Acaba de sair pela Suma de Letras, o selo de literatura fantástica da Companhia das Letras, minha tradução para um romance pouco comentado de Philip K. Dick, Now Wait For Last Year (1966), aqui com o título de Espere Agora Pelo Ano Passado.
Devo ter em casa uma meia dúzia ou mais de livros de P.
K. Dick que tenho há anos e ainda não li. Por que? De certa forma para que o
autor continue “lançando um livro novo de vez em quando”, como se estivesse
vivo. Lançando pra mim, pelo menos.
Este era um que eu já tinha dado uma olhada de leve, e
só. Li apenas na hora de traduzir. O enredo tem umas circunvoluções que a gente
vê bem que foram meio improvisadas sem saber o que ia resultar mais na frente;
mas foi mais ou menos assim que Dick escreveu tanto os seus melhores quantos os
seus piores livros.
O que importa é a sacação que creio ter sido do editor
David Hartwell quando lhe perguntaram sobre o livro mais adequado para ler a
obra de PKD: “Qualquer um, porque as preocupações centrais dele, e as
artimanhas dele como autor, estão presente em todos os seus livros. Cada livro
dele pode ser a porta de entrada para o resto, porque ele está em todos por
inteiro”.
É uma grande verdade, e Espere Agora Pelo Ano Passado é um livro movimentado e neurótico:
tem viagens no tempo, tem supermedicina futurista, tem político messiânico, tem
cultura de simulacros, tem tem alienígenas cordiais, tem drogas, tem misticismo
californiano, tem universos contíguos, tem a fúria surda de casais em crise...
Enredo: Num futuro próximo, a Terra está envolvida numa
guerra entre duas civilizações alienígenas, e acaba tomando o partido dos starmen, os habitantes de Lillistar, de
aparência humana, contra os reegs,
uma civilização sofisticada de enormes coleópteros ou coisa parecida que têm
carapaça quitinosa, numerosas pernas.
A capacidade fabulatória de Philip K. Dick depende muito
de um leitor que embarque com prazer nas suas manobras de improviso, como
certamente era cada guinada de um romance assim. Dick escrevia muito nessa
época, a poder de pílulas, montado na máquina-de-escrever mecânica, dia e
noite.
Aceitamos o ser interplanetário que discute filosofia como
aceitamos (eu pelo menos) um cachorro falante num romance de Jonathan Carroll
ou de Neil Gaiman. Quando a história nos arrasta, pouco importa a
verossimilhança, porque há um certo tipo de leitor para quem o que vale é o
salto. E essa discussão filosófica ali é mais interessante do que a descrição
de quem a vocaliza. Do que as máscaras que o autor está manipulando na sua
barraca de mamulengo diante de nós.
Sobre tradução: é sempre bom a gente levar em
consideração, quando é possível, o método de trabalho do escritor, quando é
preciso traduzi-lo. Porque um indivíduo de escritura lentíssima e concentrada
não pode ser traduzido a toque de caixa. Por outro lado, quem escrevia a toque
de caixa não precisa ser traduzido de maneira lentíssima e concentrada. Um texto não é apenas uma sucessão de frases,
é uma jornada por diferentes pulsações. Há um tempo, um ritmo narrativo interno
que a gente precisa acompanhar. Não é só
glossário.
Enredo: Nessa Terra futurista médicos são mantidos sempre
à mão por bilionários e por chefes de Estado, trocando-lhes (numa cirurgia
rápida e limpa) pulmão, coração, o escambau, sempre que necessário, várias
vezes por ano. O fio condutor do livro é o dr. Eric Sweetscent, que ocupa um
cargo assim. Mas a Terra está esgotada pelo conflito interplanetário, e o
governante da Terra, como chefe de uma espécie de ONU todopoderosa do futuro, é
Gino Molinari, um sujeito carismático, habilíssimo, enormemente popular,
hipocondríaco, indisciplinável. E serão dele as decisões cruciais que determinarão
o resultado da guerra.
Dick oscila muito, de livro para livro, em matéria de bom
acabamento da história. A Suma de Letras publicou há pouco (e já comentei no Mundo Fantasmo) minha tradução de Time Out Of Joint (1959), O Tempo Desconjuntado. É um livro mais
bem escrito do que este: o texto flui como num fio longamente tecido.
Mistérios, pistas, revelações, tudo vai surgindo na hora certa. E de repente, o
livro se interrompe, quando dava a impressão de que ia se abrir para algo muito
mais vasto.
Espere Agora...
é ao mesmo tempo mais complexo e mais tosco do que O Tempo Desconjuntado. A toda hora tem uma quebra. Quando a guerra
entre os três sistemas se encarniça, surgem drogas capazes de produzir uma
ruptura para sempre no conceito de realidade. Como nesta cena, em que algumas
pessoas testam juntas, na sala de um apartamento, uma droga desconhecida:
– Meus mamilos não estão observando você nem ninguém – disse Kathy
Sweetscent para Hastings.
