de nossa sociedade: a Liberdade de Expressão e o Respeito Mútuo. O aumento excessivo de um deles será sempre uma ameaça de diminuição do outro (toquei no assunto em “Liberdade versus Segurança”, 17.12.2005). Onde exista total liberdade de expressão, não pode existir respeito; e onde o Respeito seja absoluto, a liberdade de expressão cai a zero. A convivência democrática exige jogo-de-cintura para alcançar um ponto intermediário, onde ambos os índices sejam satisfatórios.

Sou jornalista mas nunca me iludi com essa conversa de “a liberdade de expressão é intocável”. Bobagem. Por um lado, o que escrevemos ou falamos depende da aprovação de quem nos emprega e nos paga, e trabalhar dentro destes limites não é vergonhoso para ninguém. Por outro lado, nossa liberdade de expressão, até como simples cidadãos, é limitada pelo nosso bom-senso, nossa educação, nossa civilidade. Creio que nenhum de nós diz tudo que pensa em qualquer circunstância. Freqüentemente somos obrigados a engolir sapos porque custa menos engolir um sapo do que provocar uma briga generalizada num restaurante. Ninguém é totalmente livre para dizer o que pensa.

O caso dos cartunistas dinamarqueses me parece um caso típico de provocação deliberada. Vi na TV que o jornal onde saíram os cartuns é ligado a um partido político que combate a emigração estrangeira para a Dinamarca. O crescimento da direita xenófoba na Europa (vide fatos recentes na Holanda, França, etc.) favorece esse tipo de provocação, que não tem a menor semelhança com o episódio de Salman Rushdie, a não ser pelo objeto da ofensa (Maomé). Os cartuns dinamarqueses são instrumento do preconceito étnico, não da liberdade de imprensa.

0921) U-2 (28.2.2006)



Dois dias depois do show dos Rolling Stones no Rio, vi pela TV a transmissão do show do U-2 em São Paulo. São duas gerações sucessivas do rock, se considerarmos que quando o U-2 lançou seu primeiro álbum em 1980 os Stones já deviam estar na terceira hemodiálise. Musicalmente, vê-se a que estrato geológico cada banda pertence. Os Stones fazem um rock básico, quadrado, mesmo assimilando aqui-acolá influências do soul, da música latina, do gospel. No fundo, contudo, é a formatação harmônica, melódica e rítmica do blues rural, da música country eletrificada, do rhythm-and-blues urbano.

O U-2 é outra coisa. Para descobrir a presença dos elementos acima nas canções do U-2 é preciso raspar sua superfície sonora com o mesmo cuidado com que um arqueólogo raspa a areia de uma ossada. O U-2 ouviu os Stones ao mesmo tempo em que ouvia o heavy-metal britânico, as enormes massas sonoras do rock progressivo, e depois a inesgotável paleta de timbres e texturas da música eletrônica em todas as suas subdivisões. Embora a banda também seja conhecida por suas posições políticas, por seu livre trânsito (ou pelo menos de Bono) entre chefes de Estado, e por uma permanente ligação com suas origens irlandesas, o que mais a caracteriza não é o conteúdo, e sim a sonoridade.

Num show do U-2 todo mundo enxerga Bono, mas, assim como num show dos Stones todo mundo só vê Mick Jagger e eu não tiro os olhos de Keith Richards, quando o U-2 está na tela o centro geométrico de tudo aquilo, pra mim, está na guitarra de The Edge. Não vi muitos guitarristas capazes de tirar tão sons diferentes ao longo de uma mesma canção, sem interferir com o cantor, e sem parecer estar se matando de trabalhar. The Edge faz arpejos (se se pode arpejar com palheta) minuciosos, percussões abafadas nos bordões, “lapadas” violentas quando é preciso, mas seu ataque mais característico são as rápidas e fortes palhetadas, subindo e descendo, que, com a super-amplificação e as distorções, criam uma massa de harmônicos que brotam de toda a extensão do espectro sonoro. A voz de Bono surge cercada pelo que parece uma orquestra de guitarras em círculo à sua volta.

