sexta-feira, 26 de outubro de 2018

4398) "Espere agora pelo ano passado" (26.10.2018)




Acaba de sair pela Suma de Letras, o selo de literatura fantástica da Companhia das Letras, minha tradução para um romance pouco comentado de Philip K. Dick, Now Wait For Last Year (1966), aqui com o título de Espere Agora Pelo Ano Passado.

Devo ter em casa uma meia dúzia ou mais de livros de P. K. Dick que tenho há anos e ainda não li. Por que? De certa forma para que o autor continue “lançando um livro novo de vez em quando”, como se estivesse vivo. Lançando pra mim, pelo menos.

Este era um que eu já tinha dado uma olhada de leve, e só. Li apenas na hora de traduzir. O enredo tem umas circunvoluções que a gente vê bem que foram meio improvisadas sem saber o que ia resultar mais na frente; mas foi mais ou menos assim que Dick escreveu tanto os seus melhores quantos os seus piores livros.

O que importa é a sacação que creio ter sido do editor David Hartwell quando lhe perguntaram sobre o livro mais adequado para ler a obra de PKD: “Qualquer um, porque as preocupações centrais dele, e as artimanhas dele como autor, estão presente em todos os seus livros. Cada livro dele pode ser a porta de entrada para o resto, porque ele está em todos por inteiro”.

É uma grande verdade, e Espere Agora Pelo Ano Passado é um livro movimentado e neurótico: tem viagens no tempo, tem supermedicina futurista, tem político messiânico, tem cultura de simulacros, tem tem alienígenas cordiais, tem drogas, tem misticismo californiano, tem universos contíguos, tem a fúria surda de casais em crise...

Enredo: Num futuro próximo, a Terra está envolvida numa guerra entre duas civilizações alienígenas, e acaba tomando o partido dos starmen, os habitantes de Lillistar, de aparência humana, contra os reegs, uma civilização sofisticada de enormes coleópteros ou coisa parecida que têm carapaça quitinosa, numerosas pernas.

A capacidade fabulatória de Philip K. Dick depende muito de um leitor que embarque com prazer nas suas manobras de improviso, como certamente era cada guinada de um romance assim. Dick escrevia muito nessa época, a poder de pílulas, montado na máquina-de-escrever mecânica, dia e noite. 

Aceitamos o ser interplanetário que discute filosofia como aceitamos (eu pelo menos) um cachorro falante num romance de Jonathan Carroll ou de Neil Gaiman. Quando a história nos arrasta, pouco importa a verossimilhança, porque há um certo tipo de leitor para quem o que vale é o salto. E essa discussão filosófica ali é mais interessante do que a descrição de quem a vocaliza. Do que as máscaras que o autor está manipulando na sua barraca de mamulengo diante de nós.

Sobre tradução: é sempre bom a gente levar em consideração, quando é possível, o método de trabalho do escritor, quando é preciso traduzi-lo. Porque um indivíduo de escritura lentíssima e concentrada não pode ser traduzido a toque de caixa. Por outro lado, quem escrevia a toque de caixa não precisa ser traduzido de maneira lentíssima e concentrada. Um texto não é apenas uma sucessão de frases, é uma jornada por diferentes pulsações. Há um tempo, um ritmo narrativo interno que a gente precisa acompanhar.  Não é só glossário.

Enredo: Nessa Terra futurista médicos são mantidos sempre à mão por bilionários e por chefes de Estado, trocando-lhes (numa cirurgia rápida e limpa) pulmão, coração, o escambau, sempre que necessário, várias vezes por ano. O fio condutor do livro é o dr. Eric Sweetscent, que ocupa um cargo assim. Mas a Terra está esgotada pelo conflito interplanetário, e o governante da Terra, como chefe de uma espécie de ONU todopoderosa do futuro, é Gino Molinari, um sujeito carismático, habilíssimo, enormemente popular, hipocondríaco, indisciplinável. E serão dele as decisões cruciais que determinarão o resultado da guerra.

Dick oscila muito, de livro para livro, em matéria de bom acabamento da história. A Suma de Letras publicou há pouco (e já comentei no Mundo Fantasmo) minha tradução de Time Out Of Joint (1959), O Tempo Desconjuntado. É um livro mais bem escrito do que este: o texto flui como num fio longamente tecido. Mistérios, pistas, revelações, tudo vai surgindo na hora certa. E de repente, o livro se interrompe, quando dava a impressão de que ia se abrir para algo muito mais vasto.

Espere Agora... é ao mesmo tempo mais complexo e mais tosco do que O Tempo Desconjuntado. A toda hora tem uma quebra. Quando a guerra entre os três sistemas se encarniça, surgem drogas capazes de produzir uma ruptura para sempre no conceito de realidade. Como nesta cena, em que algumas pessoas testam juntas, na sala de um apartamento, uma droga desconhecida:

– Meus mamilos não estão observando você nem ninguém – disse Kathy Sweetscent para Hastings.

