quarta-feira, 27 de abril de 2016

4108) Quem inventa o sonho? (27.4.2016)





Há um texto famoso de Robert Louis Stevenson sobre os sonhos, que incluí na minha edição/tradução de O estranho caso do dr. Jekyll e Mr. Hyde (São Paulo: Hedra, 2011). “Um capítulo sobre o sonho” é um longo depoimento autobiográfico em que Stevenson fala sobre a importância dos sonhos em seu processo criativo, com riqueza de exemplos, contando episódios tão bizarros que só podem mesmo ser verdade, porque um ficcionista imaginativo como ele não teria a menor necessidade de mentir.

A certa altura, Stevenson narra uma complicada história de amor e de crime que inventou dormindo, um romance inteiro, cheio de pessoas e de reviravoltas de enredo, com uma revelação final espantosa, quando uma das personagens, numa frase curta, revela toda a verdade escondida até então. O autor diz que acordou estupefato, e confessa a sua perplexidade diante disto. Se a mente que sonhava (raciocina ele) é a dele próprio, como é possível essa cisão psíquica onde uma parte da mente consegue esconder da outra parte um segredo? A mente que conta e a mente que presencia a história não são uma só? Então, como é possível o segredo? Como é possível a espantosa surpresa final diante de algo que nós mesmos estávamos pensando?

A mente que sonha e a mente que escreve literatura são a mesma? Acho que cada pessoa é diferente. Muitos dos meus contos e poemas se originaram de sonhos, que memorizei com cuidado ao acordar e depois, levantando da cama, anotei sem perda de tempo. Mas raramente o sonho vem com a história completa. Em geral ele fornece um sentimento, uma ambientação, um fragmento meio “nonsense” de um episódio que depois eu procuro reconstituir e ampliar, sem tentativa de explicação. Charles Dickens comentou, numa carta de 1843:

“A propósito de sonhos, não é uma coisa estranha que autores de ficção nunca sonhem com suas próprias criações, reconhecendo, mesmo adormecidos, que elas não têm existência concreta? Eu nunca sonhei com meus personagens, e acho que isso é tão impossível que sou capaz de apostar que Walter Scott nunca sonhou com os dele, por mais reais que sejam.”

Lewis Carroll registrou em 1899 um sonho no qual ia visitar uma família de amigos, e durante a visita ficava sabendo que uma das filhas, Polly, estava se apresentando numa peça num teatro local. Nesse momento, Carroll avistava a própria Polly sentada nas proximidades, só que era Polly quando tinha nove ou dez anos apenas. Ele perguntava à mãe se poderia levar Polly ao teatro consigo, e ela autorizava. Diz ele:

“Eu estava claramente consciente do fato (mesmo sem a menor surpresa diante daquela incongruência) de que eu estava levando a Polly criança para assistir uma apresentação da Polly adulta! Ambas as imagens, Polly como criança, e Polly como mulher, são, imagino, igualmente nítidas na minha memória normal, da vigília; e ao que parece durante o sonho eu dei um jeito de dar a cada uma delas uma individualidade independente.”

Como se sabe que Carroll tinha fascinação por garotinhas (uma espécie de pedofilia platônica, pois não há registro de qualquer ação dele neste sentido, o que condiz com seu temperamento tímido e cortês), dá para perceber que em sua memória a mulher crescida não tinha conseguido eliminar do seu mundo imaginário a menina.

Edmond de Goncourt (escritor, criador de um famoso prêmio literário francês juntamente com seu irmão Jules) conta que pouco tempo depois da morte do irmão, a quem era muito unido, sonhou que caminhava ao lado dele pelas ruas de Paris, e encontrava um grupo de amigos, entre os quais Téophile Gauthier. Todos vinham ao seu encontro e lhe apresentavam as condolências, e ele as aceitava, roído pela dúvida, porque avistava a poucos metros de distância o irmão vivo, esperando para continuarem a caminhada, e também tinha bem clara na memória os anúncios fúnebres que vira pregados por toda parte.

É um sonho que lembra o que Gabriel Garcia Márquez conta no prólogo dos seus Doze Contos Peregrinos (1992). Quando morava em Barcelona, o escritor sonhou que estava acompanhando o próprio enterro, a pé, num grupo de amigos em clima de festa, embora todos trajassem luto. Amigos do mundo inteiro tinham comparecido à cerimônia, e Gabo sentia-se feliz por ver todos juntos, depois de tanto tempo. Quando tudo chegava ao fim todos começavam a ir embora e ele tentava acompanhá-los, mas alguém lhe dizia: “Você é o único que não pode ir embora.” E ele conclui:

“Só então compreendi que morrer é não estar nunca mais com os amigos”.