sábado, 13 de março de 2021

4683) A arte do nome do personagem (13.3.2021)



Vendo um documentário sobre o diretor Billy Wilder, austríaco de nascimento, e que só migrou para os Estados Unidos quando já era diretor de cinema profissional, fiquei sabendo que não foi nos EUA que ele ganhou esse prenome tipicamente norte-americano. Foi sua mãe que o batizou assim, porque era fã das aventuras de Billy The Kid.
 
É um desses casos de nome próprio de rara improbabilidade, porque se alguém me chamasse para fazer uma aposta eu diria que o nome de registro dele devia ser Wilhelm Wilder ou coisa parecida.
 
O nome era real, porém. Nomes de pessoas reais são atribuídos assim, muitas vezes por uma veneta, um palpite ou uma admiração dos pais, a quem geralmente cabe essa escolha.
 
Nomes de personagens são uma questão totalmente diversa, porque o leitor sabe que está lendo uma história fictícia e que todos aqueles nomes foram escolhidos pelo autor. De acordo com o ambiente, a época, etc., os nomes têm que ter uma certa verossimilhança, para não introduzirem um ruído na narrativa. E mesmo quando isso acontece, o ruído tem que ser plausível.
 
Uma vez eu estava hospedado numa casa e sentei para tomar café. A cozinheira estava preparando alguma coisa. O filho dela, um menino de uns dois anos, começou a chorar, fazendo manha por alguma coisa. E ela disse: “Pára com isso, Van Básten!  Não tem motivo nenhum pra ficar chorando!”.  Eu perguntei: “O nome dele é Van Básten? Por que?”  E ela: “É o pai dele, que só quer saber de futebol.” Para quem não sabe, o holandês Van Baasten foi um dos grandes atacantes do futebol europeu nos anos 1980-1990.


(Van Baasten) 
 
Existe verossimilhança nesse nome? Pra mim, basta ser verdadeiro para ser verossímil, mas se fosse num romance eu iria achar que era piscadela-de-olho do autor, pra mostrar que entendia de futebol.
 
O violonista Baden Powell foi batizado com esse nome em homenagem ao cara que fundou o Escotismo; hoje em dia, pelo menos no Brasil, ninguém sabe quem foi o escoteiro, mas muita gente conhece o músico.
 
Já vi muitos estrangeiros admirados com a quantidade de brasileiros cujo primeiro nome é Washington, Wellington, Nelson ou Lincoln. Sobrenomes ingleses ou norte-americanos são usados aqui como nomes de batismo. Talvez um leitor distante, na Tailândia ou no Irã, leia um livro brasileiro e ache forçada essa alusão histórica, sem perceber que aqui no Brasil é mais fácil você conhecer um cara chamado Washington do que um chamado Bráulio.

 
Como transpor essa sem-cerimônia para a ficção? Rubem Fonseca tem um conto ótimo (“A Força Humana”) em que o narrador pergunta a um cara como é o nome dele. O outro responde: “Vaterlu. Se escreve com dábliu.”  É plausível, sim, no contexto antropofágico brasileiro, inclusive no detalhe da grafia, que pessoas assim já mecanizaram mentalmente, repetem toda vez essa instrução pronta.
 
Como o personagem de Orígenes Lessa (“Nós, o mar e Conceição”), que se apresenta como Fulano de Tal Cavalcanti, e sempre insiste: “Com i... com i...”  Isso é plausível, isso é brasileiro, não é por outra razão que o “Big Brother” da TV Globo teve agora uma participante chamada Karol Conká. Nome que faz parte do espírito da língua neste começo de século, de um fervilhar constante de informações, de uma cultura de individualidades lutando para aparecer mais que as outras, precisando de uma brand, de uma tag, de um traço diferenciado para não morrer invisível no meio de um milhão de seres igualmente diferentes.


(Scarlet e Abidoral)
 
Tem pessoas que têm o que a gente chama de “nome de personagem”, porque são nomes fora do comum, com sonoridade especial, com alusões, etc.  Eu sempre achei que Scarlet Moon de Chevalier, nome da saudosa jornalista carioca, merecia ser nome de uma personagem daqueles romances tipo Rebecca.  O cantor e compositor cearense Abidoral Jamacaru tem esse nome nordestiníssimo que além do mais é um octossílabo perfeito. Quem botasse nomes assim num personagem talvez achasse estar forçando a barra; mas esses são nomes reais, de documento, de lista de chamada no colégio.
 
Não somente aqui no Brasil, claro. Eu já sugeri que se fizesse um filme sobre a vida do cantor Engelbert Humperdinck e quem o interpretasse fosse Benedict Cumberbatch. Isso é lá nome de gente?! Me traz à memória o começo do romance The Voyage of the Dawn Treader, de C. S. Lewis, que principia assim: “Havia um rapaz que se chamava Eustace Clarence Scrubb, e ele era quase merecedor disso.”
 
