quinta-feira, 30 de abril de 2009

1004) Freud explica o Unheimlich (4.6.2006)



Um conceito fundamental da Literatura Fantástica é o que Freud chamou “das Unheimlich”. O equivalente inglês é “the Uncanny”, que meu dicionário Webster traduz assim: “Estranho, misterioso; sinistro; excepcional, incomum (p. ex., ‘uncanny ability’, habilidade excepcional); fantástico, sobrenatural; (dialetal) perigoso”. Mike Ashley (The Encyclopedia of Fantasy, ed. John Clute & John Grant), explica: “Embora usado com freqüência para descrever qualquer coisa estranha ou inusual, o sentido estrito da palavra se refere a algo além do nosso conhecimento, além do nosso alcance, portanto não é necessariamente algo sobrenatural. Tzvetan Todorov, em sua classificação do Fantástico, colocou o “uncanny” no extremo mais racionalizado de sua escala. Contudo, já que ele está fora do nosso entendimento, costuma trazer consigo conotações óbvias de medo, e por isto o termo é frequentemente usado tanto em relação ao Horror quanto ao Sobrenatural.”

Decidi recorrer pessoalmente ao Dr. Freud. Em seu artigo clássico sobre o tema ele diz que o “Unheimlich/Uncanny” não deriva seu terror de alguma coisa externa, estranha ou desconhecida, mas, pelo contrário, de algo estranhamente familiar, que tentamos afastar de nós, mas que resiste aos nossos esforços. Freud lança mão de um pequeno episódio autobiográfico para exprimir essa sensação. Diz ele que certa vez estava visitando pela primeira vez uma cidadezinha italiana, numa tarde quente de verão, quando, caminhando sozinho e a esmo, descobriu que tinha ido parar numa área que ele, pudicamente, evita nomear, mas descreve assim:

“Encontrei-me num bairro sobre cuja natureza eu não poderia ficar em dúvida por muito tempo. Nas janelas das pequenas casas eu via apenas mulheres maquiladas, e apressei o passo para afastar-me daquela rua estreita na próxima esquina. Depois de andar por algum tempo sem pedir instruções, de repente vi-me de volta à mesma ruela, onde minha presença já começava a atrair as atenções. Apressei o passo novamente, somente para descobrir, depois de tomar outro rumo, que estava desembocando no mesmo lugar pela terceira vez. Nesse instante fui invadido por um sentimento que posso apenas denominar de ‘Unheimlich’, e tive um profundo alívio quando me vi de volta à pequena ‘piazza’ por onde havia passado um pouco antes, sem me aventurar em outros passeios de descoberta”.

Agora me digam: tem história mais freudiana do que esta?! Um respeitável médico austríaco visita uma cidade estrangeira, onde ninguém o conhece. Aí sai para passear sozinho. De repente, não mais que de repente, percebe que chegou na Zona. Como diabo o senhor chegou ali, Dr. Freud? Que acaso, ou distração, o levou justamente ao Rói-Couro local? E quando quis sair de lá, por que quis fazê-lo “sem pedir instruções”, e acabou voltando? E por que chamou a isso “passeios de descoberta” (“voyages of discovery”)?! Dr. Freud, Dr. Freud... Conte essa história direito!!

1003) Ainda o WTC (3.6.2006)


(foto: James Nachtwey)

Os Estados Unidos são um lugar úmido e ensolarado onde floresce qualquer semente exótica, principalmente aquelas trazidas por um semeador de más intenções. O país inteiro tem sido uma estufa privilegiada para aquilo que chamamos de “Teorias das Conspirações”, aquelas histórias mirabolantes e paranoicamente plausíveis que nos explicam tudo que existe por trás de tragédias inexplicáveis como a queda de um avião ou de eventos aparentemente anódinos como o bater das asas de uma borboleta.

