quinta-feira, 31 de agosto de 2017

4265) O roteiro e a história (31.8.2017)




("A lista de Schindler")


Um artigo que recente de Tim Long discute uma das normas de roteiro que eu vejo apregoadas com mais frequência. E apregoada com razão, digo logo antes de combatê-la.

É aquela norma que diz mais ou menos: “Só escreva no roteiro o que pode aparecer na tela.”  Só escreva o que pode ser captado por uma câmera e um microfone, ou seja, o que pode depois ser visto e ouvido pelo espectador.

Uma defesa bem humorada e bem fundamentada desse princípio é feita por Hugo Moss no seu esguio e indispensável Como formatar o seu roteiro (Rio: Aeroplano, 2002, 32 págs.). Diz ele:

Outro erro comum, além de (d)escrever demais, é incluir fatos que dificilmente são possíveis de capturar com a informação disponível na tela. Ex.:

EXT. ESTRADA – DIA
Um carro desce uma estrada em direção ao Rio de Janeiro. Dentro, um grupo de músicos, cujo cantor é um homem escuro com cabelos curtos, como um punk do Terceiro Mundo. É Jorge Salgado, que está chegando ao Rio para fazer dois shows gratuitos na praia da Ipanema.

Evidentemente, vendo só um carro descendo uma estrada, é difícil imaginar como a audiência poderá saber detalhes sobre os ocupantes, muito menos adivinhar o motivo específico da viagem. Essas informações teriam que ser inseridas na história de uma outra forma (visual), se é que são fundamentais, e se não, serem descartadas.

Em momentos assim, nós, roteiristas, nos deixamos arrebatar pela embriaguez narrativa e começamos a contar a história com palavras, como se fosse um romance, ao invés de simplesmente descrever uma sucessão de imagens e ações visuais.

Esses aspectos subjetivos contaminam incontáveis roteiros, uns mais, outros menos, mas sempre deixando que o modo literário de narrar vaze para dentro do roteiro, que não admite muitos dos seus recursos.

O próprio Hugo Moss se oferece logo adiante para pagar um almoço para quem reconhecer o filme em cujo roteiro lê-se esta indicação:

Geraldo bota o chapéu, faz um movimento imperceptível com a cabeça e sai.

Filmar um movimento imperceptível é um dilema para um diretor (pra nem falar no pobre do ator que precisa executar esse paradoxo quântico).

São literatices, e nenhum de nós está a salvo delas. E não pertencem apenas ao cinema; infiltram-se em outras formas de escrita, inclusive no teatro. Wilson Martins, criticando o teatro brasileiro oitocentista, registra o heroísmo requerido ao ator que numa peça qualquer vê-se solicitado a obedecer a esta rubrica: “Fulano (empalidecendo) - ...

É o cacoete do romance, de um outro tipo de narração infiltrando-se onde não é chamado.

Mas... nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Tendo dado razão a Hugo Moss, num extremo, preciso dá-la igualmente, no extremo oposto, a Tim Loing, neste texto no saite No Film School:


Long começa logo dizendo que “não existe uma única maneira correta de produzir um roteiro”, e que tudo que funciona pode ser utilizado, e que muitos roteiristas deixam-se dominar a tal ponto pelo conceito de “regras” que não conseguem pensar fora delas.

A maioria das regras da narrativa cinematográfica surgiu num certo momento através de artistas que estavam tentando se livrar das regras anteriores.

Long questiona a máxima de que “só podemos escrever o que pode ser visto ou filmado”, e cita o recho de roteiro abaixo, de Steven Zaillian para A Lista de Schindler:

EXT. – BALCÃO DE GOETH – MOMENTOS DEPOIS – MANHÃ
Goeth sai ao balcão vestindo apenas camiseta e calção, e dali fica contemplando o campo de trabalhos forçados, seu campo de trabalhos forçados, seu reino. Satisfeito com essa visão, até um pouco espantado, ele faz lembrar Schindler olhando para seu próprio reino, sua fábrica, tal como ele gosta de fazer através de sua parede de vidro.

A vida é maravilhosa. Goeth empunha um rifle.

De minha parte, acho necessário que o autor do roteiro informe, ao diretor, elenco e equipe, os sentimentos que devem existir por trás de cada cena. Não creio que isso seja a cobrança de uma nuance impossível de filmar; nem que seja uma exigência abstrata que o ator não tem como cumprir. Existe um pensamento, um clima, uma emoção subjacente à cena. Cabe aos membros da equipe que leem o roteiro encontrar um modo de passar isto para o espectador, cada qual com seus recursos.

Outro exemplo dele, desta vez de Barry Jenkins, no premiado Moonlight:

KEVIN
Onde você vai dormir esta noite?

Nenhuma resposta de Black. Nada, nem palavras, nem gestos, nada brota dele nesse momento.

Black devia estar dirigindo, devia estar com os olhos na estrada, prestando atenção nos outros carros, nas coisas que passam. Em vez disso, seus olhos estão em Kevin, encarando de volta o homem que está perdido nessa pergunta, e o espaço entre a pergunta e esse instante é a resposta mais clara.

Kevin afasta o olhar, volta a olhar pela janela. A terra acabou de se mexer. Os dois homens sentiram.

Eu imagino que dois bons atores, lendo isto, sejam capazes de absorver a tensão e as hesitações psicológicas de uma curta cena como esta – e transpor para a tela alguma coisa do que está aí. Metáforas como “a terra se mexeu” provavelmente não virão a ser percebidas jamais pelo público, mas os atores podem com sua atitude, suas expressões, transmitir para o espectador algo igualmente ominoso, igualmente crucial.

Long nos lembra que os primeiros leitores de um roteiro não são os atores que vão interpretá-lo, e sim pessoas para quem é preciso dar uma idéia do tipo de filme que está sendo proposto. São agentes, empresários, executivos de desenvolvimento de projetos, pessoas por cujas mãos passam as primeiras propostas de um roteiro.

Long se refere em seu artigo a “spec writers, spec scripts”: roteiro especulativos, digamos, aqueles que são oferecidos a um estúdio, em vez de serem encomendados por este. Um roteiro não encomendado, oferecido por um profissional de fora, está provavelmente contando uma história que os destinatários desconhecem. É preciso deixar claro que história é essa.

Tim Long remete o leitor a outro artigo:


Ali, ele diz:

Para que seu roteiro se transforme num filme, as pessoas têm que primeiro gostar dele como uma história.

Esta primeira versão, que irá circular por muitas salas e muitas escrivaninhas e muitos monitores de gente desconhecida (sem o autor do lado para tirar dúvidas) precisa dizer com clareza suficiente tudo a que se propõe. Claro que a estrutura narrativa tem que ser de filme, a visualização tem que ser de filme. Mas motivações, intenções, nuances, reações emocionais, têm que vir bem explicadas. O bom roteiro indica o efeito a ser obtido, e o modo de obtê-lo.

E se um ator ou atriz geralmente não gosta de receber instruções do roteirista sobre como reagir em tal ou tal momento, ele ou ela gosta de saber o que se pede de seu personagem, que motivação íntima, que subtexto, que amálgama de influências e pressões, para que possam criar a cena do personagem, com seus próprios recursos.











segunda-feira, 28 de agosto de 2017

4264) Coincidências de leitura (28.8.2017)




(ilustração: Ben Shahn)

De vez em quando comento aqui algumas coincidências que testemunho, ou que acontecem diretamente comigo.

Ao viajar para São Paulo, dias atrás, peguei dois livros, pequenos e leves pra não pesar na mochila. Um era o Portrait of the Artist as a Young Man de James Joyce, que comecei a ler tempos atrás, estava gostando, mas tive que largar por alguma razão. O outro foi A Hipótese Humana, romance policial de Alberto Mussa, lançado recentemente, presente do meu parceiro musical Alfredo Del-Penho, da “Barca dos Corações Partidos”.

O livro de Joyce descreve em seus primeiros capítulos a vida escolar do garoto Stephen Dedalus num colégio de jesuítas irlandeses: os estudos, os castigos, as peraltices. A certa altura, Stephen está comentando os rabiscos feitos pelos estudantes nas portas e nas paredes do banheiro do colégio, e diz:

And on the wall of another closet there was written in backhand in beautiful writing:
Julius Caesar wrote The Calico Belly.

Joyce tem um cacoete pelo trocadilho que chega a ser auto-punitivo, de modo que cada alusão desse tipo faz a gente parar para saber qual é o jogo de palavras que ele está fazendo.

“Calico” é um tecido barato como chita ou morim.  Uma coisa bem paraibana, aliás. É muito frequente a gente ler num livro a expressão “calico dress”, “vestido de chita”. Bob Dylan (“Sarah”, no álbum Desire) descreve sua musa como “esfinge escorpiana em vestido de chita”.

“Belly” é barriga. Barriga de chita? Talvez não, porque o dicionário me dá “calico” como sendo também algo “malhado, rajado, mosqueado”. Barriga rajada, listrada? Será alguma patifaria irlandesa?

Enfim – o que saltava aos olhos era que havia uma menção a Júlio César, e logo me lembrei que César era autor de um livro onde descrevia uma das suas guerras, e guerra em latim é naquela faixa de “bellus, belli, etc”.

Dito e feito: o livro de César é Commentarii de Bello Gallico, “Comentários sobre a Guerra na Gália”. E ao checar a tradução de Caetano W. Galindo para o livro de Joyce (valeu, Google Books), vi que ele recria assim o calembur joyciano:

E na parede do outro cubículo tinha uma coisa escrita com uma letra inclinada: Julio César escreveu Que Belo Fálico.

Muito bem. Na volta da viagem estou adentrando o romance de Alberto Mussa e chego à página 33. Seu detetive, Tito Gualberto, está em casa dando aulas quando recebe um recado urgente para ir à casa de alguém. O livro é narrado no presente do indicativo, e ele conta:

É quando a portuguesa grita, embaixo, dizendo estar na porta um moleque, mensageiro do coronel Francisco Eugênio.
Separa, então, um trecho do De bello gallico, para que o aluno traduza; e desce.

Sim, nosso detetive ganha vida (o ano é 1854) dando aulas particulares de latim, e o livro de Júlio César me cai ao colo pela segunda vez em dois dias, citado num romance irlandês de 1916 e num romance brasileiro de 2017.

Veja-se que em ambos os casos o livro é citado em contexto e não destoa. Na Wikipedia, aliás, sou informado de que a obra de César, pela limpidez e elegância do estilo, é um dos primeiros livros utilizados por quem começa a estudar latim.

Bem; isso é outra questão. O importante aqui é o que pensar diante de uma coincidência como essa. Tenho certeza de que não ouço falar nesse livro de Júlio César, pelo qual não tenho o menor interesse, há muitos anos, não é pouco não. E agora ele vem duas vezes num mesmo fim de semana.

Tenho amigos e amigas que me diriam: “O Destino está querendo lhe comunicar alguma coisa!”. (Ah, que saudade do Encontro da Nova Consciência.)

Pra mim, mais interessante do que pensar no Destino é pensar no modo como a memória humana funciona. Temos níveis de “salvamento” de informações, no sentido que usamos ao dizer que salvamos dados no computador. Salvar é impedir que uma informação se desvaneça. E um critério para isso parece ser a repetição. O que a gente ouve (ou lê) uma vez apenas, se dissipa dentro de algum tempo. Mas se nesse intervalo aparece uma segunda menção, a gente lembra que ouviu aquilo pouco tempo atrás. E se aparecer uma terceira, uma quarta, a lembrança vai se prolongando.

Minha memória, pelo menos, funciona assim. Sou o rei da gafe ao não reconhecer pessoas com quem conversei um dia inteiro poucos anos atrás. Por que as esqueci? Porque não vi nenhuma referência a elas nesse intervalo. A memória se dissipa. Se de vez em quando, contudo, a gente vir uma foto, ler o nome, ouvir uma referência, aquilo continua existindo, sendo lembrado. Brasa assoprada não volta a carvão.

Baseando-se nisso, a comunicação de massa requer o martelamento constante de uma certa informação “para que o público não esqueça”, mesmo quando aquilo não é notícia, quando não tem nenhum motivo claro para estar aparecendo no noticiário. (Pensem nos exemplos.)

Deve ser por isso que os atarefados divulgadores-de-artistas-pop dão o seu sangue para que pelo menos uma vez por semana surjam no “Portal KM De Vantagens” ou coisa parecida manchetes como “Fulana janta com fãs”, “Sicrano corta o cabelo” ou “Beltrano pensa em tirar férias”. Porque se um desses personagens ficar uma semana sem ser citado ali, todo mundo esquece dele, inclusive o divulgador.

Erasmo Carlos dizia: “falem bem ou mal, mas falem de mim”, com a intuição nativa de quem nasceu pro palco. Um artista pop é alguém que não pode passar um mês sem ser fotografado por um papparazzo, ou dar um autógrafo no shopping, ou ser citado numa coluna de gossips. Se isto acontecer, ele se dissipa no ar, como orvalho ao sol.








terça-feira, 22 de agosto de 2017

4263) Jorge Luis Borges, 118 anos (22.8.2017)




Um pequeno apanhado de frases de Jorge Luís Borges, que em 24 de agosto completaria 118 anos.


“Existe um conceito que é corruptor e desatinador de todos os outros. Não falo do Mal, cujo limitado império é o da ética: falo do Infinito.” (“Avatares de la Tortuga”, em Discusión)

“Sei de dois tipos de escritor: o homem cuja ansiedade central são os procedimentos verbais; o homem cuja ansiedade central são as paixões e os trabalhos do homem.” (“Absalom! Absalom! de William Faulkner”, Textos Cautivos, 1937)

“Todo homem culto é um teólogo, e para sê-lo não é indispensável a fé.” (“El enigma de Edward Fitzgerald”, Otras Inquisiciones)

“Em 1883, um terremoto que durou noventa segundos comoveu o sul da Itália. Nesse terremoto morreram seus pais e sua irmã, e ele mesmo ficou enterrado nos escombros. Duas ou três horas depois foi salvo. Para escapar ao desespero total, resolveu pensar no Universo; procedimento geral dos infelizes, e às vezes bálsamo.” (“Benedetto Croce”, Textos Cautivos, 1936)

“Os homens do futuro não se disfarçarão de postes de telégrafo nem perambularão de um lugar para outro embutidos em armaduras de celofane, em recipientes de cristal ou em caldeiras de alumínio.” (“Things to Come, de H. G. Wells”, Textos Cautivos, 1936)

“Os verbos conservar e criar, tão antagônicos aqui, no Paraíso são sinônimos.” (“Historia de la Eternidad”, em Historia de la Eternidad)

“Ser nazista (...) é, no final das contas, uma impossibilidade mental e moral. O nazismo padece de irrealidade, como os infernos de Erígena. É inabitável: os homens podem apenas morrer por ele, mentir por ele, matar e ensanguentar por ele. Ninguém, na solidão central do seu eu, pode desejar que triunfe.” (“Anotación a 23 de agosto de 1944”, Otras Inquisiciones).

“Hollywood acaba de enriquecer esse vão museu teratológico: por obra de um artefato maligno chamado dublagem, propõe monstros que combinam as ilustres feições de Greta Garbo com a voz de Aldonza Lorenzo.” (“Sobre el doblaje”, em Discusión)

“Europa é uma sinédoque de Paris. A Paris interessa menos a arte do que a política da arte: veja-se a tradição das ‘igrejinhas’ em sua literatura e sua pintura, sempre dirigidas por comitês e com seus dialetos políticos: um parlamentar, que fala em esquerdas e direitas, e outro militar, que fala em vanguardas e retaguardas.” (“El otro Whitman”, em Discusión).

“O budismo acredita que a ascese é conveniente só depois que se experimentou a vida. Ninguém deve começar pela negação. É preciso provar a vida até o fim. E desencantar-se com ela; mas só depois de conhecê-la.” (“O budismo”, em Sete Noites)

“Ignoro se a música sabe desesperar da música e se o mármore do mármore, mas a literatura é uma arte que sabe profetizar aquele tempo em que haverá emudecido, e encarniçar-se contra a própria virtude e enamorar-se da própria dissolução e cortejar seu fim.” (“La supersticiosa ética del lector”, em Discusión)

“Sereia: ‘suposto animal marinho’, é o que lemos em um dicionário brutal.” (“El arte narrativo y la magia”, em Discusión)

“O honorável Reginald Fortescue aparece como fiador da existência de um ‘espectro alarmante’. Eu não sei o que pensar; por enquanto, me nego a crer no alarmante Reginald Fortescue, se não aparecer algum espectro honorável para ser fiador de sua existência.” (“Lord Halifax’s Ghost Book”, Textos Cautivos, 1936)

“É comum, no Oriente, não se estudar historicamente nem a literatura nem a filosofia. (...)  Lá, estuda-se história da filosofia como se Aristóteles discutisse com Bergson, Platão com Hume – tudo simultaneamente.” (“La poesia”, em Sete Noites)

“A distinção radical entre a poesia e a prosa está na expectativa muito diversa de quem as lê: a primeira pressupõe uma intensidade que não se tolera na última.” (“Los traductores de Las 1001 Noches”, em Historia de la Eternidad)

“H. G. Wells, incrivelmente, não é nazista. Incrivelmente, porque todos os meus contemporânos o são, embora o neguem ou o ignorem. Desde 1925, não há publicista que não opine que o fato inevitável e trivial de haver nascido em um determinado país e de pertencer a tal raça (ou a tal boa mistura de raças) não seja um privilégio singular e um talismã suficiente.” (“Dos libros”, em Otras Inquisiciones)

“Clássico é aquele livro que uma nação ou um grupo de nações ou o longo tempo decidiram ler como se em suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e capaz de interpretações sem fim.” (“Sobre los clásicos”, em Otras Inquisiciones)

“Para cada mente capaz de analisar com profundidade um efeito estético, há dez, ou há cem, que são capazes de produzi-lo.” (“How to write detective novels”, Textos Cautivos, 1937)

“Nossos contemporâneos são sempre muito parecidos com nós mesmos, e quem está em busca de novidade poderá achá-las mais facilmente entre os antigos.” (“Nathaniel Hawthorne”, em Otras Inquisiciones)


Fontes:

Discusión. Buenos Aires: Emecé, 1972,
Historia de la Eternidad. Buenos Aires: Emecé, 1973.
Otras inquisiciones. Buenos Aires: Emecé, 1985.
Sete noites. São Paulo: Max Limonad, 1983. (trad. João Silvério Trevisan)
Textos cautivos. Madrid: Alianza Editorial, 1998






sábado, 19 de agosto de 2017

4262) Antonio Cândido e a Literatura Nacional (19.8.2017)





(Antonio Cândido)


Sempre que a gente tenta defender algum tipo de arte do Brasil (literatura, cinema, ficção científica, seja o que for), em diferentes contextos, ouve alguns argumentos recorrentes, que se repetem como se fossem mantras, estribilhos, memes.