– Não estou ouvindo vocês – disse Chris em pânico. – Respondam!
– Estamos aqui! – disse Simon Ild, e deu uma risadinha abafada.
– Por favor – disse Chris, e sua voz tinha agora um tom de súplica. –
Digam alguma coisa. Vocês são apenas sombras. É algo sem vida. Nada além de
coisas mortas. E está somente começando. Estou com medo de como isso está
acontecendo, e ainda continua.
Marm Hastings pôs a mão no ombro de Chris Plout.
A mão passou através de Plout.
– Que bom, isso valeu os cinquenta dólares – disse Kathy Sweetscent em
voz baixa, sem qualquer traço de divertimento. Ele caminhou na direção de
Chris, aproximando-se cada vez mais.
– Não faça isso – disse Hastings a ela, com voz gentil.
– Sim, eu vou fazer – disse ela. E caminhou através de Chris Plout. Mas
não reapareceu do outro lado. Desapareceu por completo, e somente Plout
continuou visível, ainda implorando para que alguém lhe respondesse, ainda
agitando as mãos no ar em busca de companheiros que não era mais capaz de sentir.
Isolamento, pensou Bruce Himmel consigo mesmo. Cada um de nós foi
separado dos demais. Terrível. Mas... vai passar. Não vai?
Naquele instante ele não sabia. E para ele ainda não tinha nem
começado.
-oOo-
A força dos pesadelos fenomenológicos do autor de O Homem do Castelo Alto e de Blade Runner é a simplicidade de meios
narrativos. PKD não precisa de muitos floreios estilísticos para cortar até o
osso do real. Ele não precisava escrever literariamente bem como um John
Crowley, um Gene Wolfe, um Theodore Sturgeon.
Ele não tem as belas frases retóricas, cheias de
sonoridade. Em vez disso, tem imagens inesperadas, vívidas. Inconcebíveis e ao
mesmo tempo fáceis de imaginar, porque ele vestia suas discussões filosóficas
em aventuras não menos absurdas do que as da pulp fiction que lia na juventude.
Como acontece no clássico Camp Concentration (1968) de Thomas M. Disch, as pessoas em Espere Agora Pelo Ano Passado usam uma
droga com a qual adquirem uma percepção mais multiplex da realidade, mas ao
preço da vida drasticamente encurtada. O uso da droga é mortal, e viciante
desde a primeira dose. E um dos suspenses da história são as peripécias do
protagonista para salvar sua vida e a da esposa, usando a droga para dar saltos
meio imprevisíveis para o futuro e para o passado.
O grande personagem do livro, no entanto, é o tal governante
da Terra, Gino Molinari, um personagem que no próprio livro é comparado com
Abraão Lincoln, Benito Mussolini e Jesus Cristo. É o hipocondríaco líder:
derruído, cansado de guerra, parecendo capaz de atrair para si os sofrimentos
de todos os que o cercam. E ao mesmo tempo enérgico, despudorado, sátiro,
veemente, idealista, maquinador, assustadoramente empático, um animal político
nato.
Esse personagem deu origem a um interessante problema de
tradução. Ao longo do livro, as pessoas de sua entourage o chamam “The Mole”, um apelido que é também a redução do
seu nome de família.
Dos variados sentidos de “Mole” em inglês, achei que dois
têm a ver com o personagem: espião
(espião infiltrado, aguardando a hora de agir), porque ele age alternadamente a
favor da humanidade e a favor dos aliados poderosos, sendo acusado de jogar a
Terra numa guerra inútil; e molhe,
que é uma espécie de dique ou represa. E que significa proteção, algo
interposto barrando o perigo. Que é exatamente o papel de Molinari na história.
O problema é que a palavra “molhe”, apesar de correta,
não é corrente, não é tão usada aqui (acho) como talvez seja em Portugal. Corri
atrás da palavra e fiquei sabendo que um molhe é, sim, uma espécie de muro longo
de contenção contra as águas. Uma ponta do molhe se situa em terra, e a outra
no mar: esses dois detalhes o definem. Porque um quebra-mar é uma linha de muro com as duas pontas no mar, e um dique tem suas duas pontas fincadas em
terra.
Então, onde no original havia algo tipo “He said: let´s talk to the Mole”,
virou: “Ele disse: vamos falar com o
Dique”. Eu considero que a palavra dique é mais rapidamente visualizada por
um leitor comum, e isso compensa o fato do termo ser tecnicamente inexato (porque não é um dique, é um molhe). E a
função simbólica é a mesma.
Mas a palavra me serve também para outro sentido
invocado: the mole, o espião. Dique não
é a mesma coisa (mas nada é nunca a mesma coisa, então bora) mas lembra Dick, o
autor. Que não era um espião – mas sua vaibe é toda de agente-duplo
intergaláctico transdimensional. Então encaixa.