terça-feira, 8 de abril de 2008

0360) Ela, a feiticeira (15.5.2004)



A Editora Record está lançando a coleção “Clássicos da Aventura”, que abre com o romance Ela, de H. Rider Haggard. O livro já teve uma edição brasileira nos anos 1950, nas coleções de livros-de-bolso da “Edições de Ouro” (Tecnoprint), com o título Ela, a feiticeira. É um clássico do romance de aventuras, por um autor relativamente esquecido. Digo “relativamente” porque os romances de Haggard têm sido de vez em quando adaptados para o cinema, com resultados invariavelmente desastrosos. Seu clássico As minas do Rei Salomão, que tem uma primorosa tradução portuguesa de Eça de Queirós, foi filmado de maneira ridícula (com Richard Chamberlain no papel), em tom de comédia, numa tentativa frustrada de imitar o sucesso de Indiana Jones. E seu personagem mais conhecido, Allan Quatermain, apareceu recentemente, vivido por Sean Connery, no caótico A Liga Extraordinária, reunião de super-heróis que banalizou e distorceu uma boa aventura de quadrinhos escrita por Alan Moore.

Ela (She) foi escrito em 1887, e é um dos pontos altos daquela literatura vitoriana em que exploradores se embrenham nos confins da África em busca de aventuras. É o lado deslumbrante da aventura do colonialismo, onde impecáveis cavalheiros britânicos enfrentam perigos, combatem povos selvagens, e descobrem tesouros espantosos, além de vestígios ou remanescentes de antigas civilizações. Ela nos conta a aventura de Horace Holly e seu pupilo Leo Vincey, que no curso de uma dessas aventuras vão parar no reino perdido de Kôr, governado por uma rainha ímortal, de tal beleza que só pode ser vista através de véus. Dotada de poderes sobrenaturais, a rainha Ayesha descobre que Leo Vincey é a reencarnação do seu amado, que havia morrido milhares de anos antes, e cujo regresso ela continuava a esperar.

Diz-se que quando Haggard terminou seu romance, levou o manuscrito ao escritório do seu editor, jogou-o em cima da mesa e disse: “Aí está o livro que fará meu nome ser lembrado no futuro.” Além de ser uma excelente história de aventuras, “Ela” foi interpretado também como um raio-X no inconsciente de sua época. Carl Jung viu em Ayesha a personificação da “anima”, da imagem feminina que mobiliza o desejo e as energias vitais de todos os homens. Ela é irresistível, dominadora; é a personificação “dos humores e sentimentos instáveis, as intuições proféticas, a receptividade ao irracional, a capacidade de amar, a sensibilidade à natureza e o relacionamento com o inconsciente”. Bela, cruel, apaixonada, Ayesha tornou-se um símbolo da feminilidade sem freios e sem censuras. A sociedade que produziu Sherlock Holmes, símbolo do racionalismo frio e impassível, despojado de emoções, produziu também a sua contrapartida. No mundo vitoriano, de moralidade repressora e hipocrisias públicas, os arquétipos emergiam em estado puro, como jorros de lava do inconsciente subterrâneo.

0359) Calvino e a multiplicidade (14.5.2004)


(Algorithmic Art)

A quinta das Seis propostas para o próximo milênio escolhidas por Ítalo Calvino é a multiplicidade, cujo habitat natural ele situa no romance, este gênero literário que, como o Conde Drácula, tantas vezes tenha sua morte proclamada quantas retorna, mais vivo do que nunca, quando menos se espera. Calvino define o romance contemporâneo “como enciclopédia, como método de conhecimento, e principalmente como rede de conexões entre os fatos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo.” O romance não seria um gênero com uma fórmula nítida, mas um campo de testes e aplicações de fórmulas; não seria um objeto, e sim um atrator de objetos.

O exemplo colhido por Calvino para dar o pontapé inicial em sua idéia de multiplicidade é o do romancista italiano Carlo Emilio Gadda, o qual, para ele, ilustra bem algumas tendências do romance do século 20: 1) a superposição, ou uso simultâneo, de diferentes níveis de linguagem; 2) a consciência do mundo como um “sistema de sistemas” que se influenciam mutuamente; 3) a percepção de cada objeto, evento ou personagem como o “centro de uma rede de relações” cuja descrição pode se estender ao infinito; 4) uma voracidade em absorver diferentes ramos do saber (que ele exemplifica com Flaubert lendo mais de 1.500 livros para escrever Bouvard e Pécuchet).

