sábado, 11 de abril de 2009

0966) Os Guerreiros e os Contemplativos (21.4.2006)



(Cecilia Meireles)

Existem dois tipos de indivíduos no mundo: os guerreiros e os contemplativos. 

Os guerreiros são os que acham que seu dever é mudar o mundo. Os contemplativos acham que seu dever é permitir que o mundo os modifique. Os guerreiros querem ensinar; os contemplativos querem aprender. 

Os guerreiros eram os que, no tempo das hordas nômades, saíam para caçar mamutes ou antílopes, enfrentavam-nos com achas de sílex ou com lanças toscas de bambu. Cercavam o animal, matavam-no, tiravam-lhe a carne e a traziam para o sustento de toda a tribo. 

Os contemplativos eram os que avaliavam o vôo dos pássaros, o trajeto das nuvens, a posição das estrelas, e informavam se o dia era propício ou não à caça. 

Os guerreiros inventaram a caça e a guerra. Os contemplativos inventaram a ciência e a superstição.

Quando começaram a surgir as primeiras cidades humanas, eram os contemplativos que escolhiam o lugar mais adequado, geralmente nas proximidades de um rio; e eram os guerreiros que quebravam as pedras e erguiam os muros. 

Os guerreiros, claro, encarregavam-se da administração dessas comunidades, tornavam-se burgomestres, alcaide, tiranos, e impunham a ordem através da política ou da força. Quando os problemas se tornavam complicados demais, eles recorriam aos contemplativos, que sugeriam leis, códigos de conduta, e rituais que ajudavam a coesão social e o espírito coletivista, cooperativo.

O mundo ainda se divide entre eles, e o mais interessante é a sua presença nas letras. Como um pequeno teste, caro leitor, procure decidir a qual dos dois grupos pertencem escritores como Simone de Beauvoir, Virginia Woolf, André Malraux, Marcel Proust, Ernest Hemingway, Clarice Lispector. 

Parece fácil, não é? Tudo no começo parece fácil, mas a verdade é que cada um de nós traz estes dois lados, e grandes escritores são complexos o bastante para que vejamos com nitidez ambas as faces. Alguns chegam a ser esquizóides, como Fernando Pessoa, que guardava em si o ímpeto cosmopolita e tecnológico de Álvaro de Campos, e a calma zen e meditativa de Alberto Caeiro e Ricardo Reis.

Penso também em Cecília Meireles, uma pessoa fascinante. Quase toda a sua poesia é num tom permanente de nostalgia, melancolia, distanciamento, resignação calma diante da mutação das coisas e do fluir do tempo: uma “pastora de nuvens”, como confessa no seu belo “Destino”. 

Quem lesse a obra de Cecília sem saber de sua vida, pensaria ser ela uma mulher reclusa e silenciosa como Emily Dickinson. Mas Cecília foi guerreira. Atuou nas áreas da Educação, do Folclore, do Jornalismo. Combateu a política educacional do governo Vargas, e escreveu o maior poema político brasileiro, o Romanceiro da Inconfidência

No “Epigrama no. 7” ela diz: 

A tua raça quer partir,
guerrear, sofrer, vencer, voltar.
A minha, não quer ir nem vir.
A minha raça quer passar.

Era uma Cecília conversando baixinho com a outra.


















0965) Outra galáxia uma cebola (20.4.2006)


(Grande Nuvem de Magalhães)

Para um leitor comum, as expressões “viagem interplanetária” e “viagem intergaláctica” são a mesma coisa. (Se for o seu caso, caro leitor, peço-lhe que não veja nisto nenhuma ofensa.) Já o leitor de ficção científica percebe instintivamente a enorme diferença entre uma coisa e outra: ele sabe que é a diferença entre medir distâncias em centímetros, e medi-las em milhares de quilômetros. Volta e meia estou lendo (geralmente em textos relacionados a filmes de FC) coisa como “A Terra é invadida por seres de outra galáxia” ou “Fulano e Sicrano embarcam numa nave para viajar por entre as galáxias”. Ouso dizer que quem escreve isso não tem a menor idéia do que seja uma galáxia, ou da distância entre elas.