Um deles: “Olha, não adianta, foram os gringos que inventaram isso. Eles são muito melhores nisso do que a gente, não adianta querer concorrer com eles, basta comparar o produto deles com o nosso, chega dá vergonha”.

Outro: “Eu não sou nacionalista, eu não tenho obrigação de gostar de uma coisa só porque ela é brasileira. Meu interesse é a grande arte, o melhor produto. A meritocracia artística. Não vou gostar de uma coisa ruim só porque é brasileira.”

Muita da energia mental da minha vida foi consumida em torno dessas duas frases, que aliás são minhas, porque durante muito tempo fui eu que as pronunciei (e de vez em quando ainda o faço), fui que eu defendi essas posições, coberto, se não de razão, pelo menos de sinceridade.

Passemos adiante. No meu tempo de cineclubista, Paulo Emílio Salles Gomes era um professor de cinema da USP, famoso por ter estudado cinema na França, onde escreveu um livro sobre Jean Vigo, o cineasta de L’Atalante. De volta ao Brasil, tornou-se um defensor de cineastas brasileiros que aos nossos olhos não amarravam as chuteiras de Jean Vigo. E fez sobre um deles um livro magnífico: Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte.



Era muito citada naquela época (mal citada, aliás), nos debates, uma frase de Paulo Emílio: “O pior filme brasileiro é melhor do que qualquer filme estrangeiro”. Essa frase me enchia de brios e de perplexidade. Como assim – a obra de Mazzaropi era melhor do que a de Antonioni?!

Muito se discutiu sobre essa frase; aqui (https://www.brasildefato.com.br/node/10496/) está o link para um artigo da infatigável Rô, Maria do Rosário Caetano, em que ela faz um balanço dessa lenda cineclubística. Mas pela parte que me toca o mundo mudou quando algum informante providencial me alertou que não era isso que Paulo Emílio tinha dito. Ele dissera, na verdade: “o pior filme brasileiro diz mais de nós mesmos que o melhor filme estrangeiro”.

Não se tratava de qualidade estética, e sim de revelação de uma identidade.

Se eu sou um mero consumidor, um cara que quer puxar a carteira e escolher o melhor produto, posso exigir Antonioni. Mas se eu sou um criador e preciso entender o sistema onde minha obra vai se instalar depois de pronta, preciso pensar um pouco sobre Mazzaropi.

Não é que Antonioni me seja alienígena e inacessível. É que meu DNA psíquico, para o bem e para o mal,  tem mais de Mazzaropi do que do cineasta de O Eclipse.

Não custava nada a Paulo Emílio, como estudioso do cinema, ter pulado de Jean Vigo para Jean Renoir, ou até para Alain Resnais, não é mesmo? Mas não, ele pulou para Humberto Mauro e todo um exército de paraíbas (somos todos paraíbas, aos olhos europeus) que queriam fazer cinema aqui nesta terra de sobrados e mocambos.


(Paulo Emílio Salles Gomes)

No artigo de Maria do Rosário, que vai muito mais fundo nesta questão, ela transcreve uma glosa da famosa frase, que Paulo Emílio teria pronunciado numa entrevista à revista Cinegrafia (junho de 1974), nestes termos:

“Nós tentamos seguir de perto toda a produção brasileira atual, sem exceção. (…) Isso é uma tarefa laboriosa, difícil, frequentemente ingrata, mas culturalmente muito satisfatória. A gente encontra tanto de nós num mau filme, ele pode ser revelador de tanta coisa da nossa problemática, da nossa cultura, do nosso subdesenvolvimento, da nossa boçalidade (…) Em última análise, é muito mais estimulante para o espírito e para a cultura cuidar dessas coisas ruins do que ficar consumindo no maior conforto intelectual e na maior satisfação estética os produtos estrangeiros”.

Nessa formulação a idéia pode parecer até meio injusta, como se o resultado final de tanto estudo fosse somente o conhecimento da nossa boçalidade. Mas descobrimos virtudes também. Descobrimos talentos nossos que não somente os gringos parecem não ter, como eles próprios admiram com sinceridade, quando tomam conhecimento do que fazemos.

O brasileiro é um bipolar, que vive saltando do ufanismo de Afonso Celso para o complexo de viralata diagnosticado por Nelson Rodrigues.

Uma das direções em que se pode ir para evitar esse desespero esquizoide é a direção seguida por Paulo Emílio. Conhecer o que o Brasil faz – não para amá-lo incondicionalmente por ser “a Pátria”, mas para entender esta imensa confusão de país que somos. Entender o Brasil (= produzir hipóteses plausíveis sobre o Brasil) não deve ser mais difícil do que entender Deus (como querem os teólogos) ou o Universo (como querem os astrofísicos).

E nos faria um certo bem ter a humildade intelectual não só de Paulo Emílio mas de seu contemporâneo da USP, Antonio Cândido, o crítico literário falecido pouco tempo atrás. Ele dizia de nossa literatura:

“Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não há outra, que nos exprime. Se não for amada, não revelará a sua mensagem; e se não a amarmos, ninguém o fará por nós. Se não lermos as obras que a compõem, ninguém as tomará do esquecimento, descaso ou incompreensão. Ninguém, além de nós, poderá dar vida a essas tentativas muitas vezes débeis, outras vezes fortes, sempre tocantes, em que os homens do passado, no fundo de uma terra inculta, em meio a uma aclimatação penosa da cultura europeia, procuravam externalizar para nós, seus descendentes, os sentimentos que experimentavam, as observações que faziam - dos quais se formaram os nossos”.



Não fazemos isto por simpatia paternal e piedosa para com um bando de coitadinhos que escreviam mal. A experiência humana deles não era inferior à nossa, por mais que nos julguemos civilizatórios e sofisticados porque compramos engenhocas eletrônicas em doze vezes no cartão. Queiramos ou não, o país se parece mais com esses escritores dos anos 1800 do que conosco.