Calvino vê na literatura de hoje esta busca quixotesca pelo mais-infinito e pelo menos-infinito: “Sempre me fascinou o fato de que Mallarmé, que em seus versos tinha conseguido dar uma incomparável forma cristalina ao nada, tenha dedicado seus últimos anos de vida a conceber um livro absoluto que seria o fim último do universo...” Ele lembra Novalis, que também se propôs escrever um “livro absoluto”, ora visto como uma “enciclopedística”, ora como uma “Bíblia”, e lembra Humboldt, que em seu Kosmos se propôs a produzir uma “descrição do universo físico”. No entanto, ele acha que as tentativas mais bem sucedidas são aquelas (como em James Joyce) onde o livro, em vez de tentar trazer o universo inteiro para dentro de si, abre-se para ele: “o que conta não é o seu encerrar-se numa figura harmoniosa, mas a força centrífuga que dele se liberta, a pluralidade das linguagens como garantia de uma verdade que não seja parcial.”

Ele vê nos contos de Jorge Luís Borges, “textos contidos em poucas páginas”, a melhor concretização dessa literatura múltipla, ponto focal da sensibilidade poética e da consciência científica: “cada texto seu contém um modelo do universo ou de um atributo do universo – o infinito, o inumerável, o tempo, eterno ou compreendido simultaneamente ou cíclico”. Seus contos são equivalentes a “romances extensos ou extensíssimos, nos quais a densidade de concentração se reproduz em cada parte separada”. A multiplicidade, portanto, não está condicionada à extensão do texto, e sim à capacidade do autor de lidar com diferentes categorias de pensamento e diferentes discursos narrativos.

0358) Calvino e a visibilidade (13.5.2004)



Italo Calvino vê dois tipos de processos imaginativos: o que parte da palavra para chegar à imagem (quando lemos um livro e visualizamos suas descrições , p. ex.) e o que parte da imagem para chegar à palavra (quando presenciamos um fato ou vemos um filme, e tentamos descrevê-lo). 

O pensamento verbal, analítico, se realimenta constantemente com a nossa percepção e nossa memória visual. Ser capaz de visualizar o inexistente é uma arte, e ele abre sua conferência sobre “Visibilidade” nas Seis propostas para o próximo milênio citando Dante, poeta universalmente louvado por sua impressionante capacidade de imaginar o fantástico. 

Diz ele (Purgatório, XVII, 25): “Chove dentro da alta fantasia...” A imaginação é um lugar onde as imagens parecem chover, chegar até nós.

A visibilidade a que Calvino se refere é mais a capacidade de fazer ver com a mente do que a de fazer ver com os olhos, mas as duas estão ligadas. Calvino descreve a gênese de muitas de suas obras como uma imagem visual que brota sem explicação: um homem que só tem a metade esquerda do corpo; um homem que vive andando de árvore em árvore, sem tocar o chão; uma armadura vazia, mas que fala e anda. 

O que acontece em seguida é o desenvolvimento de uma voz narrativa adequada a essa imagem, e essa empostação verbal vai se apossando do escritor à medida que ele desenvolve o texto, não restando à imaginação visual senão seguir a reboque das palavras. A imagem visível deflagra o processo criativo, que a partir daí é administrado pela carpintaria verbal.

Calvino é um dos escritores contemporâneos que mais freqüentam e melhor entendem o mundo da Ciência. Sem aceitar a falácia da oposição entre Ciência e Arte, ele afirma sensatamente que a mente do poeta e a do cientista funcionam de maneira muito semelhante, propondo-se problemas e resolvendo-os através de um processo de associação de imagens, que para ele é “o sistema mais rápido de coordenar e escolher entre as formas infinitas do possível e do impossível.” 

É um raciocínio intuitivo e instantâneo muito parecido ao dos jogadores de xadrez (ver “Xadrez sem mestre”, 31.5.2003; “O xadrez e o repente”, 14.9.2003). A fantasia é para ele “uma espécie de máquina eletrônica que leva em conta todas as combinações possíveis e escolhe as que obedecem a um fim. Ou que simplesmente são as mais interessantes, agradáveis ou divertidas”.

O Autor recorda a infância, quando mergulhava nas histórias em quadrinhos dos jornais italianos (Sobrinhos do Capitão, Gato Félix, etc.), antes mesmo de saber ler, inventando os diálogos ou interpretando as situações de acordo com as figuras – processo que retomou depois ao usar o Tarot e a pintura clássica para sugerir o enredo de O castelo dos destinos cruzados

É interessante que a maior parte dos narradores intuitivos prefira usar pontos-de-partida visuais, aleatórios, carregados de conteúdo emocional, e em seguida elaborá-los verbalmente.





