domingo, 21 de junho de 2009

1110) “Les 400 Coups” (5.10.2006)



Revi na TV a cabo este belo filme de François Truffaut, seu primeiro longa, lançado em 1959 (no Brasil, Os Incompreendidos). Um adolescente vive com problemas na escola (a qual, aqui pra nós, é um pé no saco), e também em casa, com a mãe indiferente e um padrasto que é boa-praça, mas até um certo ponto. Truffaut ficaria durante décadas contando a vida deste personagem, Antoine Doinel, sempre interpretado pelo ótimo Jean-Pierre Léaud, numa experiência rara de cine-biografia à qual os críticos não parecem dar a devida importância, por estarem sempre preocupados em discutir como Godard posicionou a câmera.

A câmera de Truffaut segue Antoine como um cão fiel, por uma Paris em preto-e-branco que perde muitíssimo na TV, mas que na tela larga era tão rica de formas e tons que ninguém conceberia aquela cidade filmada em cores. Truffaut é um cineasta narrativo, acima de tudo. Seus enquadramentos e movimentos de câmara são feitos em função do modo como os atores se deslocam, naquele balé discreto que nos afasta, nos aproxima, nos faz pular de um campo para um contracampo, de um plano de detalhe para um plano geral, de uma maneira tão fluida que não percebemos os cortes. A fotografia, aliás, é de Henri Decae, e me trouxe uma grande saudade daquele tempo em que a enorme tela do cinema era toda preenchida com uma imagem P&B.

Bons filmes nunca param de trazer surpresas. A seqüência final mostra Doinel fugindo do reformatório, correndo na estrada, pernas-pra-que-te-quero, acompanhado pela câmara num interminável carrinho lateral que mantém em quadro o menino, até que este chega na praia, corre até a água, molha os pés na espuma, vira-se para a câmara e tem sua imagem congelada, com um olhar desafiador, perdido, insondável. Pela primeira vez me toquei o quanto esta seqüência lembra os planos finais de Deus e o Diabo na Terra do Sol, a corrida desabalada de Manuel e Rosa, e no fim o Mar invadindo tudo.

Quando vi o filme pela primeira vez, era pouco mais velho que o protagonista, e nem prestei atenção nos adultos. Revendo-o trinta anos depois percebo o quanto ele narra a coexistência de dois mundos, o dos adultos e o dos garotos, que se misturam, se relacionam, são interdependentes, mas parecem não registrar a existência um do outro. Os adultos só se preocupam com seus próprios assuntos, e tudo que Doinel faz, de certo ou de errado, passa batido: furtar dinheiro, cuidar da casa... O título mais adequado em português seria “Os Despercebidos”.

Os garotos do filme (e de sempre) são espertos, sagazes, cheios de recursos, solidários, fazem as maiores burradas, metem-se em enrascadas infantis, mas sempre com a seriedade de quem joga a vida em cada lance. Hoje nos comovemos com a ingenuidade do crime que leva Doinel à cadeia e ao reformatório, entregue pelos próprios pais. Vai ver que naquele tempo, furtar (e depois tentar devolver) uma máquina de escrever era o pior que podia acontecer com um garoto de família.

1109) A Razão Deslocada (4.10.2006)



Chamo de “razão deslocada” aqueles comportamentos que parecem racionais e lógicos, mas são inadequados àquela aplicação específica. Para algumas pessoas, basta que um comportamento tenha uma razão de ser (uma única razão de ser) para estar justificado, e ninguém ter que dar explicações. Visto à distância, contudo, este comportamento racional torna-se absurdo, no contexto maior de todos os fatos envolvidos. É aquele célebre exemplo de Bertolt Brecht: “Isto equivale a pintar a parede do camarote de um navio que está indo a pique”.

Uma vez alguém me perguntou por que motivo eu não arrumava os livros da minha estante por ordem alfabética. Expliquei que prefiro arrumar por assunto. Ficção científica nesta prateleira aqui, Arsène Lupin e assuntos nordestinos ali embaixo, cantoria-de-viola e cinema de terror ali à direita... Pode não ter muita lógica, mas tudo que eu procuro eu acho em poucos segundos, é um sistema mais eficaz do que o Google.

Jorge Luís Borges usou certa vez o termo “a desordem alfabética”, que é de uma lucidez cristalina. A ordem alfabética é uma desordem, se considerada, por exemplo, do ponto de vista da cronologia ou da nacionalidade. Todas as vezes que impomos o crivo de um critério, explodimos todos os outros. Um dos casos mais curiosos de coincidência (que de vez em quando me acontece) é ver, numa bibliografia, dois livros sobre o mesmo assunto aparecendo lado a lado porque os seus autores se chamam Hoffmann e Hoffmannstahl, por exemplo.