Num país que disseca o assassinato de Kennedy há mais de 40 anos, o atentado ao World Trade Center em 2001 é um mote que qualquer conspiracionista que se preze sente-se obrigado a ficar glosando até o fim dos tempos. Numa palestra recente em Nova York, um deles afirmou: “Estou aqui para desmontar esse mito ridículo, esse conto-de-fadas absurdo de que aquele atentado foi a obra de dezenove fanáticos, armados com estiletes enviados por um sujeito barbudo que mora no fundo de uma caverna”.

Eu me identifico bastante com algumas dessas teorias (ver “Mistério no World Trade Center”, 2.2.06). Tem muita coisa estranha. Segundo as autoridades, numa rua próxima ao WTC foi encontrado (intacto) o passaporte de um dos terroristas, que estava na cabine do avião no momento do choque. Em matéria de história mal contada por um governo, essa bate todos os recordes. Me lembra uma novela da Globo em que no último capítulo o autor de um assassinato misterioso é descoberto porque a polícia se lembrou de fazer uma nova busca no local do crime, e achou lá a carteira de identidade do assassino, que a deixou cair inadvertidamente durante a fuga!

Nunca um edifício com estrutura de metal desabou por causa de incêndio. Por que motivo naquele dia desabaram três, inclusive o WTC 7, que não foi atingido por aviões? Se o combustível dos aviões queima a 1.800 graus Fahrenheit e o aço derrete a 2.700 graus, como se explica que as torres tenham “derretido” em apenas 56 minutos, como no caso da Torre Sul? Como se encontrou o passaporte de um dos terroristas, e as duas caixas-pretas foram destruídas? E como se explica a intensa negociação de ações da American Airlines e United Airlines, as duas empresas envolvidas, poucos dias antes dos ataques? Quem faz estas perguntas é um cara chamado Webster Tarpley, autor do livro 9/11 Synthetic Terror: Made in USA. Para ele, o 11 de setembro é algo parecido com o ataque de Pearl Harbour em 1941: segundo alguns historiadores, o presidente Roosevelt estava informado de tudo, mas deixou o ataque acontecer para poder declarar guerra ao Japão sem ter que explicar muita coisa.

Sou um homem ocupado, mas se você, caro leitor, quiser aprofundar o assunto, vai encontrar espaços virtuais como “911truth.org,” 911forthetruth.com,” “911truthla.org,” “nakedfor911truth.com,” “911truthemergence.com,” “911citizenswatch.org,” “911research.wtc7.net,” “911review.com”, sei lá o que mais. Não seja o último a ficar sabendo.

1002) O rabo do jumento (2.6.2006)


(Elino e o jumento)

Nos meus estudos autodidatas de Filosofia, me deparo com uma questão insolúvel: como definir o que é Grande Arte e o que não é? Precisamos de critérios universais, como em qualquer definição filosófica que se preze. Mas é possível encontrar critérios estéticos universais para justificar por que razão considero “O rabo do jumento”, do recém-falecido Elino Julião, uma boa música?

Reza a lenda que Elino tinha um jumento que um dia, por descuido seu, invadiu o roçado do vizinho, um tal de Nascimento. Era um sujeito metido a brabo, que em represália puxou a peixeira e cortou o rabo do bicho. Quando Elino protestou, o cara ameaçou: “Cala a boca, senão faço a mesma coisa com você”. Mesmo não tendo rabo, Elino achou mais prudente se calar. Todo mundo nas redondezas ficou chocado ao ver o jumento naquelas condições, perguntou quem foi o autor da maldade, e Elino calado. O vizinho começou a ter remorsos. Um dia foi lá, e propôs a Elino pagar-lhe uma indenização. Aí o compositor saiu-se com a frase memorável: “Eu não quero pagamento, Nascimento. Eu quero é outro rabo pro jumento”.