Essa sonoridade é a assinatura da banda, fazendo-nos fechar os olhos e pensar que não são quatro caras, são o dobro. Bono é um bom letrista, embora nada excepcional, tem uma voz extensa, presença carismática; o baixo e a bateria são de uma solidez rara. No show de São Paulo vimos uma tela de 12 mil pixels pixels gigantescos (vide “Os 360 graus do rock”, 20.11.2005) que revela a fascinação high-tech da banda. No show, Bono usa um lenço com a palavra “CoeXisT” (reproduzida em português no telão), onde o C é o crescente muçulmano, o X a estrela-de-Davi judaica e o T a cruz cristã. A mensagem de coexistência pacífica pode servir também para a coexistência musical entre o punk rock das origens da banda, a sofisticação do progressivo, o peso do heavy-metal, o infinito menu da eletrônica.

0920) “Trigal com Corvos” (26.2.2006)




W. J. Solha já produziu romances, contos, textos teatrais, libretos de ópera; é artista plástico, ator, o escambau. 

Seu primeiro livro de poesia é este Trigal com Corvos (Ed. Palimage, em Viseu, Portugal), que para mim, pelo menos, é um abençoado retorno à poesia com palavras, com frases, com idéias, com substância mental. 

A poesia de Solha é uma cachoeira de idéias, borbotões de pensamentos sobre arte, vida e mundo, e usa como instrumento o verso longo e flexível de Walt Whitman e Fernando Pessoa “Álvaro de Campos”.

Solha faz uma poesia cuja atitude diante do mundo mistura perplexidade, desespero pela própria pequenez, deslumbramento, prazer infantil na descoberta de pequenas harmonias e belezas. 

“O mais longe que pude ir foi aqui mesmo”, diz o poeta, sentindo “essa impaciência feroz de quem martela um parafuso”. 

O livro poderia intitular-se História Universal da Perplexidade e do Deslumbramento. Solha registra pequenas sincronicidades e coincidências na História, na Natureza, na Arte, na Linguagem, fazendo o papel daqueles rastreadores sertanejos que percorrem a caatinga em busca de sinais que indiquem: “foi por aqui que a caça passou”. 

A caça que o poeta rastreia é o Sentido, o Significado, aquele instante-centelha fugaz em que vislumbramos uma rima entre o mundo das Idéias e o mundo das Coisas.

Existe uma convenção tácita na poesia lírica de que cabe aos poetas procurar as manifestações da Beleza no mundo. Tradicionalmente essas manifestações eram encontradas na Mulher e na Natureza. 

Talvez tenha sido Álvaro de Campos (em nosso idioma) o primeiro a descobri-la (e a defini-la como manifestação legítima de Beleza) nos produtos do engenho humano: as máquinas, as cidades, o fervilhar cosmopolita das multidões. 

O catálogo aleatório de pequenas descobertas pessoais feitas por Solha o convencem (e ao leitor) de que existe uma inteligência coletiva na nossa espécie, a que chamamos Cultura, um projeto ou desígnio cujo plano geral é inacessível a nós, indivíduos; um projeto de criação de um sentido universal das coisas, que deixa pistas nos lugares menos prováveis.

A busca poética de Solha é uma busca do intelecto. É curioso como esta palavra sofre, hoje em dia, uma verdadeira Inquisição, numa cultura-de-massas onde queima-se um incenso incessante no altar das Emoções. 

A poesia de Solha me reafirma algo que sempre percebi intuitivamente: que o intelecto é nossa verdadeira interface com o mundo, e a emoção um mero resultado de quando fazemos contato com ele. É através da mente que percebemos e compreendemos tudo – e que nos emocionamos, quando descobrimos pegadas deixadas pela Verdade ou pela Beleza. 

Trigal com Corvos é o diário-de-bordo de uma jornada mental que nos produz a mais refinada e a menos egoísta das sensações: a de perceber que as belezas do mundo existem independentemente de nós, mas que o mundo, que as produz, não as percebe – e nós, sim.






0919) C. S. Lewis e o mistério do tempo (25.2.2006)





(C. S. Lewis)

C. S. Lewis, autor das Crônicas de Narnia era um persuasivo defensor da fé cristã, com argumentos que com freqüência lembram os de G. K. Chesterton, outro convertido na idade adulta. Numa carta a seu amigo Sheldon Vanauken, em 1950, Lewis escreveu: 

“Por que os peixes não se queixam de o mar ser úmido? E, caso o fizessem, isso não seria um forte indício de que eles não tinham sido, ou não seriam para sempre, criaturas aquáticas? Vejam como nós nos surpreendemos o tempo inteiro com a passagem do tempo. ‘Como o tempo voa! Olhem só, Harry já ficou adulto, e se casou! Parece incrível!’ Meu Deus, porque agimos assim? Talvez, sem dúvida, pelo fato de que existe em nós alguma coisa que não pertence ao domínio do Tempo”.

