sexta-feira, 3 de abril de 2015

3779) Fim dos tempos (4.4.2015)


(ilustração: Saul Steinberg)

Um dia ainda vamos lembrar dos tempos difíceis de hoje e sentir saudades deles, e vamos chamá-los, com nostalgia, “o tempo em que tínhamos tudo”.  Porque já estaremos num tempo em que vai ser mais importante ter uma arma e munição à cabeceira do que comida no refrigerador.  A humanidade gosta de correr riscos, ou se não gosta pelo menos dá essa impressão, a julgar pelos riscos desnecessários que corre. Um futuro tipo Mad Max 2 não é mais impossível do que um futuro sem guerras, e ainda existe tanta gente que luta por um mundo sem guerras. “Pobrema”, diria o coronel Galdino, “é que guerra engorda mais o putufu”.

Se a vida é de fato um sonho, como queria o poeta, talvez não seja o sonho de algum redator de Hollywood, e sim o pesadelo de algum professor de filosofia lituano da década de 1930. Em seu mundo paralelo, ele usou, para descrever o mundo industrial pós-moderno, a expressão “cobra que se devora a si mesma deixando apenas matéria negativa em seu lugar”. A imagem o deixou tão fascinado que ele foi o primeiro humano em mais de dois séculos a dar uma guinada na História pela mera intensidade de um pensamento. O mundo em que vivemos é o que ele vem pensando desde então, numa dimensão onde não existe morte.

O parágrafo acima é a sugestão para um começo de conto fantástico, mas seria possível torná-lo mais FC. Digamos que essa imagem mitogeométrica foi divulgada por um grupo de cientistas em experimentos quânticos, e foi ela que sugeriu, a certa altura, a formulação relativamente simples de algum abstruso entrelaçamento infratômico. A descoberta desencadeou, entre outros efeitos medianos, a criação de um videogame simulacrônico onde cada um de nós é apenas um algoritmo ensinado a pensar como cada um de nós. Nós, a Terra, nosso universo, somos um videogame para alienígenas ociosos e com uma dimensão a mais que nós.  Jogam conosco com a mesma sede de rejuvenescimento que fazia os deuses do Olimpo descerem aos bailes rurais da Grécia.

O Universo é um “Show de Truman” onde Truman somos sete bilhões de inadvertidos, quebrando a cabeça com os problemas daqui, esquentando o sangue com as patifarias daqui, perdendo o sono por causa das incertezas daqui. E o tempo todo, como naqueles contos do tempo do romantismo, “era tudo um sonho”. Tudo um jogo, não menos honroso que um xadrez, não menos desfrutável do que se fosse um futebol. O mundo não é real? Que seja, mas cada hipótese do Real é um conjunto de regras. É só tê-las em mente e aplicá-las a uma pseudo-existência qualquer. O jogo é para ser jogado, a vida é para ser vivida, mesmo que a gente descubra que é de mentira.