Vi tempos atrás no Facebook uma citação de Gustavo Nagel a respeito de um comentário feito por um autor que não conheço, Jean Bottéro, sobre o “Canto de Débora” (poema do capítulo 5 de “Juízes”) em celebração a uma vitória dos invasores hebreus sobre os locais, e transcrevo:

"Tratava-se apenas de um punhado de homens, microscópicos, perdidos num momento qualquer da história, que lutavam sob a chuva por um lote de terra, sem que a ridícula agitação que faziam tivesse, na verdade, contribuição alguma para o homem e seu progresso, e que permaneceriam, eles e sua agitação, escondidos e esquecidos, como infinitos outros, sob a poeira do tempo, se esse canto imortal não os alçasse a um plano cósmico, universal e eterno, e os transformasse, aos olhos dos leitores, num momento crucial da história do mundo."

Essa experiência humana, anônima e coletiva, geradora de produtos literários, não difere muito da experiência sofisticada de um romancista novaiorquino ganhador do Prêmio Pulitzer ou de um francês ganhador do Nobel. Eles se acham talvez superiores ao que escrevem, mas não o são, porque ninguém o é. Se o que escrevem tem algum valor, ficará. E quem atribui esse valor não são eles, são os leitores, aos quais muitas vezes eles se julgam superiores.


(G. K. Chesterton)

E para encerrar chamo ao banco de testemunhas o volumoso, exuberante e desbocado G. K. Chesterton, que celebrava o Império Britânico com toda a ironia de quem sabia muito bem de que barro ambos eram feitos. Diz ele, num texto de 1908:

“Minha aceitação do universo não é otimismo; parece-se mais com o patriotismo.  É uma questão básica de lealdade.  O mundo não é uma pensão barata em Brighton, que devamos abandonar, de tão miserável que é.  É a fortaleza da nossa família, com a bandeira tremulando no torreão, e quanto mais miserável for, menos devemos abandoná-la.  A questão não é saber se este mundo é triste demais para ser amado ou alegre demais para não sê-lo: a questão é que quando amamos uma coisa, se ela é alegre é uma razão para que a amemos, e se é triste é razão para amá-la mais ainda.  (...) Foi assim que as cidades se tornaram grandes.  Se remontarmos às raízes mais obscuras de nossa civilização vamos encontrá-las enlaçadas em torno de alguma pedra sagrada ou mergulhadas num poço igualmente sagrado.  As pessoas primeiro prestam tributo a um lugar, e depois conquistam glórias em seu nome.  Os homens do passado não amaram Roma porque ela era grande.  Ela tornou-se grande porque eles a amaram.”
(G. K. Chesterton, Orthodoxy, pags. 66-67)








terça-feira, 15 de agosto de 2017

4261) "The Handmaid's Tale" (15.8.2017)



Esta série de TV, cuja primeira temporada de dez episódios foi exibida recentemente (abril/junho), tem uma premissa semelhante à do excelente filme de Alfonso Cuarón Filhos da Esperança  (Children of Men, 2006). 

Uma crise biológica deixou quase todas as mulheres inférteis. Em algumas cidades já não nasce uma criança há vários anos. Uma guerra civil quebra ao meio os EUA e instaura uma ditadura fundamentalista na região da Nova Inglaterra.

Nessa nova república, chamada Gilead, o exército patrulha as ruas a serviço de uma casta de executivos que impõe uma repressão violenta às mulheres: elas não podem trabalhar, ler, ter dinheiro, e devem se dedicar somente às tarefas domésticas.

Como as esposas são estéreis, as família usam “barrigas de aluguel” (as chamadas aias, ou handmaids) que moram na residência de um casal. Para procriar, elas se submetem a Cerimônias. No leito nupcial, o marido as possui diante da esposa, todo mundo muito pudicamente vestido, a não ser o mínimo necessário para o ato. Quando a criança nasce, a barriga de aluguel é transferida para outra família, e deixa o bebê com os agora ex-patrões.

Uma das muitas ironias desta distopia sexista, baseda no romance homônimo de Margaret Atwood, é que as criaturas mais importantes do mundo, as mulheres férteis, são por isto mesmo perseguidas, escravizadas, torturadas: o mundo depende da sua taxa de reprodução. Em outro cenário, outro argumento, poderiam ser politicamente organizadas e economicamente poderosas, poderiam ter o mundo aos seus pés, escolhendo parceiros, exigindo mordomias, etc.

O aspecto fundamentalista-religioso, pelo menos nesta primeira temporada, não é a parte principal do pesadelo descrito. A família Westford não parece tão piedosa assim. Suas preocupações maiores são a produção de um herdeiro e a manutenção das posições conquistadas no xadrez político e comercial do seu tempo.

A religião entre eles é uma questão quase que “da boca pra fora”, como nas cenas em que casais se acabando de tesão vão para a cama recitando versículos bíblicos. A Bíblia é um livro onde é possível encontrar um aval “entre aspas” para um monte de coisas, se se souber procurar.

Apesar da ambientação de futuro próximo, o caráter conservador de Gilead coloca nessa cenografia do século 21 um conjunto de personagens como as “Aias”, que parecem saídas de uma história ambientada entre os Amish, ou então uma transposição moderna de uma narrativa como A Letra Escarlate (1850) de Nathaniel Hawthorne. Um salto de volta aos anos 1800.

Ao mostrar a brutal repressão contra os que tentam enfrentar sua tomada do poder, a república de Gilead não tem muita vocação para o perdão. Há uma cena em que, para convencer um personagem da gravidade da situação, mostra-se a ele uma igreja cheia de corpos enforcados, numa imagem que lembra (a situação, não o enquadramento) uma das cenas mais brutais de El Topo (1970) de Alejandro Jodorowsky.

As cenas de bordel lembram filmes como Eyes Wide Shut (1999) de Kubrick ou Salò/Sodoma (1975) de Pasolini. Homens refinados, de terno e gravata, engalfinhados com mulheres disfarçadas e lindas, nuas em pelo ou (em alguns casos) vestidas como melindrosas dos anos 1920. Nessa sociedade, as garotas de programa são chamadas biblicamente “Jezebéis” e as criadas domésticas de “Marthas”, talvez obedecendo à tradicional separação entre a pessoa espiritualmente em êxtase (Maria) e a pessoa materialmente atarefada (Marta).

