sexta-feira, 17 de setembro de 2010

2349) O Ulisses turco (17.9.2010)



Considerado pelo escritor Joshua Cohen como o equivalente turco ao romance de James Joyce,
Huzur (1949) de Ahmet Hamdi Tanpinar, foi traduzido em inglês como “A Mind at Peace”. É, como o Ulisses, uma história que transcorre ao longo de 24 horas, recheada de flash-backs que a expandem até cerca de 400 páginas. Diz Cohen: 

“O grande romance de Tanpinar também se desenrola em 24 horas, mas em Istambul às vésperas da II Guerra Mundial. A Turquia está dividida entre o Oriente e o Ocidente, assim como Mumtaz, um órfão que planeja ser autor de romances históricos, está dividido entre uma tradição decadente e o seu amor por uma mulher mais velha e divorciada, Nuran, cujos defeitos e seduções são completamente do mundo moderno”. 

O livro é dividido em quatro partes, intituladas a partir de personagens. Na primeira, “Ihsan”, o menino Mumtaz fica órfão e é adotado pelo primo mais velho Ihsan, que o envia para estudar na França e se encarrega de sua educação humanística e literária. Na parte II, ele conhece Nuran e se apaixona por ela; os dois conversam extensamente sobre a modernização da Turquia e a necessidade de aceitá-la sem perder o vínculo com sua cultura tradicional. A parte III tem o nome de Suad, um antigo namorado de Nuran que reaparece em sua vida, gerando uma tensão sobre Mumtaz e fazendo-o reavaliar sua própria vida. A parte IV tem o nome de Mumtaz e corresponde, mais ou menos, a um rito de passagem para a maturidade, no momento trágico em que as tropas nazistas invadem a Polônia, deflagrando a guerra. 

Numa resenha no saite do Los Angeles Times (http://tinyurl.com/bt3cay), Richard Eder observa que a tradução inglesa é cheia de excentricidades e dá a impressão de um inglês falado com sotaque, mas ao mesmo tempo observa que isto “tem a qualidade arrebatadora de um tal sotaque, comunicando ao leitor a pulsação de um mundo que lhe é estranho”, e pergunta, com espírito: “Será que recordaríamos Marleme Dietrich se ela falasse com sotaque britânico?”. 

A Literary Fiction Review (http://tinyurl.com/25pmzw6) destaca a dualidade de Istambul, metade na Ásia, metade na Europa, e os percursos incessantes de Mumtaz e Nuran através do Bósforo. E cita um trecho do romance: 

“É somente para a Humanidade que o Tempo, monolítico e absoluto, se divide em dois; e porque o Tempo, essa fosca lanterna, essa luz fuliginosa, luta para continuar a arder dentro de nós, porque ele introduz um cálculo tão complexo no seio das coisas mais simples, porque nós medimos a sua passagem pelas nossas sombras projetadas no chão, ele separa a vida e a morte, e, como o pêndulo de um relógio, nossa consciência oscila entre dois polos criados pela ela mesma. A humanidade, prisioneira do tempo, desespera-se tentando escapar dele. Ao invés de se entregar ao tempo, ao invés de fluir ao longo dele, com todas as outras coisas, nessa corrente imensa como um continente, a humanidade tentar enxergar o Tempo pelo lado de fora”.







2348) “Pesquisas sobre a sexualidade” (16.9.2010)



Adolescentes se reúnem num terraço, numa noite de sábado, tomando cerveja. Alguém propõe: “Vamos jogar o Jogo da Verdade!”. Arrumam-me em círculo e sorteiam um deles, que jura responder as perguntas dos outros dizendo somente a verdade. O mais interessante é que nessas brincadeiras ninguém pergunta se ele colou na prova, ou se já furtou dinheiro dos pais, ou se já fumou maconha. Perguntam sobre sexo. “Você já fez sexo oral?...” E antes mesmo da resposta todos riem: kkkkkkkkk...

Não sabem, mas estão praticando um dos muitos jogos que o grupo Surrealista praticou em Paris na década de 1920, sob a batuta de gênios da poesia como André Breton e Paul Éluard. Os Surrealistas não sorteavam os respondedores, mas promoviam reuniões em que faziam perguntas, sobre as respectivas vidas sexuais, que tinham de ser respondidas por todos com franqueza absoluta. Não era preciso jurar. A ética surrealista, a paixão surrealista, o fulgor surrealista que os iluminava fazia com que essa franqueza não fosse um problema, e sim uma forma de êxtase, de exaltação. Outros tempos.

Doze dessas reuniões (entre janeiro de 1928 e agosto de 1932) foram registradas por escrito. Duas delas foram publicadas na revista oficial do movimento, La Révolution Surrealiste, sob o título geral de “Recherches sur la sexualité”. Anos depois, as anotações manuscritas das doze sessões foram encontradas nos arquivos pessoais de André Breton e publicadas sob o mesmo título, com organização de José Pierre (Ed. Gallimard, 1990). A edição que li é uma tradução inglesa, sob o título Investigating Sex – Surrealist Discussions 1928-1932 (Verso, 1992). Entre os participantes estão Breton, Éluard, Max Ernst, George Sadoul, Man Ray, Antonin Artaud, Louis Aragon, Yves Tanguy, Jacques Prévert, Benjamin Péret, etc. Entre as mulheres (uma previsível minoria), Nusch Éluard, Jeannette Tanguy, Katia Thirion, Simone Vion e outras. A maioria deles participa apenas de poucas sessões; Breton é o único que está presente em todas.

Os Surrealistas discutem sexo e amor por todos os ângulos, falam de perversões, de fantasias, discutem a mecânica do orgasmo, a diferença entre o gozo do homem e o da mulher. Interrogam-se sobre os aspectos quantitativos das relações sexuais, discutem sonhos eróticos, questionam-se sobre sexo coletivo, homossexualismo, masturbação, infidelidade, íncubos e súcubos... O conceito de “Amor Louco” (“amour fou”), que tanto exploraram na poesia, no romance e no cinema, surge insistentemente. O conceito de amor surrealista era o sonho de encontrar, como disse Rimbaud, “a verdade num só corpo e numa só alma”. O amor era “um fato manifesto que nada fizemos para produzir e que, num dia específico e diante de um rosto específico, encarnou-se misteriosamente”. Ou, como disse Aragon: “O milagre: como pensar no que não é o milagre quando o milagre está em seu vestido noturno?”.