Um episódio exemplar, até pelo grau de absurdo envolvido na ameaça (“Eu faço o mesmo com você!”) e no pedido final (“Eu quero é outro rabo pro jumento”). Platão e Aristóteles certamente elogiariam sua economia de meios. Tem uma função educativa e revelatória, equivalente à das fábulas animais de Esopo, aqueles episódios alegóricos típicos das pequenas comunidades rurais e pastoris. A canção tem poder de síntese (uma história complexa narrada em poucas linhas). Parece ter brotado espontaneamente (que letrista resiste a esta rima dada de graça pelo Acaso, “jumento/Nascimento”?). Como em toda boa canção, a melodia potencializa a letra. É triste, lamentosa. Em alguns momentos, ergue-se para acompanhar o protesto do autor: “Veja pessoal, que mau elemento! Não sei se o animal é ele ou o jumento!”), mas cada estrofe se conclui retornando ao mesmo refrão, monótono, teimoso, inflexível, mesma letra, mesma melodia: “Eu quero é outro rabo pro jumento”. São três acordes sucessivos, implacáveis (no tom de lá menor, os acordes de fá maior, mi maior com sétima, e lá menor).

Grande Arte? Não sei, mas, por que não? Talvez não seja uma obra-prima da MPB, talvez não seja um dos 50 maiores xotes de todos os tempos, periga não ser nem uma das 10 melhores canções de Elino Julião. Mas, julgada pelos critérios de sua forma e de sua matéria, é uma canção que surpreende pela originalidade (alguém conhece outra sobre o mesmo tema?), agrada pela concisão, faz rir pelo absurdo da situação narrada. Tem verdade social, tem verossimilhança psicológica. O personagem-narrador é um “caba” teimoso, tipo Seu Lunguinha ou Seu Mandury, muito familiar ao público que ouve canções assim. Acham que estou tirando leite de pedra, companheiros? Oxente, faz mais de 50 anos que a crítica tira leite daquela pedra de Carlos Drummond, e ela ainda não secou.

1001) Por que estudar matemática (1.6.2006)



Li na Internet um ensaio com este título assinado por Espen Andersen, que ensina matemática numa universidade da Noruega. Pelo nome, não dá para saber se Espen é um professor ou uma professora, o que não deixa de ser uma maneira adequadamente matemática de considerar um indivíduo. Aliás, a palavra latina “indivíduo” é também uma metáfora matemática: in (negativa) + dividuo (divisão), aquilo que não pode mais ser dividido, a unidade básica. É o mesmo que o grego “átomo”: a (negativa) + tomos (divisão). Espen nos dá alguns conselhos valiosos sobre a importância de entender as coisas matematicamente.

“Estude matemática para poupar tempo na vida universitária”. Vai exigir uma certa quebração-de-cabeça na adolescência, mas uma vez chegado à Universidade você será capaz de em poucos segundos interpretar um gráfico ou uma fórmula, e entender como aquelas coisas se relacionam entre si, enquanto colegas menos preparados levarão vários minutos para saber a que corresponde cada fatia colorida daquela “pizza”. Diz Espen: “A matemática é uma linguagem mais rápida e mais eficaz que as outras linguagens. Quem a domina, trabalha com mais eficiência, e trabalha menos que os demais”.

“Estude matemática porque ela aparecerá cada vez mais no seu futuro”. É bom ir se preparando para viver num mundo em que jornalistas e políticos falarão menos e analisarão mais, em que mecânicos terão que lidar com chips embutidos tanto quanto lidam com chaves inglesas. A matemática e seus processos lógicos nos ajudam a entender tanto o funcionamento de mecanismos domésticos quanto os acontecimentos econômicos e militares do mundo em geral.


“Estude matemática porque ela é criativa”. Muita gente pensa que o pensamento matemático é mecanizado, repetitivo, o contrário do pensamento criativo. Isto é um absurdo. A matemática tem regras; apenas isto. Basta que saibamos a que se referem estas regras, e como funcionam; a partir daí, a criatividade está em saber interpretá-las e aplicá-las, e o céu é o limite. Saber relacionar as grandezas, as formas, os tempos e espaços, as medidas, as variações, as séries e progressões, é um desafio constante para nossa imaginação e inteligência. Basta saber quais são as regras.

