domingo, 16 de dezembro de 2018

4414) Sobre a tradução poética (16.12.2018)





(Piet Hein)

Uma das coisas mais incômodas quando a gente tenta traduzir poesia é a obrigação de seguir a métrica do original. Métrica é uma coisa muito matemática, muito precisa. O mínimo deslize fica tão evidente como (na comparação famosa de Raymond Chandler) “uma tarântula numa fatia de manjar branco”.

Quando é um poema de “verso livre”, cada linha pode ter qualquer número de sílabas, a critério do poeta. O poema ganha com isso uma alternância muito variada de cadências, e uma sílaba a mais ou a menos se destaca pouco.

Mas nas famosas formas fixas, onde se trabalha com versos obrigatoriamente de sete sílabas, de dez, de doze, etc., a reiteração desse ritmo faz com que mesmo o leitor não-ligado nesse aspecto perceba quando no meio de uma porção de linhas de dez sílabas aparece uma com onze.

É um verdadeiro prodígio conseguir traduzir um poema estrangeiro mantendo o sentido original, mantendo as rimas finais dos versos e mantendo a contagem de sílabas em cada linha. (Nem vou falar de outros efeitos, como rimas internas, aliterações, contrastes, etc.)

Daí o meu argumento de que mais do que a contagem exata das sílabas, vale a manutenção de uma cadência bem próxima à cadência do original, mesmo que, digamos, num soneto em decassílabos (no original) a tradução oscile entre versos de 9, 10, 11, 12 sílabas – procurando, claro, sempre ficar próximo do sentido do original, e rimando os versos na mesma ordem.

Uma argumentação muito clara e sensata a esse respeito foi feita pelo tradutor Álvaro Faleiros, num texto publicado no Suplemento Literário Minas Gerais (maio 2015):

“O ritmo do poema não se devia apenas à distribuição acentual do verso, mas (...) a sintaxe, o léxico e o encadeamento das idéias eram tão determinantes quanto a rima e a métrica. Desde então, tenho procurado inverter a famosa máxima de Haroldo de Campos, para quem a tradução deve ser isomórfica (ou paramórfica) e o sentido deve ser uma ‘baliza demarcatória’. No jogo de perdas e ganhos da tradução, estou tentando tratar os aspectos formais como ‘baliza demarcatória’ e fazer da sintaxe e do encadeamento de imagens o meu ‘topo’”.

Os tradutores da linha isomórfica tentam preservar com o maior rigor possível os efeitos métricos e sonoros do original, mesmo que à custa do sentido dos versos, em casos extremos. Faleiros inverte isso: para se manter próximo do sentido e das imagens do original, ele admite pequenas diferenças em relação à rima e à métrica.

Vou dar exemplo com um poeminha minúsculo de Piet Hein, o autor do famoso poema da luva (“Perder uma luva é uma dor profunda / mas nem se compara à dor pungente / de perder a primeira, jogar fora a segunda / e encontrar a primeira novamente”).

Hein cultivava esses poeminhas curtos a que chamava “grooks”, e um deles diz, em sua versão inglesa:

There is
one art,
no more,
no less:
to do
all things
with art-
lessness.

Hein defende aqui a simplicidade, a chamada “arte invisível”, aquela que a gente frui sem perceber como está fruindo. Nisso ele parece concordar com aqueles escritores que aconselhavam: “procure tudo que estiver muito bem escrito no seu texto, e então corte”.

O “muito bem escrito” é aquela arte vaidosa, exibicionista, onde o autor parece estar chamando a atenção para si mesmo e não para o texto. (Visualize uma peça de teatro sendo representada e de vez em quando o autor aparecendo no palco e acenando para o público. Tem coisa mais patética?)

Os grooks de Piet Hein são tão bem-humorados que eu vejo uma certa ironia dele nestas duas últimas linhas, porque ao quebrar a palavra “artlessness” (=a qualidade daquilo que não exibe “arte” alguma) ele chama a atenção para esse recurso, e mostra que tem uma artezinha ali, sim senhor.

Esse recurso da quebra da palavra também é usado por Gilberto Gil na letra de “Refazenda”. Esta canção propõe um modelo bem rígido de quadras com 4-7-7-7 sílabas, aquilo que eu chamo “o verso da embolada”.

(Sobre esse verso, ver aqui:

Diz o poeta:

Abacateiro (4 sílabas)
acataremos teu ato - 7
nós também somos do mato - 7
como o pato e o leão... - 7
Aguardaremos - 4
brincaremos no regato - 7
até que nos tragam frutos - 7
teu amor, teu coração. – 7

Ele propõe essa cadência de sílabas poéticas, 4-7-7-7 e para mantê-la acaba partindo as palavras mais longas, como Piet Hein fez, para que caibam na estrofe:

Abacateiro
teu recolhimento é justa-
mente o significado
da palavra temporão.

(...)

Abacateiro
serás meu parceiro soli-
tário nesse itinerário
da leveza pelo ar.

Existe arte nisso; é o próprio antônimo da “artlessness” defendida por Piet Hein. Mas acho que ele e Gilberto Gil se defenderiam dizendo: “Mas meu preto... me diga... quantas pessoas, fora você e meia dúzia, perceberam isso?...”

A gente não percebe. A cadência nos arrasta pelo ouvido com a mesma autoridade com que a mãe da gente nos arrastava pela orelha.

Eu queria traduzir o versinho inglês de Piet Hein, mas teria (pelo sistema dos irmãos Campos) que seguir a métrica dele, que é uma métrica 2-2-2-2-2-2-2-2. São oito versos, cada qual com duas sílabas.

A melhor saída foi lembrar o conselho de Álvaro Faleiros e propor uma tradução com o esquema silábico 3-3-2-2-2-3-2-2, verdadeira violentação do original, de acordo com as regras mais puristas da tradução. A esperança, no entanto, é que a cadência (e aqui a quebra de linhas é essencial para impor essa cadência ao ouvido do leitor, via olho) não sofra nenhuma sacudidela brusca:

Só existe
uma arte,
nem menos,
nem mais:
fazer
sem ninguém
ver como
se faz.

Perde-se alguma coisa? Muita!  A palavrinha quebrada foi pro espaço, o Expresso 2222 da métrica decolou junto com ela...  Mas minha intenção, mais do que reproduzir os efeitos sonoros e visuais, era passar o insight, o sentido, o famigerado “conteúdo” do poema.

Conteúdo que, em poemas metalinguísticos como este, poemas que refletem sobre a arte de poetar, está na própria forma, na maneira de dizer, e dizer fazendo concessões, aceitando limites, justamente para que o leitor veja sem perceber como viu, e pense que não fez esforço algum para entender.


(Aqui, uma página de “grooks de Piet Hein: