quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

4429) A literatura não é tudo (30.1.2019)



A literatura não é tudo na literatura. Ou, formulando melhor: não é apenas a arte literária que a gente procura quando começa a ler um livro.

Como sou escritor (e da linha “a arte acima de tudo”, ao invés da linha “socialmente engajada”) sinto-me na obrigação de dizer que a arte literária está presente “com força” em praticamente todos os grandes livros – os cânones de cada cultura, os clássicos, os livros reeditados e retraduzidos centenas de vezes, etc.

Mas esses livros, por mais respeitáveis que sejam, são apenas uma fina fatia da produção literária que incessantemente se escreve, se publica e se lê no mundo inteiro.

Digo isto “no escuro”, cruzando os dedos, porque não faço uma idéia muito clara do que é lido por bilhões de chineses e de indianos, para dar apenas um exemplo bem óbvio.

Os grandes livros nos dão, sempre uma idéia forte, intensa, do que era uma época, um ambiente social, um país, uma cidade, uma região. Isso não se discute. Mas é preciso saber ver.

Vamos pegar um desses exemplos mais óbvios: o subestimado Machado de Assis. A maioria dos estudantes que lê Machado não lê os contemporâneos de Machado, os figurões da sua época, os best-sellers da sua época, a arraia-miúda da sua época. Fica sem referência para comparar os pontos em que Machado se diferencia do resto.

Fica parecendo aquele episódio do Barão de Munchausen em que ele adormece num campo nevado, à noite, e amarra o cavalo num galo de metal que aponta do meio da neve. Somente de manhã, depois que a neve derrete, ele percebe que havia uma aldeia, e que a neve havia coberto tudo, menos o galo do campanário da igreja, onde o cavalo agora está pendurado e esperneando.

Machado de Assis (e outros, em outras circunstâncias – Edgar Allan Poe nos EUA de 1840, p. ex.) é esse galo. Não enxergamos hoje, em 2019, o ambiente literário em que ele se movia. Vemos apenas esse galo, e achamos que ele está ao rés-do-chão. “Não vi nada de mais... já li centenas de histórias assim...”

O galo está muito alto, mas a altura dele está oculta pela neve do nosso desconhecimento.

Em volta desses “galos”, desses autores geniais, existem dezenas de outros, centenas de outros, que são igualmente importantes. Não é só o gênio que é importante. Não é só a obra-prima que precisa ser lida.

Para quem tem um interesse real pelo mundo, a literatura serve também como uma espécie de “estudo das mentalidades”. Os grandes autores (os que são considerados “grandes” hoje talvez não o fossem cem anos atrás, e talvez não mais o sejam daqui a mais cem) são aqueles que, em nossa opinião, foram mais fundo na descoberta de alguns aspectos da vida humana no seu lugar, no seu tempo.

Há muitos romances brasileiros que não chegam às alturas verbais de um Guimarães Rosa nem às profundidades psicológicas de Clarice Lispector – mas que são experiências notáveis na captação de um ambiente social, de um grupo, de um conjunto de pessoas. Podem servir como documentos de época, por serem livros bem observados, bem anotados, bem pesquisados – mesmo que não sejam extraordinariamente bem escritos.

Voltando ao ponto inicial: a arte literária não é a única coisa que buscamos nos livros. Quando está presente, é uma beleza. Mas muitas vezes está presente de forma apenas discreta, e o que aquele livro tem a nos dar, e é igualmente importante, é o pensamento de uma época sobre si mesma, através de um autor talvez menor, mas que talvez por isso mesmo seja um exemplo do tempo em que viveu.


Nenhum autor está “à frente do seu tempo” como a imprensa tanto repete. Os grandes autores estão apenas captando uma área mais ampla desse tempo. Mas não são os únicos que o estão percebendo. 





domingo, 27 de janeiro de 2019

4428) As fadas e os fados (27.1.2019)



(na foto: Ursula K. Le Guin)

A imprensa e as redes sociais andaram nos avisando que era o primeiro aniversário da morte de Ursula LeGuin. Um ano atrás, eu tinha finalmente encarado ler por inteiro a trilogia original de “Terramar”, que a celebrizou como autora de fantasia. Mais do que competente, foi inovadora em muitos aspectos.

Além da imaginação narrativa, LeGuin tinha a vantagem adicional de ser uma autora de formação clássica, numa família de professores, muito articulada, e que sabia discutir assuntos literários com uma voz literária. Nesse ponto, vejam só, eu diria que ela é parecidíssima com Harlan Ellison e com Raymond Chandler, por exemplo. Todos têm textos críticos e literários de grande valor, e cada um escreve como é, e teoriza como é, com tudo que sabe, com todos os seus recursos de escrita. Nem adotam uma “persona” pomposa, nem se escondem atrás de cortinas de miçangas factuais, nem botam pose de profetas. A voz interior do ensaio é a mesma do conto.

Da série de Terramar eu tinha lido apenas a coletânea Tales of Earthsea (2001), que tem histórias muito perceptivas, descrições tersas e precisas, e o fenômeno da magia-com-regras sendo explorado de vários ângulos.

LeGuin sabia ilustrar bem os princípios narrativos que defendia, e o seu modo pessoal de ver a fantasia. Há pelo menos duas coletâneas muito boas de seus artigos teóricos, resenhas, pequenos ensaios, discursos: The Language of the Night (1979) e Dancing at the Edge of the World (1982). Vários desses textos são disponíveis online (há links nos respectivos verbetes da Wikipedia).

Numa resenha onde comenta as Fábulas Italianas de Ítalo Calvino ela começa, como faz muitas vezes, comparando etimologias, para ver as mutações de sentido e de origem daquela idéia, quanto mais se remonta atrás no tempo.

Diz ela que a palavra inglesa para fada, fairy, em italiano se diz fata, que segundo ela vem, tal como a palavra inglesa “fate”, destino, do termo em latim fari, falar. (Eu fico o tempo inteiro com uma comichão de que fare também é algo como “fazer”, conforme o italiano.)

O dicionário online que sempre consulto (www.etymonline.com) sugere que a cronologia reversa de fairy remonta aos anos 1300 com a forma faerie e o sentido de “a pátria ou o lar de criaturas lendárias; terra-das-fadas (fantasyland)”.

O antecessor deste é o Francês Antigo faerie, “terra das fadas, encontro entre fadas; encantamentos, magia, bruxaria, feitiçaria”. E esse termo por sua vez descende de fay, do latim fae, e do latim fata, as Fadas, forma plural de fatum, “aquilo que já está escrito; destino, fado (destiny, fate).

Isso nos encaminha numa direção curiosa, porque a publicidade e a ilustração popular insistem na fada como uma criaturinha angelical e sexy, uma espécie de Barbie do além. Dentro de “Fadas” cabem, é bom lembrar, desde as rechonchudas e boazinhas fadas-madrinha de tantos contos quanto a Fada Carabossa que gosta de estragar a festa dos outros.

Há um provérbio que diz: “Lá como cá, más fadas há”.

O mais interessante deste passeio é o plural de Destino. As destinas. E tudo isso nos prepara para a revelação final: toda essa árvore genealógica está pendurada de cabeça para baixo numa raiz indo-européia, bha, que entre outros sentidos traz “falar, dizer, contar”. O que é o Destino? É algo que foi falado, dito, contado. E num certo sentido o que foi contado é porque já está escrito. São coisas que já têm um formato para acontecer.

E as fadas são o que? São subdivisões desas coisas feitas, são criadas por alguém, são também criaturas. E chamam-se “fadas” justamente (é mais ou menos por esse caminho que o nó chega ao nosso brasileiro de agora) porque foram feitas, foram “fa(zi)das”. É a mesma compactação que nos fazer dizer em vez de “eles foram pegados” “eles foram pêgos”. Elas foram fazidas, elas são fadas.

As fazidas são criaturas que já aconteceram. A história delas, como a da mulher fatal de La Invención de Morel (1940) de Bioy Casares, tem que reacontecer sempre da mesma maneira. São fadas por isso, foram feitas para encarnar a condição de quem está presa no cristal de um encantamento qualquer.

Se usarmos a forma masculina o raciocínio é parecido. Quem gosta de música sempre considera a palavra fado como uma forma de canção que a musicalidade de Portugal transformou em portuguesa, caso de fato tenha tido outra origem. Mas na ala da literatura encontramos a palavra fado em sua medula original, seu sentido primal de destino, de fatalidade, de enredo inescapável como um Maelstrom. O fado é algo maktub, está escrito nas estrelas, está dito. E feito.

As fadas e os fados. As fazidas e os fazidos. São seres que vêm interagir com os indefesos humanos, com os ainda não-feitos, ainda não-prontos, ainda na versão-beta-em-preparo, ainda sujeitos ao acaso, à sorte, ao azar, ao milagre aleatório, ao susto randômico. Comparado às fadas e aos fados, o ser humano (diria Darcy Ribeiro) está ainda em pleno fazimento.

As criaturas da Faerie, termo que continua a circular com vigor, vivem como que por trás de um vidro invisível e intransponível que nos separa de seu universo. É como se fossem criaturas dotadas de uma vaga memória, uma vaga noção de que estão há milênios revivendo aquilo, como um gramofone casualmente religado recomeçaria a tocar vezes sem conta o mesmo disco fonográfico que ali restara.

Quando dizemos que alguma coisa parece um conto de fadas estamos num terreno meio escorregadio. O conto de fadas para mim não é um conto cheio de deslumbramento, de beleza, de maravilhamento, de sense-of-wonder, nem é simplesmente uma história das dificuldades pré-casamento entre um rapaz e uma moça.

Do ponto de vista de quem escreve, o contato entre o “mundo real” e a “faerie” é o contato entre mundos contíguos, muito semelhantes, com pessoas de verdade com muita coisa em comum com os humanos, mas obedecendo a leis diferente de espaço, de tempo, de personalidade, etc.  Assim como nós humanos não podemos, por exemplo, cancelar a morte, ou ficar livres da força da gravidade, as fadas e os fados não podem evitar a própria ruína ou tragédia, quando é o caso. Estava escrito. O oráculo, anos atrás, explicou que isso ia acontecer.

Explorar um repertório inesgotável (e sempre novo) de “confronto de proibições” pode ser uma boa diversão para quem escreve sobre fadas. Sempre é possível imaginar uma “lei” ou “maldição” diferente sobre elas, e que produza bons resultados na trama.









quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

4427) Sete Coisas que eu Aprendi na Literatura (24.1.20190


(na foto: John Fowles)

1. Pare e analise.

Quando ler, num livro qualquer, alguma coisa que achar muito boa, pare de ler, releia, e pergunte a si mesmo: “Por que é que isso é bom?”  Quando ler algo e achar muito ruim, pare de ler, releia, e pergunte: “Por que é que isso é ruim?” Anote suas respostas e não esqueça.

Por que digo isto?

Porque de certa forma um dos objetivos da literatura é produzir aquela primeira reação, e evitar a segunda.

Houve um tempo em que a literatura era feita em função do autor: o autor estava escrevendo para meramente dizer o que pensava, e o leitor tinha que ler aquilo de forma respeitosa, obediente, eu diria quase reverente. Magister dixit. O mestre falou e tá falado.

Com a industrialização da literatura, principalmente a partir dos anos 1800, essa equação se inverteu parcialmente. Surgiu uma faixa da literatura em que o importante era o que o leitor estava sentindo. O importante era produzir emoções ou idéias no leitor, e o escritor tinha que se dobrar a esse imperativo.

Paul Valéry via em Edgar Allan Poe o grande exemplo dessa literatura voltada para o efeito a ser produzido no leitor. Toda a teoria poética e contística de Poe se baseia nisso.

Portanto... analise o efeito que o autor, qualquer que seja ele, bom ou ruim, produziu em você. Era esse efeito que ele estava tentando? Ele conseguiu? Por que conseguiu? Por que não conseguiu? Que recurso ele usou? Que outros exemplos desse recurso você é capaz de produzir? E assim por diante.


2. Há coisas essenciais e coisas negociáveis. 

Imprima o que escreveu e vá relendo. Sublinhe as palavras, as expressões e os trechos que você considera essenciais, o que em hipótese alguma podem ser mudados sem prejudicar a história. Depois, faça uma revisada no restante – cortando, reduzindo ou modificando.

Toda versão de um texto tem coisas essenciais e coisas negociáveis. Até mesmo textos definitivos, publicados, impressos. Se Shakespeare ou Cervantes ressuscitassem hoje, seriam capazes de apontar nas obras deles mil frases que poderiam ser mudadas sem prejuízo algum.

É muito raro o livro onde nada pode mais ser mexido. (Não conheço nenhum – estou deixando a ressalva porque não é cientificamente impossível que exista.)

Eu adquiri esse costume quando fazia letras de música com meus parceiros. Eu avisava: “Olha, a frase tal, a rima tal, o verso tal, não mexa de jeito nenhum senão estraga tudo. Quanto aos outros trechos da letra, se tiver uma idéia melhor, mande brasa.”



3. Lápis e papel no bolso.  

Algumas das melhores idéias vêm quando você não pode anotá-las. Você pensa: “Não faz mal, chegando em casa eu vou lembrar tudo.”  Não vai.

Alguns vão lembrar, porque são obsessivos memorizadores. Ou então são como Fernando Pessoa, que era capaz de compor um soneto de estranha calma enquanto corria por uma calçada de Lisboa, sob trovoada e aguaceiro.

Escrever é, em mais de um sentido, um estado alterado de consciência, e  isso diz respeito ao jeitão do talento de cada um.

Para quem é criativo, e tem seus truques, registrar idéias é uma necessidade, porque idéias novas não param de chegar. É bom tomar notas. Nossa mente criativa é meio metida a besta e às vezes descarta por centavos alguma frase que bem empregada renderia uma pequena fortuna.

Lápis e papel, sempre (ou tablet, ou celular, ou qualquer recurso que permita escrever textos curtos). No ônibus, no metrô, no engarrafamento, na fila do banco, na sala de espera do dentista, na espera do bar ou do restaurante, na porta do colégio esperando as crianças. Lápis e papel, sempre.

Mostre somente o que prestar.



4. Visualize os personagens.  

Muitos leitores têm uma espécie de repositório mental de tipos humanos. Isso é formado por sedimentação, anos afora, pelo cinema, a literatura, as narrativas modernas em geral.

Projetar seu personagem numa pessoa conhecida ajuda a imaginar ações e sentimentos plausíveis para ele. Use seu tio, sua prima, seu vizinho, um ator ou atriz de cinema...

Descreva deles apenas o necessário; mas pense nessas pessoas quando pensar nas cenas. Ninguém vai saber que o capitão da espaçonave foi inspirado num professor seu, ou que a mulher fatal é a síndica do seu prédio.

Muita gente faz isso. Às vezes eu estava lendo um livro de autor dos EUA, tipo um thriller policial contemporâneo, aí quando via a descrição do agente da CIA pensava: “Já sei, o autor está visualizando Yaphet Kotto”.

Ninguém vai saber que aquela elfa é Cora Coralina, ou que aquele carrasco da corte é Buster Keaton. Você imagina, você descreve de maneira sintética, mas ao visualizar a cena tem essa figura em mente. Isso ajuda a imaginar com mais espontaneidade os gestos, a linguagem corporal, as reações do personagem.


5. Faça escaleta.  

Um dos maiores bloqueadores da escrita é não saber o que vem em seguida. Todo escritor de pulp fiction, por exemplo, já escreveu algum fim de capítulo com o desfecho de um violento tiroteio, do qual o herói e sua companheira de aventuras escapam por pouco. E agora?

As situações se repetem e é preciso introduzir algo novo em cada reedição. Quando se trabalha com repertório de gêneros bem populares, como a FC e o horror, o policial detetivesco, etc., a primeira coisa é ter uma história que atraia e segure o espectador de alguma maneira.

A primeira regra básica acho que é: tenha sempre alguma coisa nova a oferecer, uma idéia, um diálogo, uma esperteza, uma reviravolta, uma coisa que possa evitar que as histórias vão todas na mesma direção.

Raymond Chandler, com algum cinismo, dava sua receita: “Quando não souber o que vai acontecer em seguida, faça a porta ser arrombada e por ela entrar um cara de revólver em punho.”

Faça um resumo, item por item, do que vai ocorrer em cada capítulo. Tenha a sequência dos acontecimentos numa lista. Às vezes, se um item estiver dando muito trabalho, é possível pular para o próximo, e depois voltar e completar o que faltou.

Digamos: Cena 43, casal sem grana em crise. Longa discussão entre os dois; decidem que ele vai sair para pedir grana emprestada a um primo. Cena 44: o primo se nega a emprestar. Cena 45: o cara volta e os dois recomeçam a briga. Você pode escrever de uma vez só as cenas 43 e 45, para não sair do clima, e mais adiante escreve a outra, da qual só importa a negação do empréstimo.

A escaleta não tira o prazer da descoberta e o susto da informalidade. A gente deve sempre estar aberto para o imprevisto, o improviso, o acaso. Mas ao mesmo deve deve ter sempre uma noção clara de que uma história está sendo contada, e quem quiser acompanhá-la é só prestar atenção.

A regra é: Deve-se sempre planejar, deve-se sempre estar aberto para o improviso.



6. Descubra que tipo de escritor você é.

As fórmulas alheias, as técnicas alheias, os conselhos alheios, tudo isso pode ou não lhe servir. Mas eu acho que o fato de ter curiosidade a esse respeito é um bom sinal.

A escrita de cada um é uma consequência do modo como a mente de cada um trabalha.

O escritor tem que se analisar ao longo da vida e ver em que condições (pessoais, de horário, de ambiente, de método) produz mais e melhor.

Hemingway escrevia em pé, Stevenson escrevia deitado. Kerouac dedografava rolos de papel intermináveis, e Chandler compunha seus parágrafos em pequenas fichas pautadas.

O que serve pra um não serve necessariamente para o outro.

Ver a variedade dos gostos alheios, e os eventuais resultados positivos, pode dar a alguém a sensação agradável de que pode ser ele mesmo ou ela mesma sem que o mundo necessariamente se acabe.


7. Aposte sua vida.

Se quer ser escritor de verdade, não fique fazendo pastiches, ou imitando seus autores preferidos, ou piscando o olho para uma turminha de amigos através de graçolas ou citações. Ou você bota sua vida num prato da balança, ou é melhor ir ler os livros de quem o fez. (Eu faço as duas coisas, de acordo com as marés.)







segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

4426) "O Labirinto do Fauno" (21.1.2019)



Escrevi alguns dias atrás neste blog um artigo chamado “A Lenda do Barco Fugitivo”, onde lembrava o antigo motivo dramatúrgico da fuga da masmorra através de um objeto mágico ou de um desenho na parede do cárcere.

Me chamaram a atenção, numa rede social, para o fato de que o filme de Guillermo del Toro O Labirinto do Fauno (2006) usava esse recurso. Palavras não foram ditas e eu já estava vendo o filme no Netflix.

É um bom filme fantástico. Recorre de maneira bem pessoal às fórmulas e aos clichês de algo tão coletivo quanto as narrativas mitológicas e os relatos da resistência contra a Guarda Civil do General Franco.  

Quando a história começa, fim da II Guerra Mundial, na Espanha, o mundo está politicamente cindido em dois grupos, numa situação de não haver diálogo possível. A menina Ofélia está entre os militares franquistas que obedecem a seu pai adotivo, e os guerrilheiros protegidos pela criada de bom coração. Ela opta por quem a trata bem.

Ao se refugiar no mundo fabuloso dos livros de contos de fadas, ela recebe um mistério, um desafio, uma prova, um game, seja lá o que for. Um conjunto de situações onde ela tem que provar ser capaz de entender instruções complexas e executá-las, de encarar tais e tais esforços físicos, coisa e tal.

O filme de Guillermo del Toro tem algo de Buñuel, algo de Carlos Saura, e curiosamente ele é por sua vez referido em séries recentes como El Ministerio del Tiempo (Espanha), que inclusive reconstitui um poço em espiral bem semelhante ao deste. Não deixa de ser (por mera contiguidade) o mesmo poço em espiral da trilogia Comando Sul, de Jeff Vandermeer, principalmente no primeiro livro, Aniquilação.

O poço circular, com escada em espiral, que desce rumo às profundezas desconhecidas da Terra está se tornando um “ícone visual”, como diz a imprensa, com certa rapidez.

As tarefas que a garota recebe e as últimas palavras do médico ao general nos deixam pensando sobre a importância de obedecer.

A importância relativa de obedecer. É uma virtude, o ato de obedecer? É essencial obedecer cegamente, firmemente, inatacavelmente a uma ordem que se recebeu? E quando uma pessoa diz: “Parei aqui, estou obedecendo a algo que me parece acima de nós dois, maior que nós dois. Não farei o que estão me ordenando”?

O caudilho típico só consegue pensar em termos de nós contra eles. O Coronel Vidal do filme é um vilão com seu momento de Coringa, o que reforça o que ele tem de caricatural. Isso não diminui a tensão de quando ele se prepara (sempre repetindo as mesmas frases, como descobrimos aos poucos) para a batalha, para a tortura.

O filme é estruturado então entre, de um lado, uma história meio sofrida e crepuscular entre uma menina e sua mãe doente, e, de outro lado, uma aventura de missão com três trabalhos num mundo mitológico a que só ela tem acesso.

Uma das minhas definições preferidas para “literatura fantástica” é de Kathryn Cramer ao dizer que “o Fantástico é a linguagem da mente submetida a enormes pressões.”  Algumas situações-limite da vida humana são tão “pesadas” que parecem distorcer a realidade à sua volta.  Elas influem no campo probabilístico. Com elas em processo, qualquer coisa pode acontecer, mesmo quando não acontece.

A mente humana submetida a uma tensão insuportável: personagens em crise são sempre mais vulneráveis ao Fantástico, ao insólito, ao improvável. “O estranho, o bizarro, o inesperado”. Quem está na corda-bamba tem mais chances de cair no chão do que quem está na arquibancada só olhando.

Ofélia em alguns momentos é tão estoica e destemida que se fosse hoje em dia acabaria de transformando numa Aria Stark, a lâmina mortal. Aqui, ela consegue vencer no Além, mas não tem a mesma sorte na vida real.

A imaginação visual e o perfeccionismo na recriação deram ao filme uma porção de indicações e vitórias em prêmios importantes. Ao que parece, igual importância foi dada ao roteiro e à história em si.

O filme é de 2006 mas vendo-o somente agora não o senti defasado, em termos visuais. A criação de efeitos especiais (os de personagens como o Fauno, por exemplo) envolve mais do que a simples técnica; depende de como aquilo é encaixado no resto do cenário. Se as texturas e o ritmo dos movimentos “batem” com o restante da cena. Às vezes a execução tecnológica é perfeita mas a imagem animatrônica não se encaixa, não parece fazer parte daquele mundo.

Os ambientes que ele recria são bastante prováveis na mente de uma garota daquela idade, que lê bastante. Del Toro tinha escrito uma primeira versão com uma criança por volta de oito anos, mas depois que viu o teste da pequena atriz, reescreveu alguns trechos para fazer dela uma menina um pouco mais velha.














sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

4425) O pau-de-arara sem freio (18.1.2019)



O furto de um verso alheio é lugar-comum na história da cantoria. Todo cantador, na hora do aperto, recorre à memória, tal como um jogador de futebol recorre ao puxão na camisa do adversário.

Em grande número dos casos, contudo, as evidências concretas são poucas.  Alguém na platéia pensa: “eu acho que já ouvi esse verso.” Trata-se de acreditar na memória e na honestidade de "A" , ou então na de "B".  

O mais comum é o furto de uma idéia.  Uso a palavra "furto" aqui no sentido mais benevolente possível.  Furto, em poesia, é a apropriação não-prejudicial de algo que, nas circunstâncias, era mais necessário ao furtador do que ao furtado. 

Em literatura o que importa é o que se faz com o que se furta.  "Copiar o alheio, melhorando-o" poderia muito bem ser o lema de muitos grandes autores que furtaram cenas, ou enredos inteiros, a outros de menor talento, cujo nome só assim escapou da poeira do anonimato.

Veja-se um exemplo de idéia bem aproveitada, a sextilha atribuída por alguns autores a Severino Pinto, o "Pinto do Monteiro" (Francisco Linhares e Otacílio Batista a atribuem a Domingos Tomás na Antologia Ilustrada dos Cantadores, pag. 83):

Cantar com cantador ruim
é viajar pela pista
num pau-de-arara sem freio
com um chofer ruim de vista,
e mais um doido gritando:
"Atola o pé, motorista!"

Esta é uma sextilha da maior competência.  Veja-se o excelente uso da linguagem coloquial: "pista" é como se chama, no Nordeste, uma rodovia qualquer; “atola o pé!” equivale a “pé na tábua!”. 

Depois, a tragicômica verossimilhança desse caminhão e desse chofer, dos quais as estradas nordestinas vivem repletas, principalmente em dia de feira. 

E, por fim, o clímax de nonsense plausível, onde um doido grita a frase milhares de vezes ouvida nos ônibus urbanos nordestinos, apinhados, sacolejantes, quando fazem curvas e cantam pneus, por entre vaias, aplausos, apupos e gritos de incentivo da galera.

Ora, o cantador Manoel Francisco cantava em Patos com um colega, o qual terminou assim a sextilha:

(...)
Aqui em Patos eu gosto
de cantar com Zé Batista,
que na cidade está sendo
o maior radialista.

Vai ver que esta rima final trouxe à memória de Manoel Francisco a sextilha antiga, porque ele, improvisadamente ou não, saiu-se com esta:

Cantar com José Batista
é vir num carro de feira,
com o motorista bêbado
e o carro em toda carreira,
e mais uma doida em cima
cantando "Mulher Rendeira".

Excelente sextilha.  O Zé Batista virou José Batista por conveniência da métrica mas sem perda do sentido; e a sextilha é uma paráfrase rigorosa da outra.  O "pau-de-arara" vira "carro de feira", termo igualmente cotidiano.  O "chofer ruim de vista" vira "motorista bêbado", o caminhão "sem freio" vira, numa boa aliteração, um "carro a toda carreira", e os dois versos finais nos atiram para um nonsense que paga bem o verso de Pinto ou de Domingos.

Suponhamos (com a mesma liberdade imaginativa dos exegetas de Marcel Proust ou de James Joyce) que o primeiro poeta tirou sua sextilha do nada, e Manoel Francisco tentou imitar o que ele dissera. 

Pode-se estabelecer entre os dois uma hierarquia como repentistas, e estabelecer que o primeiro foi superior, porque fêz num instante o que o outro ficou matutando e construindo com vagar. 

Pode-se também dizer que Manoel Francisco apenas ilustrou com imagens diferentes uma idéia central que talvez não tivesse talento para criar.  Mas não se pode negar que, meramente transcritas, e colocadas anonimamente lado a lado, as duas sextilhas se equivalem.   É um desses casos em que a cópia é tão boa quanto o original, e a precedência cronológica é o único critério de desempate possível entre as duas.  E que Manoel Francisco poderia invocar para si a desculpa dada ao longo dos séculos por tantos artistas: “Não é imitação, é aperfeiçoamento...”

A verdade é que existem casos em que o fato de ser um "repente" transforma em obra-prima um verso que literariamente seria apenas banal;  mas pode-se dizer também que, por outro lado, a riqueza literária do produto final pode tornar irrelevantes as circunstâncias em que foi composto.













terça-feira, 15 de janeiro de 2019

4424) A Lenda do Barco Fugitivo (15.1.2019)




(ilustração: Vincent Ward)


Deve ser um desses itens pesquisados e classificados pelos antropólogos e pelos estudiosos de narrativas orais. É o que eu chamaria uma Figura de Narrativa (no sentido em que falamos de figuras de linguagem), e pode ser nomeada assim: Fuga da Prisão Mediante Desenho ou Objeto.

É quando, em tantos desenhos animados do Cartoon Network ou do Nickelodeon, o personagem pega um lápis ou pincel qualquer, desenha na parede branca uma porta, abre-a, e desaparece através dela. A fuga mediante um desenho que um prisioneiro faz na parede de sua cela, e que acaba abrindo um portal por onde ele pretende fugir. Ou mediante um objeto recebido ou feito por ele mesmo.

Como no conto “Histórias Fantásticas” de Marco Denevi (em Falsificaciones, Buenos Aires: Corregidor, 2007. Tradução BT):

HISTÓRIA FANTÁSTICA

Conta Frei Jerônimo de Zuñiga, capelão da prisão do Bom Socorro, em Toledo, que no dia 7 de junho de 1691 um marinheiro natural das Índias Ocidentais, de nome Pablillo Tonctón ou Tunctón, de raça negra, condenado ao auto-de-fé por bruxaria e outros crimes contra Deus, escapou do cárcere e de ser queimado vivo pedindo aos que o vigiavam, três dias antes de marchar para a fogueira, uma garrafa e os elementos necessários para construir um barco em miniatura e guardá-lo dentro da garrafa de vidro. Os vigilantes, mesmo sabendo que o tempo que restava ao réu era muito breve, não fizeram objeção. Ao cabo de três dias o diminuto navio estava terminado no interior do vidro. Na manhã marcada para a execução via auto-da-fé, quando os membros do Santo Ofício entraram na cela de Pablillo Tonctón, a encontraram vazia, assim como a garrafa. Outros condenados, que esperavam sua vez de morrer, afirmaram que na noite anterior haviam escutado um ruído como de velas, chapinhar de remos, vozes de comando.

A fuga urdida pelo personagem de Denevi utiliza uma garrafa, quase como uma metáfora para uma “bolha” de espaçotempo dentro de um continuum maior. Um caminho de fuga por onde o navio miniatura conseguiria sumir por completo.

Essa história sugere que o objeto artístico (ou de artesanato) pode ser também considerado um tipo de processo encantatório, capaz de produzir um esgarçamento da realidade para permitir acesso a outro plano.

Outra história parecida que encontrei foi no blog de Bárbara Lopes (São Paulo, 7-11-2017).
É uma adaptação de Francisco Serrano para a lenda da “Mulata de Córdoba”, no livro Contos de Assombração (Ática/co-edição latino-americana).

Diz a lenda que, há mais de dois séculos, viveu na cidade de Córdoba, no Estado de Vera Cruz, no México, uma bela mulher: uma jovem que nunca envelhecia, apesar dos anos.
Chamavam-na de Mulata. (...) As pessoas comentavam os poderes da Mulata e diziam que se tratava de uma bruxa, de uma feiticeira. Alguns garantiam tê-la visto voar pelos telhados e afirmavam que os seus olhos negros lançavam olhares satânicos enquanto ela sorria com aqueles lábios vermelhos e aqueles dentes alvíssimos. (...)

O fato é que, certo dia, levaram-na de Córdoba e prenderam-na nos sombrios cárceres do Tribunal da Inquisição, na Cidade do México, acusada de bruxaria e satanismo. Foi julgada e condenada à morte.

Na manhã do dia em que seria executada, o carcereiro entrou no calabouço da Mulata e ficou surpreso ao contemplar numa das paredes da cela o desenho do casco de um barco, feito a carvão pela feiticeira, a qual lhe perguntou sorrindo:
- Bom dia, carcereiro. Poderias tu me dizer o que falta a este barco? (...)
- Por que me perguntas? Falta-lhe o mastro. 
- Se é isso o que lhe falta, isso ele terá - respondeu ela misteriosamente.

A situação torna a se repetir, e a cada vez o carcereiro sugere algo que está faltando, e ela aperfeiçoa o desenho. No final, ela diz:

- O que falta ao meu barco?
- Infeliz! - respondeu o carcereiro. - Põe a tua alma nas mãos de Deus Nosso Senhor e arrepende-te dos teus pecados. Nada falta ao teu barco, a não ser navegar. É perfeito!
- Pois se assim quiseres, se nisso puseres empenho, ele navegará. E para muito longe...
- Como assim? Quero ver!
- Pois veja! - disse a Mulata e, rápida como o vento, pulou no barco. Este, devagar a princípio e depois rápido e a toda vela, desapareceu com a bela mulher por um dos cantos do calabouço.

Esta versão usa basicamente a mesma idéia de desfecho, mas em sua preparação há o detalhe de que é o carcereiro, voluntariamente ou não, que instrui a mulher na construção de seu instrumento de fuga. Parece até uma consultoria: “Falta o mastro... falta isto... falta aquilo...”

Há um poema de autor angolano em que a um navio em alto mar acontecem várias peripécias, ele afunda, os marinheiros ficam todos bracejando na água para se manter à tona, “e nesse instante o grumete / tira no bolso o navio / e põe-no outra vez na rota”.

Não é a mesma figura narrativa dos outros (um desenho que serve de portal) mas um choque repentino entre dimensões e proporções incompatíveis (o navio saindo do bolso), que serve como deus ex machina e também como aquilo que Kim Stanley Robinson primeiramente chamou de “slingshot ending”, o “final catapulta”, onde as últimas frases jogam a história para amplitudes e dimensões nunca imaginadas; e o livro acaba ali.

Reencontrei um pouco desse tema milenar (o prisioneiro que abre um caminho “simbólico” de fuga na parede da cela) no filme de John Carpenter O Enigma do Outro Mundo (“The Thing”), quando um dos cientistas (suspeito de ter sido absorvido pelo ser alienígena) é trancado num dos setores da base militar. Algum tempo depois os outros militares vão checar, e descobrem que ele cavou um túnel e abriu embaixo do aposento um enorme porão onde já está com uma pequena nave espacial quase pronta.

O arquétipo inconsciente por trás dessas imagens é que não adianta prender alguém, ele será capaz de dar um salto por cima das paredes e do teto, como um cavalo no xadrez, e aterrissar do lado de fora, mediante um curto trajeto em outra dimensão.

Por impossível que pareça, esse recurso revela um permanente temor (para os guardas) e uma tenaz esperança (para os prisioneiros). E lembra a frase de Octavio Paz: “Basta a um homem prisioneiro fechar os olhos para que tenha o poder de fazer explodir o mundo.”









sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

4423) A arte da astrologia (11.1.2019)



Uma vez, num programa de debates, alguém me perguntou por que eu não acreditava em Astrologia, e eu fui forçado a dizer que nem na Astronomia eu acredito muito. Aceito provisoriamente, como aceito qualquer teoria verossímil que me oferecem.

Até já escrevi em algum lugar: “Astrologia é a arte de adivinhar o futuro dos astros e estrelas da televisão”

Quando falei que não acredito na Astronomia não é porque questione suas premissas, é porque não perco nunca de vista certas limitações interpretativas de cada linguagem.

Meu pai tinha um livrinho atarracado, o Dicionário da Fábula, de Chompré, uma profusa descrição dos mitos greco-romanos. Me fascinava sempre o fato de cada deus daqueles ter duas encarnações, uma na Grécia e outra em Roma.

Zeus virava Júpiter, Ares virava Marte, Hera virava Juno e assim por diante.

Eu conheci primeiro os planetas, depois a mitologia. A palavra Júpiter não me lembra um homem barbudo sentado num trono: me lembra uma massa de gás turbilhonante de encontro a um vácuo estrelado.

Uma vez comecei a imaginar um universo alternativo onde os planetas do Sistema Solar são os mesmos, mas em sua versão grega. Em vez de Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e Plutão, seriam, pela ordem: Hermes, Afrodite, Gaia, Ares, Zeus, Cronos, Urano, Poseidon e Hades.

(Ao que parece, Urano tem o mesmo nome nas duas culturas.)

A Astrologia pega esse universo de coisas bem concretas e palpáveis, como um planeta, e os transforma em símbolos fugidios de uma fatalidade misteriosa e indecifrável. Influências boas e más, transições bruscas ou administráveis, todo um repertório de dramas e de almas e de destinos e de livres arbítrios.

Cada um de nós poderia criar uma astrologia própria, interpretando de alguma outra forma os dados crus da Astronomia. Pesquisando para a listagem acima, acabei sendo informado de que o trecho central do nosso Sistema Solar serve como uma espécie de árvore genealógica dos deuses: Marte é filho de Júpiter, que por sua vez é filho de Saturno, o qual é filho de Urano. Ao que parece, os nomes foram postos nesta ordem, com esta intenção.

Os signos têm essa simetria de doze que é uma coisa hipnótica. Dizem que o que há de mágico com o número 12 é o fato de ele se decompor e recompor com facilidade, em grupos de 2, de 3, de 4 ou de 6.  Qualquer estrutura ele se encaixa. Foi pensando nisso que escrevi muitos anos atrás um poema intitulado “Navegador”, que faz menção à “décima-terceira janela hexagonal do Universo”.

Os signos do Zodíaco têm a mesma função das cartas do Tarô ou das linhas do I-Ching. Eles não determinam nossa vida. Nada do que é nosso está “escrito nas estrelas”, nem nas cartas, nem nos búzios, ou seja lá no que for. São projeções: símbolos em aberto onde projetamos nossas interpretações num dado momento.

Um horóscopo é mais parecido com uma carta de Rorschach dos testes psicológicos do que com um mapa planetário. Vemos ali o que está dentro de nós, não o que está lá fora.

Dizer que Fulano de Tal é assim ou assado porque é virginiano ou aquariano é o mesmo que dizer que a pessoa é assim porque é de Oxóssi ou de Iansã. Existem arquétipos, e nós, porque somos humanos e crescemos dentro das culturas humanas, acabamos desenvolvendo características que correspondem a determinada faixa de uma lista de arquétipos que pode ser o Zodíaco, o Candomblé, o Tarô, etc.

Os signos não são realidade concretas, são projeções nossas. Tal como as constelações – que na verdade não existem, o que existe é um certo número de estrelas isoladas e distantes, sem nenhuma relação entre si, mas que o ponto de vista da Terra enxerga de maneira agrupada. E acaba vendo nelas uma cruz, um escorpião, um caçador...

O que existe de fato (e existe culturalmente, não fisicamente) são situações de vida e perfis de pessoa. Povos diferentes percebem esses tipos recorrentes e lhes dão nomes, personificações, e acabam criando mitologias inteiras, épicos entrecruzados que são uma das formas mais interessantes de literatura.

Achar que um astrólogo é necessariamente um charlatão é tão errado quanto pensar que ele está enunciando verdades científicas, concretas, que independem da consciência de quem interpreta e de quem ouve a interpretação.

A mitologia é uma literatura fantástica coletiva, cuja eficácia e poder atrator repousa no fato de que lida com tipos e situações presentes na vida real. Os signos não influem na minha vida, mas as interpretações que eu e um astrólogo podemos extrair deles, quando dialogamos, influi, sim, e muito.

Como diz a sabedoria popular, “feitiço bom é aquele que pega em quem não acredita”. Tudo depende do acreditar, do incorporar à própria consciência a fabulação criada por um “interpretador” a partir de uma carta de baralho ou da proximidade aleatória de algumas estrelas.











segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

4422) A máscara do tradutor (7.1.2019)



Diz-se que um romancista usa máscaras, uma coleção delas. A cada personagem que ele chama à ação, na narrativa, ele está botando uma máscara diferente.

O tradutor faz algo parecido, só que antes de botar as máscaras dos personagens a primeira que ele bota é a máscara do autor. Ele finge ser o autor para poder traduzi-lo, assim como um ator faz o mesmo se tiver que recriá-lo num palco ou numa tela.

O que o tradutor faz é psicografar o autor original. E fará isso tanto melhor quanto melhor se impregne desse autor, seja através da leitura de entrevistas, de biografias, de outras obras, de descrições. Porque em última análise o que um tradutor ambiciona é ser capaz de adivinhar o que o autor pensou para escrever o que escreveu. E ele faz isso mais ou menos uma vez por minuto.

Claro que não se está falando de telepatia nem de mediunidade. É algo simples, que fazemos em mil outras circunstâncias, na vida pessoal, vida profissional: mas na tradução literária isso fica muito mais visível.

Conhecendo um pouco a vida e a cabeça desse autor, o tradutor pode ter certeza de que tal frase é irônica, embora muita gente a leve ao pé da letra.