Será impossível que os OVNIs que passam em nossos céus estejam vindo “de outra galáxia”? Impossível, propriamente, não. Mas se são de fato espaçonaves, a probabilidade mais esmagadoramente gigantesca é que venham da mesma galáxia onde estamos, a Via Láctea, a qual é grande o bastante para abrigar espécies inteligentes, capazes de nos visitar. Darei um exemplo. Estou em casa, e alguém toca a campainha. O que devo pensar: é alguém que vem daqui do Rio de Janeiro, onde moro, ou alguém chegando do Japão? Muito mais sensato pensar que seja alguém das proximidades, mesmo que eu até tenha vários amigos no Japão.

A galáxia mais próxima da Via-Láctea é a Grande Nuvem de Magalhães, que tem cerca de 1/20 do seu tamanho, e fica a cerca de 160 mil anos-luz. Um visitante “de outra galáxia” teria que percorrer este vácuo, e só então chegaria à Via-Láctea, que tem um diâmetro de 100 mil anos-luz. (Estou admitindo que ele já soubesse onde a Terra estava situada, e estivesse seguindo o trajeto mais curto possível). Dizer “um ano-luz” parece rapidinho, vapt-vupt, mas como uma dessas unidades tem 9 trilhões e meio de quilômetros, o nosso ET Magalhonense (chamemo-lo assim) teria diante de si algo como 1 quintilhão e 520 quatrilhões de km. Se a distância entre nossa terra e o Sol é de cerca de 150 milhões de km, isto quer dizer que a distância de uma viagem “inter-galáctica” é 10 bilhões de vezes maior que a que nos separa do Sol.

Vamos substituir “ano-luz” por “quilômetro”. Nossa Galáxia é uma ilha no meio do oceano, com 100 km de diâmetro. A ilha mais próxima está a 160 km., separada dela pelo vazio do oceano Se alguém bate à nossa porta, é mais lógico supor que seja um habitante da nossa própria ilha, que tem uma extensão razoável, do que alguém que tenha cruzado o alto-mar numa balsa (ou que tenha vindo de avião-a-jato, tanto faz) para vir bater à nossa porta. As distâncias interplanetárias (dentro do nosso Sistema Solar) são imensas. As distâncias interestelares, entre as estrelas de nossa galáxia, são espantosamente superiores. Distâncias inter-galácticas estão num grau de magnitude tal que mesmo diante dos números não conseguimos perceber a enorme desproporção em relação ao mundo que conhecemos.

0964) Pense globalmente, aja localmente (19.4.2006)


("Imagedump")

No que me toca, coube a John Lennon popularizar em suas entrevistas este princípio, que já vi expresso de diferentes formas em diferentes contextos. “Think globally. Act locally.” À primeira vista parece mais uma daquelas inumeráveis palavras-de-ordem de que os anos 60 foram pródigos. Em nenhuma época foi tão fácil condensar verdades universais em meia linha de texto. Os anos 60 precisam ser estudados como, além de tudo que notoriamente foram, a Idade de Ouro do Slogan.

Verdade é que a citação de Lennon data de uma época posterior, os anos 70 em que o beatle atingiu o que, em termos de sua biografia, pode-se considerar a maturidade. Pensar globalmente, ou seja, tentar entender o movimento geral do mundo e do tempo, como um visionário plantado em cima de uma colina, é uma atitude típica daquela década, e não da década precedente, que foi uma espécie de carnaval eletrificado. Agir localmente, contudo, denota uma humildade que não era propriamente o tipo de mentalidade que os revolucionários dos anos 60 cobravam de si próprios. A ordem, naquele tempo, era “transformar o mundo.”

Agir localmente é mais sensato, mais concreto, e mais constrangedoramente óbvio. Querer transformar o mundo é como querer apagar um incêndio florestal sozinho. Mal você acabou de cuidar de um problema, dez outros desabrocharam além do seu alcance. Agir localmente pressupõe não apenas que você pode se dedicar em paz ao problema que está resolvendo, mas que para que isto tenha algum sentido é preciso haver algum tipo de ligação, conexão, troca de informação entre você e as dezenas, centenas ou milhares de outras pessoas ou grupos que estarão “agindo localmente” em outros locais.