– Não estou ouvindo vocês – disse Chris em pânico. – Respondam!

– Estamos aqui! – disse Simon Ild, e deu uma risadinha abafada.

– Por favor – disse Chris, e sua voz tinha agora um tom de súplica. – Digam alguma coisa. Vocês são apenas sombras. É algo sem vida. Nada além de coisas mortas. E está somente começando. Estou com medo de como isso está acontecendo, e ainda continua.

Marm Hastings pôs a mão no ombro de Chris Plout.

A mão passou através de Plout.

– Que bom, isso valeu os cinquenta dólares – disse Kathy Sweetscent em voz baixa, sem qualquer traço de divertimento. Ele caminhou na direção de Chris, aproximando-se cada vez mais.

– Não faça isso – disse Hastings a ela, com voz gentil.

– Sim, eu vou fazer – disse ela. E caminhou através de Chris Plout. Mas não reapareceu do outro lado. Desapareceu por completo, e somente Plout continuou visível, ainda implorando para que alguém lhe respondesse, ainda agitando as mãos no ar em busca de companheiros que não era mais capaz de sentir.

Isolamento, pensou Bruce Himmel consigo mesmo. Cada um de nós foi separado dos demais. Terrível. Mas... vai passar. Não vai?

Naquele instante ele não sabia. E para ele ainda não tinha nem começado.


-oOo-

A força dos pesadelos fenomenológicos do autor de O Homem do Castelo Alto e de Blade Runner é a simplicidade de meios narrativos. PKD não precisa de muitos floreios estilísticos para cortar até o osso do real. Ele não precisava escrever literariamente bem como um John Crowley, um Gene Wolfe, um Theodore Sturgeon.

Ele não tem as belas frases retóricas, cheias de sonoridade. Em vez disso, tem imagens inesperadas, vívidas. Inconcebíveis e ao mesmo tempo fáceis de imaginar, porque ele vestia suas discussões filosóficas em aventuras não menos absurdas do que as da pulp fiction que lia na juventude.

Como acontece no clássico Camp Concentration (1968) de Thomas M. Disch, as pessoas em Espere Agora Pelo Ano Passado usam uma droga com a qual adquirem uma percepção mais multiplex da realidade, mas ao preço da vida drasticamente encurtada. O uso da droga é mortal, e viciante desde a primeira dose. E um dos suspenses da história são as peripécias do protagonista para salvar sua vida e a da esposa, usando a droga para dar saltos meio imprevisíveis para o futuro e para o passado.

O grande personagem do livro, no entanto, é o tal governante da Terra, Gino Molinari, um personagem que no próprio livro é comparado com Abraão Lincoln, Benito Mussolini e Jesus Cristo. É o hipocondríaco líder: derruído, cansado de guerra, parecendo capaz de atrair para si os sofrimentos de todos os que o cercam. E ao mesmo tempo enérgico, despudorado, sátiro, veemente, idealista, maquinador, assustadoramente empático, um animal político nato.

Esse personagem deu origem a um interessante problema de tradução. Ao longo do livro, as pessoas de sua entourage o chamam “The Mole”, um apelido que é também a redução do seu nome de família.

Dos variados sentidos de “Mole” em inglês, achei que dois têm a ver com o personagem: espião (espião infiltrado, aguardando a hora de agir), porque ele age alternadamente a favor da humanidade e a favor dos aliados poderosos, sendo acusado de jogar a Terra numa guerra inútil; e molhe, que é uma espécie de dique ou represa. E que significa proteção, algo interposto barrando o perigo. Que é exatamente o papel de Molinari na história.

O problema é que a palavra “molhe”, apesar de correta, não é corrente, não é tão usada aqui (acho) como talvez seja em Portugal. Corri atrás da palavra e fiquei sabendo que um molhe é, sim, uma espécie de muro longo de contenção contra as águas. Uma ponta do molhe se situa em terra, e a outra no mar: esses dois detalhes o definem. Porque um quebra-mar é uma linha de muro com as duas pontas no mar, e um dique tem suas duas pontas fincadas em terra.

Então, onde no original havia algo tipo “He said: let´s talk to the Mole”, virou: “Ele disse: vamos falar com o Dique”. Eu considero que a palavra dique é mais rapidamente visualizada por um leitor comum, e isso compensa o fato do termo ser tecnicamente inexato  (porque não é um dique, é um molhe). E a função simbólica é a mesma.

Mas a palavra me serve também para outro sentido invocado: the mole, o espião.  Dique não é a mesma coisa (mas nada é nunca a mesma coisa, então bora) mas lembra Dick, o autor. Que não era um espião – mas sua vaibe é toda de agente-duplo intergaláctico transdimensional. Então encaixa.