“Estude matemática para perder menos dinheiro”. Quando multidões de idiotas entram em “pirâmides” ou em outros esquemas infalíveis para ganhar dinheiro, eles só o fazem porque não entendem patavina de matemática, e são incapazes de enxergar o conto-do-vigário que lhes está sendo aplicado. Se você entende de probabilidades, estatísticas, percentagens, juros, tem em mãos uma arma poderosa para lidar com bancos, Bolsas de Valores, empréstimos, financiamentos, compras a crédito. Pode comparar dois contratos ou duas ofertas bem diferentes e perceber em poucos minutos qual oferece mais vantagens. Saber matemática talvez não torne você rico, mas certamente tornará mais difícil que alguém fique rico às suas custas.

1000) 1.000 (31.5.2006)



Não sei se você estava contando, caro leitor. Eu estava. Este é o artigo número 1.000 que publico aqui nesta coluna no “Jornal da Paraíba”, desde 23 de março de 2003, quando estreei neste espaço com o texto “Palavras que ficam”. Mil artigos quase diários (o jornal não sai nas segundas-feiras), sem ter falhado um dia sequer. Não digo para me gabar, mas para reafirmar um princípio da minha ética literária: se quer ser escritor, escreva todo dia.

Escrever todo dia faz parte do nosso batente, e aqui tiro o chapéu a todos os coleguinhas deste jornal, colunistas ou redatores anônimos, que batem ponto nestas páginas com suas idéias, sua verve, sua arte e ofício. Tin-tin, companheiros! O jornalismo é mais próximo da Literatura Oral do que da Literatura. É uma forma fugaz de permanência, uma paradoxal oralidade impressa, típica de nossa época.

Espero não ter dito muita besteira ao longo deste tempo. Este era o meu maior medo quando fui convidado por Rômulo Azevedo e Luís Carlos de Sousa e passei um ou dois meses negaceando, até ser convencido pela pertinácia e pela diplomacia de Guilherme Lima. Tinha medo de ficar sem assunto, e de me repetir com freqüência. No frigir dos ovos, acho que a coisa está indo bem, até porque quando abro a porta do meu Depósito de Assuntos vejo uma imagem parecida com aquele último plano de Os Caçadores de Arca Perdida. Material não falta.

Aqui escrevo o que me dá na telha, uso o vocabulário que me convém, defendo as idéias que me parecem corretas, falo sério quando me apraz e tiro onda quando tô a fim. Há quem discorde do que digo, mas ninguém interfere no meu texto. Aqui reencontrei amigos de longa data como Sílvio Osias e Láuriston Pinheiro, e aqui acompanho o surgimento de uma nova geração de jornalistas jovens e promissores como Astier Basílio, André Cananéa e o recém-contratado Zé Nêumanne. E estendo este cumprimento e esta saudação aos demais colegas, com quem não tenho o prazer de conviver de perto, pois a verdade é que, graças aos recursos do ciberespaço, moro a 2 mil km de distância e só piso na redação duas ou três vezes por ano.

Espero que o leitor releve esta pausa de hoje na minha discussão dos grandes problemas mundiais (como a arte do palíndromo ou os avanços da robótica) para estes cinco minutos de papo descontraído junto ao bebedouro. Depois de mais de vinte anos morando longe, o “Jornal da Paraíba” me trouxe de volta à Paraíba, onde, como tantos outros que saíram de mundo afora por terem sonhado com um tesouro, acabei descobrindo que meu tesouro estava no lugar de onde parti. Mas, como dizia o poeta, e como cantávamos ao violão tantas vezes nas madrugadas frias de Campina, era “como se ter ido fosse necessário para voltar”. Todos os dias estou de volta, emocionado, porque embora minha cabeça esteja sempre passeando pelas galáxias e eu tenha aspirações secretas de ser eleito Síndico do Universo, é aqui que está o meu coração, sras e srs.