Essa coisa a que Lewis se refere é sem dúvida a alma imortal, postulada pela fé. Sendo do domínio espíritual, nossa alma talvez partilhe da ubiqüidade cronológica da Divindade, da sua capacidade de ver a Eternidade inteira à sua frente, sem fluir, sem passar. 

Nosso corpo está sujeito aos processos de crescimento, amadurecimento, velhice, morte e dissolução; mas a alma está fora do tempo, intacta, inatingível.

O mesmo argumento, no entanto, pode ser usado para distinguir o mundo do Corpo e o mundo da Mente (em vez do mundo da Alma). Não discutirei aqui a existência da Alma, grave problema filosófico que não foi solucionado até hoje e não serei eu a fazê-lo num artigo de três mil toques. Mas acho que nosso conceito de Tempo é contraditório e cheio de paradoxos porque experimentamos a cada instante duas faixas de Tempo totalmente diversas: o tempo do corpo, e o tempo da mente.

O tempo do corpo é irremediavelmente cronológico (perdoem a redundância). Flui numa única direção, do passado para o futuro, e está submetido aos mesmos processos físicos e químicos que governam os animais, as plantas, a matéria inorgânica, os planetas. O tempo do corpo é uma seta que aponta e se alonga sempre na mesma direção.

O tempo da mente, no entanto, como a memória RAM dos computadores, uma memória de acesso aleatório. Numa fração de segundo podemos reconstituir imagens de um passado remoto ou conjurar imagens irrealistas e fantásticas de algo não-existente e nunca-antes-imaginado. 

É como se o nosso corpo fosse um transatlântico singrando o oceano em linha reta, mas dentro dele a nossa mente fosse um indivíduo que vai de um convés a outro, corre para a popa e depois para a proa, desce aos porões, sobe ao mastro mais alto... 

Ou seja: mesmo presa ao trajeto retilíneo do corpo que a abriga, a mente parece desfrutar de uma aparente liberdade em relação ao tempo, movendo-se, de acordo com sua vontade, para a frente, para trás ou para os lados. 

Se isto é um mero processo eletroquímico que ocorre nas células ou se é sinal da presença de uma alma, eu não sei. Perguntem a C. S. Lewis, pois a esta altura ele já viu a resposta.




0917) Sineiro, viúva, microscopista (23.2.2006)




(Umberto D, de Vittorio de Sicca)

Uma das teorias poéticas mais úteis já defendidas é a de Fernando Pessoa, exposta por ele em numerosos textos, na qual ele afirma que toda poesia lírica é na verdade poesia dramática. 

Ou seja: o Eu poético que está dizendo aquelas coisas no poema não é necessariamente (e para ele, só o é raramente) o Eu civil do poeta Fulano, o tal que está rabiscando aquelas mal-traçadas linhas. É o Eu de um personagem imaginário que está sentindo e dizendo aquelas coisas, um personagem do qual às vezes nem o próprio poeta se dá conta, mas que surgiu em sua mente com a finalidade de sentir aquilo, dizer aquilo.

O poeta vira, então, uma espécie de dramaturgo de monólogos, escrevendo poemas onde esse Eu intuitivamente imaginado fala de si. Este esforço de imaginação não é muito diverso da sintonia mental que um ficcionista ou dramaturgo impõe a si próprio, compondo um tipo humano com tais e tais características, colocando-se “na sua pele” e tentando dizer o que ele diria caso existisse.

Carlos Drummond de Andrade nunca usou heterônimos, mas existe em muitos dos seus poemas essa dramatização de sentimentos alheios. Poemas que são na verdade pequenos contos ou peças, pequenas ficções onde o poeta se entrega por completo a seus personagens, e o Eu que fala obviamente não é ele próprio: “Caso do Vestido”, “Um boi vê os homens”, “Canção da moça-fantasma de Belo Horizonte”... Há até pseudo-teatralizações explícitas, como “Noite na Repartição”. 

Ele se sente na obrigação de cantar as vidas alheias, representada numa tríade de personagens sem nome e sem rosto: 

Quando os corpos passarem 
eu ficarei sozinho 
desfiando a recordação 
do sineiro, da viúva e do microscopista 
que habitavam a barraca 
e não foram encontrados 
ao amanhecer.

