terça-feira, 3 de março de 2015

3752) Como começar um livro (4.3.2015)


(Flannery O'Connor)


Nos blogs e saites com listas dos “melhores começos de livros”, “melhores finais”, etc., as listas me dão boas dicas para livros que nunca li e nunca lerei.  

O que falta neles, às vezes, é teoria.  Tudo bem escolher algumas linhas do romance de Fulano e dizer que é uma das grandes aberturas-de-romance de todos os tempos.  Mas, por quê?  

Nem todo sujeito que faz essas listas se dá o trabalho de justificar suas escolhas.  Em geral não são críticos – estes, sim, têm o trauma de precisar justificar até o-que-não-é-preciso.  São simples fãs, e as verdades estéticas de um fã são “auto-evidentes”.

Vou escolher um trecho colhido num desses saites, de uma autora que nunca li, um livro que não conheço. 

São as linhas iniciais do romance The Violent Bear It Away (1960), de Flannery O’Connor, uma escritora do sul dos EUA, muito respeitada, mas não me lembro de ter lido sequer um conto dela. Sou um leitor indiferente, portanto.  Como começa o livro? 

“Fazia apenas metade de um dia que o tio de Francis Marion Tarwater estava morto, quando o menino ficou bêbado demais para terminar de cavar sua cova e um negro chamado Buford Munson, que tinha vindo encher um garrafão, teve que acabar o serviço e arrastar o corpo desde a mesa do café-da-manhã, onde ele ainda estava sentado, e sepultá-lo de um jeito decente e cristão, com o sinal do Salvador plantado na cabeça do túmulo, e terra bastante por cima para impedir que os cães o puxassem para fora.”

Não tenho a menor idéia do que é esse romance (só vou olhar depois), mas olhe só que começo cheio de informação!  

Tem esse menino (que idade terá ele?), a quem cabe a tarefa de enterrar sozinho o tio (imagino que F. M. Tarwater seja o próprio garoto) e não pôde terminar porque ficou bêbado. (Talvez isso corresponda a uma tradição como a tradição nordestina de que trabalhadores que limpam fossa sanitária bebem cachaça durante o trabalho, o que sempre deu origens a episódios pitorescos e escatológicos.)  

Aparece um negro, com aqueles nomes pomposos e vazios de tantos personagens negros do Sul dos EUA, que parecem nome de governador.  

Veio em busca de bebida (um garrafão, “a jug”) – talvez fosse um local de “moonshiners”, fabricantes clandestinos de bebidas.  

Teve que ir buscar o corpo, que, num detalhe digno de Buñuel, continua sentado à mesa onde morreu.  

E os detalhes finais mostram uma mistura de espiritualidade (“the sign of its Saviour at the head of the grave”) e de brutalismo (“enough dirt on top to keep the dogs from digging it up”).  

O leitor sente firmeza em quem escreve. Não precisa mais do que isso para dar vontade de ler o resto.





3751) O Sr. Spock (3.3.2015)



(Spock, por Ellygator)


Nunca assisti Jornada nas Estrelas (“Star Trek”) na época em que deveria ter assistido.  Se o tivesse feito, a série estaria protegida pelos mesmos habeas-corpus afetivos que beneficiam Quinta Dimensão, Além da Imaginação e outras.  Só comecei a ler a seu respeito quando em 1981 pus a mãos na Encyclopedia of Science Fiction (Nicholls/Clute) e fiquei sabendo do seu imenso sucesso.  Vi alguns episódios ao acaso, vi 2 ou 3 longas-metragens feitos depois, mas, não, não posso dizer que sou um fã de Star Trek.  Olho suas qualidades (são várias), anoto suas limitações (idem), avalio tudo com olhos de crítico, com um olhar de não-fã, um olhar distanciado, brechtiano.  O olhar (só agora me ocorre isto) do Sr. Spock.

Spock (cujo ator, Leonard Nimoy, faleceu dias atrás aos 83 anos) era um Vulcano, um humano pertence a uma raça que, pelo que entendo, não exterioriza suas emoções.  A frieza de Spock, sua postura imperturbável, tinham algo do não-sorriso permanente de Buster Keaton, do cerebralismo autoconfiante de Sherlock Holmes, do pragmatismo calmo de tantos robôs na história da FC.  A discussão a seu respeito ia de “ele é incapaz de emoções” até “ele se emociona mas aprendeu a não demonstrar”.

A indústria cultural se baseia no estímulo às emoções.  Excluam as emoções e escutem o desmoronamento do cinema, da TV, da música, da literatura popular.  Se esse comércio todo tivesse que se basear na lógica, na frieza e no raciocínio que Spock representava, não passaria de uma barraca de fundo de quintal.  O mundo é emoção, e Spock se destacava por contraste. Ele é frio e lógico. Consegue analisar problemas, em situações de emergência, como se fosse algo meramente formal, algo de que não dependesse a sobrevivência da Enterprise e a dele próprio.  Na política, talvez procure uma posição em que a brasa possa aquecer por igual as sardinhas disponíveis.

Uma parte dos admiradores de Spock são todos aqueles nerds que, como eu, já pagaram algum mico por não saberem controlar as emoções. Já meteram os pés pelas mãos, quebraram a cara, produziram episódios de grosseria ou descontrole; e ficaram depois, com a cara enterrada no travesseiro, jurando a si mesmos que da próxima vez não se deixariam manipular daquela forma.  E uma parte vem das fãs femininas, para quem a imagem de um homem totalmente apolíneo é O Grande Desafio de suas vidas. Será que ele é assim, indiferente, apenas “por que ainda não achou a garota certa”?  Toda trekkie adolescente já alimentou essa fantasia de ser um dia “a mulher que fez o Sr. Spock balbuciar de paixão, confessar seu amor, dizer que está morrendo de saudade”.