Se alguma vantagem a época atual tem em relação à época de Lennon é a possibilidade de que pequenos grupos globalmente dispersos possam atuar localmente enquanto cada um se mantém permanentemente informado sobre o que os demais estão fazendo. No tempo de Lennon, isto só podia se dar através de telegramas ou de telefonemas internacionais. Hoje, virou lugar-comum a ação coordenada de pessoas que vivem em continentes diferentes mas estão em permanente contato. É possível até mesmo um sujeito nos EUA ouvir um concerto de uma banda cujo baterista está no Japão, o baixista na Índia, o guitarrista no Brasil, o tecladista na Itália e o vocalista no Canadá. Músicos e ouvintes se conectam e atuam em tempo real.

Qualquer revista ou programa de TV tece loas como as do parágrafo anterior à globalização tecnológica; precisamos tecer loas igualmente entusiásticas ao “agir localmente”. Cada indivíduo tem um raio de ação próprio. Temos às vezes a impressão de que as grandes mudanças só ocorrem nas grandes cidades dos grandes países. Não é bem assim. É como se alguém tivesse determinado: “Vamos transformar o mundo, e você, Fulano, se encarrega do bairro do Alto Branco”.

0963) Os novos poetas (18.4.2006)


(Cézanne - "O Sonho do Poeta")

Toda semana recebo um email, ou uma carta, ou um pesado envelope pardo cheio de poemas, e um apelo: “Prezado Senhor: Sou um jovem poeta, e não consigo publicar meus poemas. O sr. pode me ajudar?” Claro que posso.

Comece a escrever bem cedo, e comece a publicar bem tarde. Com dezesseis anos eu já escrevia sonetos alexandrinos, poemas surrealistas, epigramas satíricos. Graças a Deus nunca os publiquei, mas o fato de todo dia estar escrevendo uma coisa nova me dava a sensação de estar jantando num restaurante imenso, cheio de gente famosa. Ninguém tomava conhecimento de minha existência, mas eu me sentia ocupando o mesmo espaço que eles. Publiquei meu primeiro livro (um folheto de cordel) aos 28 anos. Ainda acho que foi um pouco prematuro; mas eu já estava impaciente. Resumindo: escreva muito, e publique pouco.

Não pense nas grandes editoras. Grandes editoras só publicam poetas consagrados, poetas premiados, ou amigos dos amigos. Se você não é nenhuma dessas coisas, publique-se a si mesmo. Foi assim que surgiram o Modernismo, a Literatura de Cordel, a Geração Mimeógrafo, a Poesia Marginal, e assim por diante. Auto-publicação. Publicar por uma grande editora é o mesmo que chegar à Seleção Brasileira. Aquilo não é um começo de carreira, é uma conquista. Só chega lá quem já mostrou serviço. Não é para novatos. A menos (repito) que você seja parente ou amigo de alguém “importante”, e a publicação de seu livro envolva uma barganha-de-favores qualquer.

A obra do poeta é o poema, e não o livro-de-poemas. Divulgue seus poemas isoladamente, e deixe para pensar nessa história de livro a longo prazo. Copie o poema, distribua com os amigos, pregue na parede, recite-o (se for o caso) nos lugares e momentos propícios. Se você tiver, daí a alguns anos, meia-dúzia de poemas “na boca do povo”, vai ficar muito mais fácil fazer um livro, em vez de ficar tirando cópias e mais cópias. E (curiosamente) os que já têm cópia serão os primeiros a comprar o livro. É uma lei da Natureza.

Use a Internet. É o lugar ideal para publicar suas coisas a custo zero, e para ler a custo zero as coisas alheias. Mande seus poemas para todo mundo. Eu recebo dezenas de poemas por semana. Leio alguns, deleto quase tudo, raramente guardo um. Quando leio um poema de que gosto (1% do total), presto atenção ao nome do autor. Se eu vir esse nome numa revista, numa antologia, vou lá conferir, pra ver se presta de novo. É assim que os nomes (Drummond, Cabral, Bandeira) se formam.

Não pense que as editoras, ou os governos, têm a obrigação de publicar seus poemas. Não têm. Você é que tem de convencer as pessoas (inclusive editoras e governos) de que o que você escreve tem valor coletivo, desperta a atenção de centenas ou milhares de pessoas, serve como referencial de discussão, é citado por gente que não conhece o autor mas que admira as idéias. Em suma: faça sucesso primeiro, e alguém vai querer publicar suas coisas.

0962) A mulher que nada esquece (16.4.2006)




(Jean Dubuffet, "Thêatre de Mémoire")

Como a mente funciona? Este é um dos mistérios que mais têm botado minha mente para funcionar ao longo deste último meio século. 

Percepção sensorial, memória e imaginação são três territórios cuja existência específica me parece óbvia, mas os três estão misturados como café, leite e açúcar numa xícara. Bebemos o líquido e percebemos que os três estão lá, mas só podemos percebê-los em conjunto. Não dá pra desmisturar.

Cientistas da Universidade da Califórnia, em Irvine, estão há alguns anos estudando uma mulher cuja identidade é protegida pelas iniciais AJ. Ela parece ter memória de tudo que já lhe passou pela cabeça ao longo da vida, mas parece ser uma “pessoa normal”, ao contrário da maioria dos chamados “mnemonistas” ou indivíduos com memória excepcionalmente precisa (ver “A amnésia”, 20.9.2003). 

Também não é como o famoso personagem de Borges, “Funes, o memorioso”, que era capaz de reviver mentalmente um dia inteiro de seu passado, mas isto lhe consumia um dia inteiro de seu presente.

AJ parece simplesmente lembrar qualquer detalhe que tenha passado pela sua cabeça. Lembrava-se do dia em que um dos entrevistadores tinha viajado à Alemanha anos atrás (o cientista não tinha certeza nem sequer do ano). Quando alguém da equipe lhe perguntou se ela sabia quais os dias em que tinham conversado, ela desfiou a lista inteira, por ordem cronológica. 

O cientista lhe perguntou, ao acaso, se ela sabia quem era Bing Crosby (famoso cantor da década de 1940-50). Ela disse que sim. “Sabe como ele morreu?” E ela: “Sim, morreu jogando golfe, na Espanha”, e disse a data e o dia da semana. 

Ela parece recordar instantaneamente tudo que sabe, mas, ao contrário de Funes, é capaz de encapsular recordações complexas em uma ou duas frases.

Mnemonistas geralmente são indivíduos meio desajustados, como o que foi estudado pelo Prof. Luria (“O mnemonista”, 26.8.2003); a gigantesca massa de informações e os intrincados métodos de memorização parecem ocupar sua atenção o tempo inteiro. 

Não é o que ocorre com AJ, que parece ser uma mulher normal, só que excessivamente organizada – na infância, costumava reclamar sempre que sua mãe mudava algum objeto do seu lugar habitual.

Algumas teorias psicológicas afirmam que não esquecemos nada, todas as coisas que soubemos continuamos a saber, tudo aquilo que pensamos “está escrito” em algum lugar, o problema é não sabermos como acessar isto. 

Emoções fortes costumam gravar memórias de maneira indelével, e podem desempenhar um papel também no processo de evocá-las, daí que algumas pessoas afirmem que nossa vida inteira passa como um filme diante de nossos olhos quando achamos que vamos morrer. 

O caso de AJ é interessante porque é um exemplo que conjuga memória excepcional e aparente “normalidade” de um indivíduo sem traços de autismo, excentricidade ou anti-sociabilidade. Talvez AJ seja aquilo que todos seríamos se fôssemos normais.






0961) O leitor lacunar (15.4.2006)


(Virginia Woolf)

“Leitor lacunar” é aquele que preenche os espaços vazios deixados pelo autor do texto. Quem conta uma história não precisa contar todos os detalhes possíveis. Se você está narrando um acidente de carro que aconteceu numa rua, basta dar uma idéia do que é a rua, não precisa informar cada loja, cada prédio, cada casa que tem nela. Certas narrativas precisam de descrição detalhada dos personagens; para outras, basta dizer: “Um dia, João vinha andando pelo parque quando avistou uma carteira que alguém devia ter perdido”. A história prossegue, e para contá-la não precisa contar a vida inteira de João.