Na hierarquia de dominação de Gilead, as esposas têm uma posição curiosa. São exploradoras com relação às Aias, a quem alternadamente humilham e maltratam (porque no fim das contas são suas escravas) ou então bajulam e paparicam (porque são elas que gerarão seus futuros filhos). E são submissas com relação ao marido. Se as Aias usam uniforme vermelho, as Esposas usam uniformes verdes. Todas elas são também uma robozinhos domésticos, lembrando as androides do clássico The Stepford Wives.

Não sei quantas temporadas estão planejadas para a série. Ela se baseia num romance de 300 páginas de Margaret Atwood, de modo que há bastante campo para desenvolver subtramas que o romance apenas sugere ou resume.

A série é fortemente referencial, com citações e homenagens bem distribuídas. Uma dessas obras referidas á “A Loteria”, o famoso conto de linchamento de Shirley Jackson: as Aias participam de vez em quando de rituais em que são incentivadas a linchar pessoas que se comportaram de maneira “criminosa”.  Uma sociedade (tão antiga, e tão atual) em que linchamentos públicos ajudam a manter a coesão do grupo às custas do indivíduo transgressor.

A guerra é implacável, a ditadura resultante não bate uma pestana. Uma das cenas mais amedrontadoras não é nem a dos cadáveres pendurados em forcas se decompondo de encontro a uma muralha. É a cena, em flashback de alguns anos antes, em que num escritório um patrão convoca todos os funcionários para um pronunciamento e diz: “Sinto muito ter que fazer isto, mas as mulheres estão todas demitidas. Peguem seus objetos pessoais e deixem agora mesmo o edifício da empresa”. E ao saírem, sob a mira de fileiras de soldados empunhando metralhadoras, uma delas pergunta: “Por que o Exército está nos levando?”, e a amiga responde: “Isso não é o Exército”.

De certo modo, a parte mais aterrorizante de distopias como esta não é a descrição do pesadelo instalado, da autocracia orwelliana em pleno poder. É quando os personagens fazem flashback de uma vida anterior que era aparentemente normal mas já começava a ser invadida por sinais inquietantes daquilo que chamamos “o ovo da serpente”. Quando a serpente está adulta e em pleno domínio, não existe mais o terror, existe a apatia dos que sobreviveram. O terror é quando o ovo começa a se rachar.








sábado, 12 de agosto de 2017

4260) As ilhas fantásticas (12.8.2017)




(a Terra com a ilha de Robinson Crusoe no centro)



Às vezes uma idéia vai passando de escritor em escritor e sofrendo transformações que acabam se perdendo da memória. Às vezes conhecemos o primeiro e o último elo da corrente, mas não sabíamos da existência dos elos intermediários que ligam um ao outro. Ou então sabíamos da existência deles, mas não sabíamos que formavam uma corrente.

Foi o que aconteceu comigo ao ler o artigo de John Pielmeier sobre viagens marítimas e literárias, que pode ser lido na íntegra aqui:


Farei um resumo, porque a história é interessante.

Em 1704, houve uma discussão séria a bordo do navio inglês Cinque Ports, envolvido numa guerra com a Espanha. O navio estava circulando a América do Sul, e o capitão foi questionado pelo mestre de navegação, Alexander Selkirk, para quem o navio estava com a estrutura comprometida e naufragaria em breve. Selkirk recusou-se a continuar, e foi deixado numa ilha na costa do Chile, com apenas um mosquetão, um machado, uma faca, uma panela, uma Bíblia, alguns cobertores e roupas. (Ele tinha razão: o navio de fato afundou, pouco tempo depois.)

Nessa ilha ele ficou de 1704 a 1709, e depois de ser resgatado sua história ficou famosa na imprensa. Surgiu daí, em 1719, o romance Robinson Crusoe de Daniel Defoe, a história de um sujeito que sobrevive sozinho numa ilha deserta, considerado o primeiro romance realista inglês. O livro de Defoe se inspirou parcialmente na história de Selkirk, e incluiu um mapa da ilha, baseado numa descrição feita por Selkirk a um jornalista.


Muitos anos depois, Robert Louis Stevenson (1850-1894), contando para seu enteado histórias de piratas e batalhas, serviu-se do mapa de Selkirk como fonte inicial de inspiração para criar a sua própria ilha imaginária: A Ilha do Tesouro (1883), que é, tal como o Robinson Crusoe, uma das histórias de aventuras mais conhecidas do mundo.



Stevenson, que era um grande escrevedor de cartas, manteve uma correspondência com um jovem escritor, escocês como ele: J. M. Barrie, seu grande fã. E coube a Barrie, anos depois, criar uma outra ilha, modelada nas outras: a ilha de Neverland, que no Brasil conhecemos como Terra do Nunca, a ilha onde Peter Pan se esconde do Capitão Gancho e para onde leva Wendy e seus irmãos.

O  livro que no Brasil conhecemos como Peter Pan é Peter and Wendy (1911), romance inspirado na peça de teatro com que Barrie iniciou essa história de sucessos. É, como os livros anteriores, uma das histórias infanto-juvenis mais conhecidas do mundo.



O artigo de John Pielmeier descreve uma pequena epifania que ele experimentou em 2014, quando ao viajar de navio com a esposa fez uma parada na pequena ilha onde ficou Selkirk, hoje batizada de Ilha de Robinson Crusoe. Eles passearam pela ilha, que é bastante montanhosa, e subiram até um dos pontos mais altos. E ele diz:

Havia algo estranhamente familiar naquela visão. De repente, eu me dei conta de que: 1) Selkirk havia descrito a ilha para um jornal de Londres; 2) essa descrição inspirou o mapa de Defoe; 3) esse mapa serviu de base para o mapa da Ilha do Tesouro, de Stevenson; 4) o qual por sua vez foi imitado por Barrie.

Como eu sabia disso? A prova estava diante dos meus olhos. Lá, na abertura da baía, ficava o navio do Capitão Gancho, e logo depois, quando chegamos ao topo da montanha, avistei sem dificuldade a Lagoa das Sereias ao sul, e o promontório onde ficava a aldeia dos índios, a noroeste. Eu estava caminhando na Terra do Nunca.