Razão Deslocada é o caso daquelas pessoas que têm uma inflamaçãozinha de garganta e se entopem de antibióticos, pouco ligando para os efeitos colaterais. É o caso do sujeito que trabalha 15 horas por dia, mas, como está gastando mais do que ganha, resolve fazer hora-extra para equilibrar o orçamento (em vez de gastar menos). É o caso de um sistema de Previdência que, ao perceber milhares de contas fantasmas criadas por seus próprios funcionários, exige que todos os velhinhos do país compareçam pessoalmente ao guichê para provar que existem. É o caso do rei que, ao ouvir falar que nasceu um Messias, manda degolar todos os bebês do reino para preservar o trono.

Qualquer ação pode ser racionalmente justificada, principalmente hoje em dia, quando o uso compulsivo e obrigatório da Razão foi capaz de deslocá-la na direção que mais convém a forças que lhe são opostas, inclusive o Absurdo. Desenvolveram-se em nosso mundo centenas de discursos racionais paralelos, todos auto-justificáveis, e quase todos incompatíveis entre si. Governos, exércitos, corporações e diretorias de clubes de futebol são os exemplos mais notórios do emprego da Razão Deslocada, porque cada um tem sua agenda secreta, cada um tem seus propósitos que não podem ser declarados em público, mas cada um dispõe de equipes teorizadoras e de porta-vozes capazes de justificar, com lógica e racionalidade, qualquer coisa. E estou dizendo Qualquer Coisa, mesmo.

1108) Os paradoxos do jornalismo (3.10.2006)




(livro de F. Fraser Bond)

Stanislaw Lem observou que no conto “A Loteria de Babilônia” de Jorge Luís Borges, tudo obedece simultaneamente ao Acaso e ao Determinismo. Um universo tão contraditório quanto o das gravuras de M. C. Escher, onde há elementos espaciais e visuais que se excluem mutuamente. Se um deles existir, o outro é impossível. 

Algo dessa relação existe na maneira como tratamos a imprensa e o jornalismo. Porque todo mundo que fala ou escreve sobre este assunto recorre o tempo todo a dois conceitos que para mim não podem coexistir no mesmo Universo. São os conceitos de “liberdade de imprensa” e de “jornalismo imparcial”.

O conceito de liberdade de imprensa sofreu uma distorção benigna, mas ainda assim uma distorção, durante os longos 20 anos da ditadura militar. A imprensa queria denunciar tudo que havia no Brasil daquela época: as prisões, as torturas, as arbitrariedades, a corrupção, as pequenas máfias que foram se formando à sombra dos abusos de poder. Pedia-se liberdade de imprensa o tempo inteiro, e esta expressão ficou sendo encarada como um Absoluto, um dogma inatacável. 

Liberdade tinha que ser ampla, geral e irrestrita. Quem sugerisse qualquer limitação à liberdade de imprensa (ou a qualquer outra) era chamado de nazista ou coisa pior.

Ao mesmo tempo, as faculdades de jornalismo procuram advertir os estudantes de que o jornalismo deve ser imparcial, não deve tomar partido, tem que ficar eqüidistante, “parecendo a imagem da Justiça”. O jornalista não deve se envolver ideologicamente ou emocionalmente com os fatos reportados. 

Ora, esta é uma situação ideal, própria dos manuais e dos decálogos de mandamentos, mas difícil de alcançar na vida prática. Todo mundo se envolve, mais cedo ou mais tarde. Não se envolve em tudo, claro. Mas acaba se envolvendo em algo, ainda que movido pela “indignação cívica” ou outro conjunto equivalente de boas intenções. Envolve-se, e torna-se parcial, quando defende o que acha Certo contra o que acha que é Errado.

Liberdade e imparcialidade são dois extremos de uma escala. Quando pedimos liberdade de imprensa, não é para publicar receitas de bolo, é para publicar coisas que vão incomodar alguém. Liberdade para dizer coisas que gente importante preferia que não fossem ditas. Liberdade para botar a boca no trombone, dizer que o rei está nu, e que existe algo de podre no reino da Dinamarca. 

Liberdade, num mundo cheio de conflitos de interesses, cedo ou tarde vai incomodar alguém, cedo ou tarde vai tomar partido, vai dizer ao público: “Está acontecendo tal e tal coisa, e isto está errado”. Ou seja, quando pedimos liberdade de imprensa, estamos pedindo justamente que a imprensa tenha o direito de não ser imparcial, de tomar partido, de ficar do lado de A ou de B quando A e B estão travando algum tipo de combate. 

Um jornalista (ou um juiz, etc.) não pode ser totalmente imparcial e ao mesmo tempo defender o Certo contra o Errado, conceitos escorregadios como o mercúrio.