Em qualquer texto, o autor diz o que lhe parece necessário, cabendo ao leitor deduzir ou subentender o acessório. Há, contudo, um grau de lacuna um pouco mais sofisticado na “história de mistério”, onde o que é omitido pelo autor é parte essencial do jogo a ser travado entre ele e o leitor. O tipo mais conhecido de narrativa de mistério é a história detetivesca, tipo Agatha Christie ou Sherlock Holmes, mas o mistério pode ser mais amplo, sem se articular em torno de um crime e do desmascaramento do criminoso. O mistério pode ser folhetinesco, envolvendo situações-clichê como órfãos abandonados, heranças usurpadas, pessoas que têm amnésia ou que trocam de identidade, filhos que não conhecem os pais ou pais que perderam os filhos... Enigmas que despertam o poder investigativo do leitor, e cujas soluções farão parte do desfecho. A mecânica da apresentação de pistas verdadeiras e de pistas falsas, nestas histórias, tem semelhanças com a mecânica do romance de detetive.

O “leitor lacunar” ideal é o que rapidamente percebe que lhe está sendo exigido este tipo de leitura, e obtém um prazer extra dessa situação de “jogo” que lhe é proposta. É um leitor consciente do que faz, porque afinal de contas todo leitor faz a mesma coisa: preencher lacunas sem saber que o está fazendo.

Já no romance psicológico (Machado,Virginia Woolf, etc.) não há um mistério específico a ser desvendado. Trata-se de recompor, ao longo da leitura, inúmeras camadas de significados e de ressonâncias dos fatos narrados. Algumas são fornecidas pelo autor, e a partir destas o leitor irá imaginando outras. Aqui, o mistério é como uma dízima periódica, cuja resolução pode ser infinitamente prolongada sem que, a rigor, exista um final a ser atingido.

Um hipotético “nível 1” de literatura, o mais simples, consiste numa miríade de pequenos mistérios (ou lacunas) de ordem meramente prática, que um leitor mediano será capaz de preencher por conta própria e avançar na leitura. É o nível até de uma notícia de jornal, ou piada de botequim. Um “nível 2” seria a literatura de mistério, onde o autor omite fatos essenciais, para um jogo de esperteza com/contra o leitor. E um “nível 3” seria a literatura mais sofisticada, onde cada leitor constrói seu próprio edifício de deduções e recriações a partir da trama de fios e vazios proposta pelo autor.

0960) A sociedade da informação (14.4.2006)




Num dos seus poemas mais belos, “Limites”, Jorge Luís Borges nos fala sobre um dos aspectos tristes da velhice (que tem também muitos aspectos alegres): a falta de tempo. Aos 70 anos o indivíduo percebe que seu futuro se estreita cada vez mais. O dia continua com 24 horas, a semana com sete dias, mas agora ele começa a se sentir como o viajante que, depois de dirigir na rodovia durante a noite inteira, começa a enxergar no céu do horizonte o clarão das luzes da cidade para onde se destina. O fim está perto.

Borges medita sobre a ironia de que, antes mesmo de morrer de todo, ele já tenha morrido parcialmente para muitos detalhes da vida. Há um ou outro livro em sua estante que ele já folheou pela última vez; talvez tenha sido há dez anos, mas não importa, foi a última, porque não voltará a tocá-lo. Há uma rua de sua cidade que ele não voltará a cruzar. A velhice é cheia de “últimas vezes”. O corpo morre de uma vez só, mas nossa vida exterior se apaga aos poucos.

Vejo com admiração alguns amigos meus na faixa dos 70 ou 80 anos e penso: quais serão os seus critérios para escolher suas leituras, os filmes que assistem, as atividades a que dedicam seu tempo? Porque sabem sem dúvida que o fim está perto, mesmo que se sintam fortes e sadios. Sabem que não têm mais à sua disposição todos os livros do mundo, como imaginavam ter aos trinta anos. Quantos livros lhes resta para ler, a eles, que já leram milhares?

Vi dias atrás uma frase de Alexander Simon, economista ganhador do Prêmio Nobel. Dizia ele: “O que a Informação consome é muito claro: consome a atenção dos que a desfrutam. Daí, riqueza de informação acarreta pobreza de atenção, e a necessidade de alocar eficientemente esta atenção, por entre a super-abundância de fontes de informação dispostas a consumi-la”. Simon se refere à nossa sociedade abarrotada de livros, jornais, revistas, publicidade, Internet, TV, cinema, rádio, indo até detalhes como o torpedo de celular e os graffiti de muro. Há uma proliferação desordenada de mensagens, e mesmo que 99% delas não nos interessem, o um por cento restante é (pelo menos no meu caso) suficiente para nos manter lendo sem parar durante os próximos dois séculos.