Esse pequeno episódio ilustra muito bem o modo como as idéias literárias vão passando de mente em mente. E como uma das forças motoras principais da literatura é: A vontade de escrever algo parecido com o que a gente gostou de ler.

Esse rastreamento emocional feito por John Pielmeier me trouxe à mente um romance de FC de Philip K. Dick, Time Out of Joint (1959), onde de certa forma temos um indivíduo que vive numa “ilha” onde a civilização é recriada à sua imagem e semelhança.



Ragle Gumm vive numa típica cidadezinha norte-americana dos anos 1950. Mora “de favor” coma irmã e o cunhado, e sobrevive ganhando prêmios de um concurso do jornal local, onde ele precisa adivinhar, diante de um diagrama enorme, em que quadradinho vai aparecer o “homenzinho verde”. Todo dia ele acerta. E todo dia ganha uma merrequinha de grana que paga suas cervejas e ajuda na feira de casa.

Acontece que na realidade Ragle Gumm é O Homem Mais Importante do Mundo (título da edição portuguesa do livro).

Ele tem uma capacidade quase sobrenatural de perceber padrões, de enxergar regularidades em fenômenos aleatórios. O ano em que vive, na verdade, é 1998, a Terra está em guerra com a Lua, e ele é a única pessoa que consegue prever onde cairão os próximos mísseis disparados pela Lua (=o lugar onde aparecerá o homenzinho verde).

Acontece que o estresse dessa responsabilidade o projetou num surto psicótico onde ele sonha que está de volta a um passado paradisíaco da década de 1950. E para continuar contando com as “previsões” dele, o governo militar da Terra constrói uma cidadezinha artificial onde Gumm imagina que é apenas um tiozão desocupado resolvendo quebra-cabeças de jornal.

A certa altura do livro, Ragle Gumm está conversando com a irmã e o cunhado e tem o seguinte diálogo:

– Talvez o vendedor use alguma marca pessoal – disse Ragle. – Algo como: “Norman G. Selkirk, Vendedor de Tuckers”. Mas de qualquer maneira, eu lhe repasso para você ficar sabendo.
Margo disse:
– Por que usou o nome “Selkirk”?
– Não sei – disse ele. – Escolhi um nome ao acaso.
– Não existe acaso – disse Margo. – Freud demonstrou que existe sempre uma razão psicológica. Pense bem no nome “Selkirk”. Ele lhe lembra o quê?
Ragle pensou um pouco.
– Talvez eu tenha visto o nome quando folheei o guia telefônico. – Essas malditas associações de idéias, pensou ele. Como nas pistas do concurso. Não importava o quanto a pessoa se esforçasse, jamais ia conseguir ter tudo sob controle. Elas é que o controlavam. – Achei! – disse ele finalmente. – O homem em cuja história se baseou o livro “Robinson Crusoe” se chamava Alexander Selkirk.
– Não sabia que o livro se baseava em algo – disse Vic.
– É, sim – disse Ragle. – Houve um náufrago de verdade.
– Por que será que você pensou nele? – comentou Margo. – Um homem vivendo sozinho numa ilha minúscula, criando sua própria sociedade à sua volta, seu próprio mundo. Todos os seus utensílios, roupas...
– Porque – disse Ragle – eu passei dois anos numa ilha assim, durante a II Guerra.


Na verdade, Ragle está vivendo num mundo como o de Robinson Crusoe, um mundinho feito à medida dele, e ao mesmo tempo está vivendo numa Terra do Nunca, porque ele é o “menino que não quer crescer”, um homem que quer viver eternamente em 1959, tomando cerveja e paquerando a mulher do vizinho. Ele não quer admitir que é um adulto, que está em 1998, e é o homem de quem depende o resultado de uma guerra  interplanetária.

A referência a Selkirk mostra que Philip K. Dick tinha consciência da primeira influência (como Selkirk, Ragle pede para abandonar um projeto que sabe condenado ao fracasso); não dá para saber em que medida ele sabia que também estava contando em Time Out of Joint uma nova versão da história de Peter Pan.










terça-feira, 8 de agosto de 2017

4259) Os olhos culpados (8.8.2017)



As narrativas curtas que chamamos variadamente de fábula, apólogo, lenda, caso, etc., têm uma economia narrativa própria que não é a mesma do conto literário.

É como se fosse uma história mais longa que foi perdendo adornos e adereços ao longo do caminho através do tempo, e ficou reduzida somente ao essencial.

A narrativa abaixo está na Antologia da Literatura Fantástica (org. Jorge Luís Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo, Cosac Naify, 2013, trad. Josely Vianna Baptista). Ela é atribuída a Ahmed Ech Chiruani, autor talvez inventado, porque o Google não parece saber sobre ele mais do que eu sei.


OS OLHOS CULPADOS
Ahmed Ech Chiruani

Contam que um homem comprou uma moça por quatro mil denários. Um dia olhou para ela e começou a chorar. A moça lhe perguntou por que estava chorando; ele respondeu:
– Tens olhos tão belos que me esqueci de adorar a Deus.
Quando ficou sozinha, a moça arrancou os próprios olhos. Ao vê-la nesse estado, o homem ficou aflito e disse:
– Por que te maltrataste assim? Diminuíste teu valor.
Ela respondeu:
– Não quero que haja nada em mim que te afaste de adorar a Deus.
De noite, o homem ouviu em sonho uma voz que dizia: “A moça diminuiu seu valor para ti, mas o aumentou para nós e a tiramos de ti.”  Ao acordar, encontrou quatro mil denários sob o travesseiro. A moça estava morta.


Primeiro que tudo, olha que maneira mais eficiente de começar uma história:


1.    Contam que um homem comprou uma moça por quatro mil denários.

“Contam”, abrindo uma narrativa, equivale, estruturalmente falando, a “era uma vez”. Joga os 100% da história para o território do mítico, do oral, do lendário, do ouvi-dizer.

Algo parecido ocorre com o uso da moeda “denário”: era uma moeda romana (o Google se redime informando-me que essa moeda valia um dia de salário de um trabalhador), portanto historicamente datada. Mas isso é a moeda, não a palavra: a palavra, como símbolo de valor monetário, deu o francês “denier”, o árabe “dinar” e o português “dinheiro”. Estamos, portanto, em pleno território do arquétipo.