1107) Erros criadores (2.10.2006)




Iron Butterfly foi uma fugacíssima banda de heavy metal cujo disco In-A-Gadda-Da-Vida ouvi muito nos anos 1970. O nome da banda tinha um curioso paralelismo com o do Led Zeppelin, mas nunca entendi o significado do nome do disco até ler que o título, extraído da faixa mais longa, pretendia ser “In the Garden of Eden”, mas os músicos estavam tão chapados durante a gravação e com a voz tão pastosa que os técnicos assim anotaram, e assim ficou, forever.

Erros criadores estão por trás de muita coisa que só vemos depois de pronta e não entendemos como chegou a ser assim. Alguém conhece um pássaro chamado “assum”? Não vale falar em “Assum Preto”, porque já me foi garantido que o pássaro na verdade é “anum preto”, e o título da música, escrito a mão, gerou por erro de leitura esse pássaro imaginário que, “não vendo a luz, canta de dor”. Não acho que a versão seja fantasiosa.

Ocorreu a mesma coisa na feitura do disco Paê-Birú, que Zé Ramalho e Lula Cortes gravaram nos anos 1970. Queriam saber como era o nome indígena do “Caminho da Montanha do Sol”. Raul Córdula informou por telefone que era “Pê-á-Birú”, mas alguém copiou errado e o resto é História.

Me contaram que o cartunista Henfil visitou certa vez, em Vitória da Conquista, o músico Elomar, que o encantou com sua criação de bodes e suas canções trovadorescas, que ele pensava em reunir num espetáculo intitulado o Auto da Caatinga. Henfil voltou para o Rio fascinado, criou o personagem Bode Orellana (que comia livros para ficar intelectual) e morava num lugar chamado “Alto da Caatinga” (que hoje dá 285 menções no Google, contra zero do “Auto”, que ao que parece nunca saiu do papel).

Baseado numa tradução equivocada da palavra “raios de luz”, Michelangelo esculpiu um par de chifres na cabeça de sua famosa estátua de Moisés. As luminosas emanações divinas se converteram nesse acessório cáprico, que nos séculos seguintes forneceu munição para teorias satanistas e o escambau.

Dizem que as descontraídas entrevistas do Pasquim surgiram de um erro de transcrição. A primeira delas, com Ibrahim Sued, teve suas fitas copiadas na íntegra pelas secretárias, com todas as hesitações, palavrões, bate-bocas, risos, erros, correções em voz alta. Por descuido, não passou por copidesque, e foi publicada na íntegra. Revolucionou a imprensa brasileira.

Num ensaio sobre Alain Resnais, o crítico Jonathan Rosenbaum, do Chicago Reader, comenta que uma confusão involuntária entre os nomes do dramaturgo Henry Bernstein e do maestro Leonard Bernstein acabou ditando o estilo do filme Mélo, que Resnais dirigiu em 1986. Rosenbaum chama a isto “desvio criativo” (“creative indirection”): é quando estamos indo numa direção, pegamos um desvio por engano, e acabamos chegando num lugar diferente do que pretendíamos, mas muito mais interessante. Ou, pelo menos, depois do fato consumado só nos resta dar de ombros e sacramentar: “Deixa, não mexe não, ficou bem melhor assim”.




1106) Os Nove Desconhecidos (1.10.2006)




(Gilbert Garcin: "L'Inconnu")

Entre as Teorias da Conspiração que circulam por aí, uma das mais curiosas é a dos Nove Desconhecidos. As fontes a respeito são contraditórias, ou melhor, caóticas e desencontradas, mas concordam num aspecto básico. 

Dizem que há muitos séculos existem no mundo nove indivíduos espiritualmente íntegros, detentores de um saber extraordinário e secreto, cuidadosamente guardado e transmitido através dos tempos. Algumas versões falam que cada um desses indivíduos é guardião de um Livro, o qual nunca pára de ser atualizado com novas descobertas.

Seriam nove livros contendo os segredos essenciais de nove ramos do conhecimento: 

1) lingüística; 
2) fisiologia; 
3) microbiologia; 
4) transmutação dos metais; 
5) telecomunicações; 
6) gravitação; 
7) cosmogonia; 
8) luz; 
9) sociologia. 

Esta é uma das diferentes listas que são reproduzidas em livros e saites por aí. Me parece uma lista meio caótica, até porque os itens 6, 7 e 8 lidam com assuntos muito próximos e pela lógica científica deveriam constituir um único campo. 

Em todo caso, dizem que às vezes acontecem “vazamentos” de informações em alguma destas áreas. O Judô, por exemplo, teria tido origem num vazamento do Livro 2, onde se fala de técnicas que possibilitam matar ou imobilizar um indivíduo apenas tocando em seu corpo, sem o emprego de armas. A Alquimia Medieval teria sido outro vazamento, desta vez de processos contidos no Livro 4. E assim por diante.