Num certo sentido, esse crescimento exponencial da informação nos deixa um pouco na situação de Borges septuagenário, percebendo que o número de suas horas diminui à medida que o dos livros disponíveis aumenta. Se formos comparar a quantidade de coisas que há para ler (e que gostaríamos de ler, precisaríamos de fato ler), estamos todos com 90 anos de idade. Não vai dar tempo. As estantes estão abarrotadas de livros, cada um deles implorando nossa atenção, mas sabemos que cada hora destinada a um deles está sendo subtraída de todos os outros. É preciso pegar papel e lápis e fazer uma lista de prioridades. Senão não vai dar tempo. O fim da viagem se aproxima, mais depressa do que imaginamos.



0959) Quem foi o Padre Azevedo? (13.4.2006)


(a máquina do Padre Azevedo)

Dia 13 de março passado, garimpando nas bancas de livros usados junto da Estação Carioca do metrô do Rio, encontrei um exemplar do livro Um Inventor Brasileiro, de Ataliba Nogueira (São Paulo, Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, 1934), dedicado ao Padre Francisco João de Azevedo, nascido na Paraíba em 1814, e tido por muitos como o inventor da máquina de escrever. Durante a leitura fiz uma rápida consulta ao Google, e descobri que o jornal A União havia publicado no dia 4 de março passado uma matéria de Hilton Gouvêa dedicada ao Padre Azevedo.

Azevedo nasceu na capital paraibana, estudou no Seminário de Olinda e foi professor em cursos técnicos no Arsenal de Guerra do Recife, onde se fabricavam máquinas e equipamentos do Exército. Seu protótipo de máquina de escrever, quase todo em madeira, foi exibido na Exposição Provincial de 1861, em Pernambuco, e na Exposição Geral do Império do Brasil, no Rio de Janeiro, a partir de dezembro do mesmo ano. A máquina, muito elogiada pela imprensa, recebeu uma das nove medalhas de ouro concedidas entre os 1.136 participantes (que expuseram 9.962 objetos). Um resultado magnífico.

O que se seguiu foi a mansa tragédia de sempre: o inventor não conseguiu participar em 1862 da Exposição Internacional de Londres, por falta de espaço no local destinado aos produtos brasileiros; não conseguiu sequer produzir um protótipo fundido em metal. Envelheceu, desanimado, e viu depois sua idéia sendo copiada por inventores estrangeiros. Leia detalhes em: http://www.calendario.cnt.br/MAQUINAESCREVER.htm.

Já me referi nesta coluna à sorte melancólica de brasileiros (por nascimento ou por adoção) que se anteciparam a grandes invenções européias mas não conseguiram se fazer ouvir pelos governos ou pela comunidade científica: “Quem foi Landell de Moura?” (25.6.2003), e “Quem foi Hercule Florence?” (22.8.2003). Episódios como estes nos mostram que uma invenção tecnológica requer duas coisas: criatividade individual e ambiente cultural propício. No caso de todos, faltou o segundo item. Santos Dumont conseguiu levar sua invenção à frente porque era rico, morava em Paris e pôde criar por conta própria as condições de que precisava. Ainda assim, perdeu a derradeira batalha, a do reconhecimento histórico, pois os irmãos Wright se impuseram no mundo inteiro (com exceção do Brasil e da França) como os inventores do avião.

Diferentemente da criação artística, que em geral exige recursos relativamente modestos, a invenção tecnológica exige a produção de protótipos para que seja requerida a patente, e, em seguida, o início da produção industrial, mesmo em escala modesta, para que o registro não venha a caducar por decurso de prazo. Não é fácil hoje em dia, e o era ainda menos no Brasil agrário, cartorialista e retórico do século 19. Dizer isto não serve de consolo à memória dos inventores, mas no caso de Florence, Landell e Azevedo, eles tiveram sucesso; quem fracassou foi o país.