É prematuro atribuir ao cidadão Drummond idéias, emoções ou traços supostamente autobiográficos que são enunciados por esses “Eus líricos” de seus poemas. Drummond atribuiu a si próprio um “sentimento do mundo” que para mim não se limita à percepção do que acontece “lá fora”, mas também envolve uma introjeção de corações e mentes alheias, e até da vida inanimada: 

Serei médico, faca de pão, remédio, toalha, 
serei bonde, barco, loja de calçados, igreja, enxovia, 
serei as coisas mais ordinárias e humanas, e também as excepcionais: 
tudo depende da hora 
e de certa inclinação feérica, 
viva em mim qual um inseto. 
(“Idade madura”).

O poeta se vê como alguém que fornece alma, voz, vida, energia àqueles que disto precisam: 

Toda a água que possuía 
irrigava jardins particulares 
de atletas retirados, freiras surdas, funcionários demitidos. 

Estas duas tríades de personagens obscuros e humildes demarcam uma área importante na poesia de Drummond, uma área onde a voz individual e lírica do poeta se torna a voz coletiva e dramática de quem está contando uma história não apenas sua, mas de outras pessoas.












0918) Canções de Estrada (24.2.2006)




(Easy Rider)

A Canção de Estrada é diferente da Canção de Migrante, na qual predomina a saudade da terra natal e a descoberta da nova cidade. Já a Canção de Estrada glorifica a estrada em si, o seu simbolismo de liberdade e disponibilidade. 

A estrada nos dá uma sensação juvenil de ser livre e ter toda a vida pela frente, e ao mesmo tempo a promessa de maturidade e experiência (vejam como é revelador este sinônimo: “Fulano tem muita estrada”).

Quem viveu na estrada, como Luiz Gonzaga, sabe registrar sua beleza, como em “Estrada do Canindé” (“Ai ai, que bom que é, uma estrada e uma cabocla, com a gente andando a pé...”) ou sua dureza, como em “Légua Tirana” (“Ô que estrada mais comprida, ô que légua tão tirana...”). 

E que beleza de “flash” da vida rural é o “Menino de Braçanã” de Luiz Vieira, recuperado há alguns anos por Zizi Possi: “Vou-me embora, vou sem medo nessa escuridão / quem anda com Deus não tem medo de assombração / e eu ando com Jesus Cristo no meu coração”.

A geração da Contracultura celebrou a estrada dos motoqueiros, com Dave Dudley (“Seis dias na estrada, mas esta noite eu vou dormir em casa”), com Bruce Springsteen (“A rodovia está atravancada de heróis em pedaços, num canto-do-cisne feito de motores”), Steppenwolf (“Gosto de fumaça e raios, o trovão do metal pesado, apostar corrida com o vento e a sensação que me envolve”). 

Era a viagem kamikaze de uma geração motorizada, que viu na estrada um outro tipo de droga, um outro tipo de vertigem, êxtase e auto-extinção. 

Bob Dylan, que também teve lá seus problemas como moto e asfalto, preferiu celebrar o lado filosófico (“Quantas estradas um homem deve trilhar, até poder ser considerado um homem?”).

Na MPB canta-se mais a estrada de modo abstrato, romântico, como em “Travessia”, “Nada Será Como Antes” ou “Fé Cega, Faca Amolada” do repertório de Milton Nascimento, ou na “Andança” interpretada por Beth Carvalho. 

Como exceção, “Mano a Mano”, ao que eu saiba a única parceria entre Chico Buarque e João Bosco, mostra a estrada dos caminhoneiros (“Eu e meu irmão / era porreta / carreta parelha a carreta / dançando na reta / meu irmão...”), os quais acabam brigando por causa de uma mulher que é descrita com nomes de cidades: “Mas ela era nova / viçosa, matriz / era diamantina / era imperatriz / era só uma menina / de três corações...” 

São numerosas as canções que celebram a estrada do ponto de vista do automóvel (“As curvas da estrada de Santos”, de Roberto, é o exemplo mais típico), mas, curiosamente, o caminhoneiro tem sido tema de poucas canções, se pensarmos na sua importância, até mesmo como circulador de informação musical no Brasil. Temos “O Caminhoneiro” de Roberto Carlos, “Ventania” de Vandré e mais algumas. 

Para um país tão vasto, com tanta circulação de gente e veículos, com tantas correntes migratórias, a Canção de Estrada continua sendo um gênero sub-utilizado na MPB, apesar das belas canções que já inspirou.