Ele pode entender que um adjetivo bizarro usado pelo personagem está substituindo um palavrão que ele tinha motivos para reprimir.

Pode ser capaz de, só no faro, reconstituir mentalmente o percurso rubegoldberguiano de um trocadilho infame. (E ser capaz de recriá-lo.)

O grande prodígio de arte de traduzir é que a um escritor basta ser ele mesmo, mas um tradutor tem que dizer como Mário de Andrade: “eu sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta”. Porque num momento ele está traduzindo uma peça de Shakespeare, noutro um romance policial de Cormac MacCarthy, depois uma história romântica de Jane Austen e em seguida um volume de contos humorísticos de James Thurber.

São as máscaras que ele precisa pôr no cérebro para captar o modo de pensar e de escrever de pessoas tão diferentes.

A arte do tradutor se parece, portanto, com a arte daqueles atores que imitam com perfeição a voz de qualquer pessoa, seja um parente, seja uma celebridade qualquer.

Parece-se também com os músicos capazes de numa mesma noitada de baile fazerem um cover impecável de um rock do Queen e de uma balada de Djavan.

O tradutor precisa perceber intuitivamente como alguma coisa é feita, e refazê-la de modo convincente. Ele não precisa ter a mesma capacidade do autor original na criação de enredos e da psicologia dos personagens, mas precisa sempre entender de que maneira o autor faz o que faz.

Reproduzir em português os pensamentos e as falas dos personagens de Henry James não é o mesmo de reproduzir os pensamentos e as falas de personagens de William Burroughs. São sistemas mentais distintos que ele precisa ser capaz de emular de forma satisfatória.

Voltando à questão da máscara: qual é o rosto verdadeiro de um tradutor? A resposta mais lógica é que não é nenhum, um tradutor só tem a máscara que está usando no momento. Seu talento não é o de criar a partir do Simples, e sim o de recriar a partir do Complexo. Num certo sentido, isso é tão difícil quanto ser um autor.

Nem todo grande autor, mesmo que domine com proficiência um ou mais idiomas estrangeiros, pode ser um bom tradutor. Talvez acabe lhe faltando esse talento para a despersonalização que o tradutor precisa ter. O talento de apagar seu Ego em proveito da obra alheia. Nem todo autor consegue isso.












quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

4421) Algumas leituras de 2018 - III de 3 (3.1.2019)




(conclusão)
PROSA CONTEMPORÂNEA

Memorial de Maria Moura (BestBolso) de Rachel de Queiroz foi talvez o romance que mais me impressionou este ano. Maria Moura é uma capitã de jagunços, uma espécie de Diadorim vestindo calças e montando a cavalo, mas sem ambigüidade sexual. O livro conta a criação, ao longo de muitos anos, de um valhacouto de assaltantes nas faldas da Serra do Padre. Os conhecimentos da autora sobre a História do Ceará dão solidez à narrativa, que é precisa e vai no osso. E a prosa é das melhores que o Brasil já deu. Límpida, forte, cheia de sutilezas inesperadas.

A árvore que falava aramaico e Cavalos de Cronos (ambos da Ed. Zouk, Porto Alegre) de José Francisco Botelho, são dois livros de contos onde o mainstream se alterna com o fantástico, e no segundo a prosa se alterna com a poesia narrativa. Botelho (que traduziu para o português obras de Shakespeare e de Conan Doyle, além dos Contos de Canterbury de Chaucer) é um narrador de prosa segura, rica de observação. Seus contos fantásticos exibem um sentimento ominoso que brota ao mesmo tempo da paisagem física e das memórias familiares. Há um pouco de Borges e de Kafka, mas nos melhores momentos ele evoca também os pesadelos ancestrais de Arthur Machen e Algernon Blackwood.

Days of Awe de A. M. Homes foi um volume de contos que traduzi para a Companhia das Letras. A autora tem uma prosa rápida, cortante, excelentes diálogos, e descreve um ambiente californiano meio surreal de tão específico; lembra os quadrinhos de Daniel Clowes. Aquelas histórias de classe média urbana onde uma coisa bizarra e surreal pode acontecer a qualquer instante.

A Colônia de Férias (Alfaguara) de Emmanuel Carrère. Publicado num volume conjunto com O Bigode, é a história de um menino amedrontadiço e fantasiador que se vê ilhado entre gente estranha, sendo que crimes hediondos ocorrem à sua volta. Carrère explora aquela linha romanesca bem francesa de descrever com minúcias todas as alternativas e contra-alternativas de pensamento de uma pessoa apavorada, arrastada por desejos que não compreende e aos quais tenta dar justificações pueris.



LIVROS SOBRE LIVROS

A Barca de Gleyre é um clássico, dois volumes das cartas de Monteiro Lobato para seu grande amigo, o tradutor e escritor Godofredo Rangel. São extensas discussões sobre mil assuntos mas principalmente literatura. Lobato, escrevendo para uma platéia de um só, era mais Lobato do que nunca. Poucos livros são capazes de revelar a este ponto, sem pose, no calor do momento, a paixão pela literatura.

A Marca do Z (Jorge Zahar Editor) de Paulo Roberto Pires conta a história da Editora Zahar, uma das editoras que fizeram a cabeça da minha geração, talvez a melhor editora de ciências sociais para o grande público. Cada capa de livro lido dá vontade de ler de novo. Um livro-homenagem cheio de revelações sobre as idas e vindas do mercado editorial antes, durante e depois dos anos da ditadura militar. E o retrato de um homem que amava os livros.

Em Memória de João Guimarães Rosa (Ed. José Olympio, obra coletiva) e Joãozito (Ed. José Olympio) de Vicente Guimarães são duas obras importantes sobre o escritor mineiro. O primeiro registra as numerosas homenagens logo após sua morte em 1967, inclusive os discursos na Academia Brasileira de Letras, e traz um ótimo material adicional sobre sua vida e obra. O segundo são as memórias de seu tio materno Vicente, que pela proximidade etária foi quase que um primo do escritor. Ambos são essenciais para conhecer o reflexo de sua personalidade e de sua obra sobre seus contemporâneos.

Autobiografia Poética (Ed. Autêntica) de Ferreira Gullar é um balanço comedido e frequentemente autocrítico do grande poeta sobre suas aspirações, paixões, desencantos e guinadas conceituais. Inclui alguns textos de prosa crítica sobre poesia, lúcidos e bem argumentados, como tudo que Gullar produziu.

A Arte do Romance (Companhia das Letras) de Milan Kundera é uma coletânea de artigos sobre a escrita. Algumas opiniões idiossincráticas, boas reavaliações da obra de seu conterrâneo Franz Kafka, de Jacques Diderot, e em geral um conjunto de reflexões que vale a pena ler e considerar.