Carlos Drummond tem um poema famoso, “Quadrilha”, onde cada personagem se apaixona por alguém que já está apaixonado por outra pessoa. Os nomes deles são João, Teresa, Raimundo, Maria Joaquim, Lili... e no final aparece um tal de J. Pinto Fernandes cujo nome é dolorosamente real, veraz, verossímil, nome de um brasileiro de carne, osso e chapéu. É o personagem realista que entra num poema romântico ao qual não pertencia e leva consigo uma bonitinha.
 
Eu tenho uma certa aversão a personagens de romance que ostentam nomes com referências clássicas evidentes demais. Hércules, Orestes, Narciso, Afrodite, Orfeu... quando numa história moderna aparece um personagem assim, eu sempre acho que o autor está querendo dar um upgrade num personagem que não se sustenta por si mesmo. Gosto de personagens que têm nomes “pela primeira vez”, e tornam-se tão fortes que esse nome não terá talvez uma segunda aparição. Não imagino alguém de hoje batizando um personagem de Riobaldo, Diadorim, Policarpo Quaresma, Macunaíma...  


Em A Ascensão do Romance (“The Rise of the Novel”, 1957), Ian Watt discute justamente essa transição, por volta do século 18, entre os nomes de personagens de ficção que pretendiam ter um caráter alegórico, ou meramente alusivo, e os nomes que buscavam apenas uma certa verossimilhança. Que parecessem “nome de gente”, como se diz.
 
Ele analisa principalmente, nesse livro, as obras de Daniel Defoe (Robinson Crusoe, Roxana, etc), Samuel Richardson (Clarissa, Pamela etc) e Henry Fielding (Tom Jones etc). São obras fundadoras do romance moderno inglês, e Watt examina justamente os modos de narrar aperfeiçoados ou inventados por ele e que desembocaram no grande romance realista do século 19. A nomeação dos personagens faz parte desse processo.
 
Um dos argumentos de Watt é mais ou menos o de que a literatura anterior a essa época tinha intenções alegóricas, universalizantes, e isso se refletia em seus nomes. Também houve isso na literatura brasileira: o costume de batizar um homem simples e honrado de Seu Inocêncio, uma esposa casta de Dona Fidélia, um indivíduo truculento ser chamado de Brutus e assim por diante. Nomes próprios que universalizavam o caráter; quem estava ali não era uma pessoa específica, era um “tipo”.


(Daniel Defoe, 1660-1731; Samuel Richardson, 1689-1761; Henry Fielding, 1707-1774)
 
Diz ele:
 
Defoe usa os nomes próprios de modo displicente e às vezes contraditório; porém raramente escolhe nomes convencionais ou extravagantes (.) A maioria dos seus personagens, como Robinson Crusoe ou Moll Flanders, tem nomes e alcunhas completos e realistas. [Em Samuel Richardson] as conotações românticas de Pamela esbarram no sobrenome comum de Andrews; Clarissa Harlowe e Robert Lovelace são batizados adequadamente; quase todos os nomes próprios de Richardson, de mrs. Sinclair a sir Charles Grandson, parecem autênticos e condizentes com a personalidade de seus portadores. (trad. Hildegard Feist)
 
Era uma época em que a literatura de ficção se propunha a criação de indivíduos plausíveis, ambientes plausíveis, acontecimentos plausíveis, num esforço semelhante ao da pintura figurativa quando começou a dominar a reprodução fiel das imagens conforme nossos olhos as percebem, pelo uso da perspectiva, do sombreado, etc.
 
Não que, como vimos no caso de Richardson, não haja lugar no romance para nomes próprios que de algum modo são adequados à personagem em questão, porém essa adequação não deve interferir na função primordial do nome: mostrar que a personagem deve ser vista como uma pessoa particular, e não como um tipo. (Cap. 1, C)
 
Embora geralmente a crítica trate isso como uma evolução, nenhuma função passada se perde de todo. Existe espaço, sim, para personagens alegóricos que não representem um ser humano real, mas uma característica do caráter individual ou do papel social que ele representa. 

Se Ariano Suassuna chama seu rico avarento de Euricão (O Santo e a Porca) o duplo sentido desse nome certamente não lhe escapou; mas quando chama outro de Clemente Hará de Ravasco Anvérsio (no Romance da Pedra do Reino) o que há de sugestivo em cada termo acaba se amalgamando num ideograma único e raro, um personagem único e irrepetível como um ser humano, por mais que esteja transfigurado pelo estilo régio do amanuense.
 


(”A Pedra do Reino”, imagem de Carlos Bêla, TV Globo)