E essa beleza de construção: “comprou uma moça”. O autor não diz que era uma escrava. Não precisa. Comprar escravos nesse mundo é como comprar um cavalo ou um passarinho. O homem comprou uma moça – e não era uma moça qualquer, porque ele pagou o equivalente a quatro mil dias de trabalho de um trabalhador comum.

Digamos que, com nosso salário mínimo em torno de 900,00 reais, um dia de trabalho valha em torno de 30 reais: a moça custou 120 mil reais. Não era uma moça qualquer. Se aparecesse numa revista não seria em Baratas, mas em Caras.


2.    Um dia olhou para ela e começou a chorar.

É típico dessas narrativas darem saltos bruscos de frase em frase, sem muitas explicações. Quem era o homem? Tinha esposa(s), filhos? Que papel a moça foi desempenhar junto a ele: empregada doméstica, serva sexual, o quê? Não sabemos. Nesta segunda frase o autor pula direto para o fato inusitado que desencadeia o desfecho. A frase 1 é introdução, da 2 em diante tudo é resultado.


3. A moça lhe perguntou por que estava chorando.

Existem trinta mil livros cuja história começa com alguém chorando e alguém perguntando por quê. É sempre uma boa maneira de começar, se não um livro inteiro, pelo menos um capítulo. “Certa tarde, ao descer a escadaria que levava ao salão, Fulana ouviu ruídos abafados. Aproximando-se, viu que Sicrano estava sentado numa saleta lateral, com o rosto entre as mãos, os ombros sacudidos por soluços...”  Sempre funciona.


4. Ele respondeu: – Tens olhos tão belos que me esqueci de adorar a Deus.

O amor, seja físico, seja platônico, nos distrai das paixões abstratas, entre as quais pensar em Deus não é uma de se jogar fora. Que o diga Nelson Gonçalves, neste bolero (de David Nasser e Herivelto Martins) que parece adaptado do conto de Ahmed Ech Chiruani:

“Eu amanheço pensando em ti
Eu anoiteço pensando em ti
Eu não te esqueço, é dia e noite pensando em ti...      
Eu vejo a vida pela luz dos olhos teus...
Me deixa ao menos, por favor, pensar em Deus.”

Parar de pensar em Deus parece uma tragédia, principalmente parar de pensar em Deus por causa de uma curvilínea comprada em moeda sonante. Isto nos prepara (mas não totalmente) para o próximo ziguezague da narrativa.


5. Quando ficou sozinha, a moça arrancou os próprios olhos.

Nesse passado milenar e machista, a mulher sente que está trazendo turbulência espiritual para a vida do seu amo e senhor, e decide punir a si própria. E deixa para fazê-lo quando fica sozinha, para que ninguém tente impedi-la. Em contos assim não há meio termo. As pessoas só tomam decisões radicais.


6. Ao vê-la nesse estado, o homem ficou aflito e disse:
– Por que te maltrataste assim? Diminuíste teu valor.

Esta fala é de um ambiguidade fascinante. Ele poderia ter dito: “-- Nunca mais verás as coisas belas da vida... / -- Não devias ter te maltratado tanto... / -- Perdi os olhos que tanto adorava / ...” – enfim, poderia ter tido mil reações de horror ou de dó. Mas não: “Diminuíste o teu valor (de mercado). Ninguém a quem eu queira te vender (porque vou te vender, já que não tens mais aquilo que me encantava) vai me pagar o preço que investi em ti.”

Ressalva: Existe a possibilidade, caso de fato seja um conto oriental, de algo ter se modificado na tradução. A frase no original podia ser algo como “perdeste algo valioso”, ou “diminuíste a beleza que te valorizava”... Muitas vezes a tradução, mesmo tentando ser fiel, impõe um sentido que o original não tinha.


7. Ela respondeu:
– Não quero que haja nada em mim que te afaste de adorar a Deus.

É um desses diálogos de que o cinema está cheio, o das mulheres altruístas que se sacrificam para que o homem amado possa, sei lá, casar com uma princesa sem que ela, uma namorada plebéia, o atrapalhe, ou separam-se do amado que vai se candidatar a um cargo público e não pode mostrar o mundo uma amante negra... Todos os mil sacrifícios feitos em nome do amor. Mesmo que se trate (no presente caso) do amor impossível de uma mulher pelo homem que a comprou.


8. De noite, o homem ouviu em sonho uma voz que dizia: “A moça diminuiu seu valor para ti, mas o aumentou para nós e a tiramos de ti.” 

O sonho, nesses contos orientais, é quase sinônimo da voz de Deus (em contos ocidentais modernos, é a voz do Inconsciente Freudiano).  Portanto, é Deus, o Deus em quem ele deixara de pensar, que se comove com o sacrifício da moça. (Veja-se também o plural divino, que pode ser visto como o plural majestático dos reis, ou como uma insinuação de um Deus múltiplo.)

Deus percebe que ela sacrificou os próprios olhos não somente pelo homem, para que pudesse pensar em Deus, mas também por Deus, para que pudesse ser adorado em paz. Deus agradece à moça o gesto elegante de ter se retirado da disputa e deixado caminho livre para Ele no coração do homem.


9. Ao acordar, encontrou quatro mil denários sob o travesseiro. A moça estava morta.

Um desfecho perfeito, em duas frases tão indissolúveis uma da outra quanto as duas faces da Lua. Deus leva a moça e devolve o dinheiro que o homem, por um instante, julgou ter perdido. E, ironicamente, a história termina como começou: a moça sendo novamente comprada por quatro mil denários.

A leitura do ponto de vista feminino nos mostra a tragédia de uma moça vendida como escrava, que acaba assediada pelo patrão por sua beleza, assusta-se, mutila-se para escapar-lhe, e acaba morrendo. A moça é quem menos ganha com tudo que aconteceu.

O homem compra uma escrava, deixa-se levar por uma paixão carnal, perde a escrava, recupera o dinheiro. E ganhou o que com tudo isto? Ganhou a experiência; ganhou um fato extraordinário em sua vida; ganhou (talvez o conto seja autobiográfico, e o homem da história seja Ahmed Ech Chiruani) uma história para contar.