O flâneur das duas margens (José Olympio) de Guillaume Apollinaire é uma coletânea de artigos do poeta surrealista sobre ambientes e personagens obscuros da Paris dos anos 1910. Poetas, donos de bar, sebistas, vagabundos, todos são retratados com riqueza de detalhes e de observação. Um mundo de cem anos atrás, mas que parece ainda vivo e a cores.

Shakespeare & Co (Casa da Palavra) de Sylvia Beach, é o volume de memórias, também do princípio do século 20, da livreira que se tornou a primeira editora do Ulisses de James Joyce. Como qualquer livro desse tipo, é um desfile de episódios pitorescos vividos por grandes escritores e artistas, suas excentricidades, suas polêmicas, seus pequenos gestos de generosidade ou de mesquinhez.









quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

4420) Algumas leituras de 2018 - II (2.1.2019)




(continuação)


FICÇÃO CIENTÍFICA E FANTASIA

Foi um ano em que também li pouca FC, por variadas razões, mas teve muita coisa boa.

A Trilogia de Terramar, de Ursula LeGuin (A Wizard of Earthsea, The Tombs of Atuan e The Farthest Shore) era uma leitura que eu vinha procrastinando há anos. Iniciada em 1968, a trilogia foi uma contribuição essencial de LeGuin à formação da literatura de fantasia nos EUA, registrando três fases sucessivas da vida do mago Ged. Uma das contribuições principais de LeGuin foi cristalizar a noção da magia como uma espécie de energia, onde nada se cria, tudo se transforma, cada prodígio tem um custo, e os riscos são proporcionais aos prêmios. Sem falar na prosa da escritora, um inglês límpido e clássico que evita os excessos retóricos de outros bons fantasistas.

Where Late the Sweet Birds Sang, de Kate Wilhelm. A morte de minha ex-professora na Clarion Workshop me levou a pegar de novo e desta vez ler até o fim este romance que já foi chamado, na época, de “o melhor livro sobre clones”. Num cenário pós-apocalipse, Kate imagina uma fazenda de uma família com dinheiro, tecnologia e coragem, onde os humanos-como-nós vão sendo substituídos por clones de si mesmos, a quem cabe viajar para longe do seu vale de origem e examinar o que restou da civilização. Um romance onde se contrapõem, em novas circunstâncias, a Sociedade Racional Antiemotiva e o Selvagem Instintivo-Individualista.

Mnemomáquina de Ronaldo Bressane (São Paulo, Ed. Demônio Negro). Bressane usa a prosa eletrificada, pop e intensa de autores como Thomas Pynchon e D. F. Wallace para falar de uma São Paulo pós-apocalipse, cibernética, delirante, numa cachoeira de pequenos detalhes que vão desde o surrealismo da FC new-wave até o hiperrealismo dos quadrinhos contemporâneos. Aquilo que os críticos chamam de trapézio sem rede, num ritmo de entontecer.

The Magic Toyshop de Angela Carter é o tipo de história que só essa autora seria capaz de levar a cabo: o rito de passagem de uma adolescente que a morte dos pais obriga a viver na loja de artigos mágicos de um tio tirânico e brutal, na companhia de primos que ele acha ameaçadores e fascinantes. Uma mistura de Charles Dickens com Neil Gaiman, com um ponto de vista feminino.

Nova de Samuel R. Delany. Uma space-opera com narrativa intrincada mas coerente, idéias ousadas de física e de astronáutica, prosa brilhante. É o que toda space-opera deveria ser, com personagens “maiores que a vida” mas verossímeis, lances teatrais, perseguições e vinganças ferozes, civilização galáctica bem imaginada. Um romance da mesma estatura de Duna de Frank Herbert ou de The Stars My Destination de Alfred Bester.

Piquenique na Estrada (Ed. Aleph, São Paulo) de Arkády e Bóris Strugátski. Um romance muito bom e que me pareceu uma fanfic de Stalker, de Andrei Tarkóvski, porque compartilha o ambiente e a premissa, mas se prende a outros episódios. (O livro, é claro, é bem anterior ao filme.) Alguns lugares da Terra receberam uma visita breve de alienígenas que nem se deram conta da presença da humanidade e foram logo embora, deixando atrás de si as Zonas, que são verdadeiros campos minados onde acontecem alterações bizarras da realidade.

peixes coloridos de alto-mar (Ed. Kafka, Curitiba) de Paulo Sandrini, é outro romance pós-apocalíptico, num vago Brasil futuro corroído pela chuva ácida e vítima de mutações bizarras. Um pai tenta criar a filha num ambiente brutal e decadente, em meio ao escambo constante de produtos essenciais, ao saque e à sujeira.

Clans of the Alphane Moon de Philip K. Dick é mais um que traduzi para a Suma de Letras. É a história de uma colônia manicomial terrestre, numa lua distante, onde os clãs se dividem pela doença mental de cada um: os esquizofrênicos, os paranóicos, os maníacos obsessivos, etc. As habituais quebras de realidade de Dick aparecem a todo instante, bem como sua mistura da filosofia existencial e a pulp fiction mais escancarada: boa parte das reflexões filosóficas vem de um “lodo viscoso de Ganimede”, uma gosma amarela que se esgueira por baixo das portas e se comunica por telepatia.


AUTORES PARAIBANOS

Se eu fosse botar aqui os cordéis que tenho lido ou relido, ia faltar espaço. Deixando os cordéis de lado, registro estes três títulos, para quem se interessar:

Memórias tristes do Rói-Couro de Pombal, de Jerdivan Nóbrega de Araújo. São as memórias de um freqüentador da zona boêmia de Pombal, contadas na velhice. Tem um viés nostálgico, mas sem embelezamento, e sem condenações morais. A vida de puteiro rememorada com carinho e dor por quem freqüentou puteiros sem culpa. O autor se inspirou em Garcia Márquez e suas Memórias de Minhas Putas Tristes.

Viajantes do Purgatório de Eilzo Matos. Uma cidadezinha do interior, suas fofocas, seu “muído” permanente de sexo e dinheiro, brigas por terras. Um cotidiano bem vivido, bem observado e bem descrito, cheio de detalhes verossímeis e observação de ambientes concretos. Alguém já disse que certas cidades interioranas são como um avião que roda, roda, e não levanta vôo. O mundo descrito por Eilzo Matos é exatamente isso.

As Conchambranças de Quaderna (Ed. Nova Fronteira, “Teatro Completo”) de Ariano Suassuna. A última peça de Ariano reúne três aventuras do anti-herói do Romance da Pedra do Reino, onde Quaderna deixa de lado sua face mística e cósmica e age como um autêntico trambiqueiro, enganador, costurador de intrigas, mentiroso, sedutor de moças entediadas... Mais uma vez é o cotidiano mesquinho e sem horizontes das cidades regidas com mão de ferro pela política, o poder e a corrupção.



(continua)