Segundo outras interpretações, no entanto, a coisa é menos conspiratorial e mais filosófica. Os Nove Desconhecidos são um número meramente simbólico. Não existem “Livros” secretamente mantidos e atualizados – fico imaginando, aliás, quantos milhares de páginas teriam estes livros, a esta altura do campeonato.

A lenda dos Nove Desconhecidos assevera que deve-se a eles a sobrevivência moral da Humanidade, e o fato de que a nossa espécie ainda não tenha sido consumida pelas guerras, pelas pestes ou pelo caos social. Incógnitos, anônimos, humildes, eles trabalham em surdina, enquanto os governos, os exércitos e as corporações depredam o mundo. 

Mas não são apenas nove. São muitos mais.

Há uma narrativa sobre um sujeito que dedica sua vida a investigar esta lenda. Procurando aproximar-se dos detentores dos nove livros mágicos, ele estuda a fundo todas estas matérias, deduzindo que cedo ou tarde, se se aprofundar o bastante, seu caminho acabará cruzando com pelo menos um desses mestres. Torna-se muito respeitado entre os outros sábios, embora ninguém o conheça nos meios intelectuais, nas cortes, no meio da nobreza. 

Já bem velho, perto de morrer, alguém lhe traz, para traduzir, um documento escrito num idioma obscuro, garantindo-lhe ser a prova concreta da existência de um dos Nove Desconhecidos; é a biografia completa de um deles. Quando começa a ler, ele descobre ali a história de sua própria vida. Ele era um dos sujeitos que mantinham viva a sabedoria e a honestidade.






1105) Nonada (30.9.2006)



O doutor de óculos chega de visita no sitiozinho do velho jagunço. Senta no alpendre, alguém lhe oferece água, diz que o dono da casa chega já. Durante o copo dágua, o visitante ouve tiros e mais tiros nas proximidades: pá, pá, pá... Daí a pouco chega o jagunço velho, cumprimenta-o, deixa-se cair na rede da varanda. O doutor exprime sua preocupação: está havendo briga, tiroteio com inimigos?... O velho dá uma risada e diz: “Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego...”

Guimarães Rosa pegou uma das palavras mais esquecidas da língua e trouxe-a para o proscênio, desnudando-a para sempre à luz dos holofotes da posteridade. Quem se disponha a entrar nas seiscentas e tantas páginas de “Grande Sertão: Veredas” vai ter que fazê-lo pela mão dessa palavrinha meninota, novinha em folha. E que significa “quase nada”. Um nadinha de nada. Coisa sem importância, coisinha ínfima, bagatela.

Minha definição pessoal de “nonada” se baseia nessa forma, que me parece óbvia: “não-nada”. Parece uma fórmula minimizadora: “ah, não foi nada não...” Mas não-nada é para mim aquilo que em Matemática chamamos “diferente de zero”, usando como notação diante do zero o sinal-de-igual cortado por uma barra oblíqua. Diferente de zero pode ser algo como 0,001. Quase nada. Um nadica de nenhuma coisa, mas uma lasquinha de coisa que para se representar na página gasta mais tinta do que um 1.

Por que essa preocupação, essa minúcia oftalmológica de enxergar tamanhinhos ciscos, tamanhinhos grãos? Porque tudo tem importância. O doutor precisa saber que aqueles tiros não foram para matar gente. Foram tiros virtuais, tiros estéreis, descarga de projéteis sem alvo humano envolvido. Não foram uma coisa, mas foram outra. Nada no mundo é o zero total, tudo tem uma vírgula e um colar de zeros com um 1 lá na ponta. Tudo que existe é um não-nada, é negação do vazio.

Por que lembro disto logo agora? Porque hoje no espelho vi um jagunço velho que nunca deu um tiro, nunca se travou de faca com seu-ninguém, nunca foi chamado a descobrir se é ele mesmo ou não, e ficou achando que nada do que faça tem tutano e matéria. Acha, por exemplo, que nada do que faça pode sacudir este País de cima a baixo, como ele sonhou um dia que era sua predestinação. Esse tempo, se veio, passou sem ser notado, e ele hoje se acha um zé-às-dúzias, um joão-grosa, um desses milhões de doutores de óculos que não sabem nem pra que lado se aponta um parabelo. Mas ele se consola em saber que, em dia de eleição, ele é um dos cem milhões de eleitores que vão às urnas. É um não-nada: aproximadamente 0,00000001. Ele é um voto somente, mas um voto é um tiro virtual, um tiro com que a gente derruba todos e deixa de pé apenas um. Abram alas, por favor. Amanhã o velho jagunço troca de roupa, empunha o título e sai de casa, sabendo que se errar vai fazer uma diferença danada.