0357) Conan Doyle e o elo mais fraco (12.5.2004)



Nas páginas iniciais de O Vale do Terror, Sherlock Holmes e o Dr. Watson examinam uma mensagem cifrada, enviada por um membro da quadrilha do Prof. Moriarty – um tal de “Porlock” que de vez em quando informa a polícia sobre crimes em preparo. Holmes observa que Porlock é apenas um elo na corrente criminosa montada por Moriarty, e Watson pronuncia a frase famosa (que até eu mesmo já atribuí ao detetive): “Nenhuma corrente é mais forte do que o seu elo mais fraco”. Como muitas grandes frases da História, esta consegue resumir uma idéia crucial numa imagem nítida e forte. Basta imaginarmos uma corrente de ferro onde um dos elos é de pano, ou de papel. No momento em que a corrente fôr esticada com maior tensão, ou com um puxão mais brusco, de nada adiantam os 99 elos de ferro: é o elo mais fraco que parte a corrente.

Um bom exemplo deste caso é a política. Suponhamos que num certo país, conhecido pela corrupção imperante em seus círculos do Poder, sobe ao governo um Partido tido como “reserva ética e moral” da nação, e um presidente com fama de incorruptível. Presidente e Partido têm a firme intenção de mostrar a todos que se pode fazer política sem cair na tentação de meter a mão no cofre-da-viúva. O problema é que eles têm também a firme intenção de permanecer no Poder enquanto Deus fôr servido, de modo que começam a fazer alianças políticas pra todo lado, ou seja, a forjar elos. Fulano de Tal é um elo importante, pois arrasta consigo tantos-mil eleitores na Região Norte. Sicrano de Tal é outro elo indispensável, porque pode garantir 30 votos no Congresso. Beltrano de Tal é outro elo que não pode ser dispensado, porque atrai o eleitorado evangélico... e por aí vai.

Uma aliança política é um elo. Em política, ninguém é mais honesto do que as alianças que arranja. A toda hora vemos políticos incorruptíveis desabando do pedestal, não porque tenham feito-um-vale no erário público, mas porque se aliaram a um Silveirinha, um Lalau, um Waldomiro. As correntes são numerosas, os elos são incontáveis, é impossível checar todos eles. Política é uma atividade quantitativa. E fazer alianças políticas deve ser mais ou menos como contratar um músico novo para a banda. O empresário liga para duas ou três pessoas: “Esse cara toca bem? É trabalhoso? É careiro?” Faz-se um balanço rápido, e o resto é um salto no escuro. Em política, então, com dezenas de milhares de nomes envolvidos, é impossível ter um raio-X, uma folha-corrida de todo mundo. Às vezes sabe-se que o cara teve um episódio nebuloso no passado, mas... no mundo da política, quem não teve? Bora em frente que atrás vem gente. Quando menos se espera, o elo faz “pá”!... e salta pedaço de corrente pra todo lado. Parece um problema? Não, é a solução. Quando a imprensa, as oposições e a opinião pública começam a testar a solidez de todas as correntes, quem está no poder começa a tomar a precaução de eliminar seus elos mais fracos.

0356) Calvino e a exatidão (11.5.2004)





Ao começar a ler as Seis propostas para o próximo milênio de Ítalo Calvino, e ao ter conhecimento das seis coordenadas estilísticas que ele propunha (leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade, consistência), pensei de imediato que a exatidão seria a que eu instintivamente mais associava ao nome do escritor. 

A prosa de Calvino é de uma limpidez prodigiosa, e isto é tanto mais importante quando essa prosa serve a uma enorme imaginação. Na literatura fantástica contemporânea, Calvino pertence àquela escola comparável à de pintores como Dali ou Magritte: visões extraordinárias reproduzidas com precisão fotográfica.

Calvino começa definindo o que caracteriza a exatidão: 

1) um projeto de obra bem definido e calculado; 

2) a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis; 

3) a linguagem mais precisa possível como léxico, para traduzir as nuances do pensamento e da imaginação. 

Para demonstrar sua tese ele toma, quase como redução ao absurdo, o exemplo de Leopardi, o grande poeta italiano, para quem a linguagem seria tanto mais poética quanto mais vaga e imprecisa fosse. 

Citando textos do Zibaldone, Calvino mostra a imensa meticulosidade e precisão com que Leopardi descreve os incontáveis e “imprecisos” jogos da luz diurna e noturna sobre uma paisagem ou sobre um casario, e conclui: 

“Para se alcançar a imprecisão desejada, é necessário a atenção extremamente precisa e meticulosa”.

Ele cita como modelo de perfeição o cristal, que concentra em si a beleza das formas e proporções geométricas. Mas complementa esta imagem com outra, extraída do crítico Massimo Piattelli-Palmarini, que assim define os modelos para o processo de formação dos seres vivos: 


“De um lado o cristal (imagem de invariância e de regularidade das estruturas específicas), e de outro a chama (imagem da constância de uma forma global exterior, apesar da incessante agitação interna).” 

Quando vemos uma chama, sabemos que aquilo é simplesmente uma área do espaço preenchida por um campo de minúsculas explosões, ou combustão de gases. Sabedores disto, nossa visão do cristal se modifica, pois admitimos que ele, também, é uma área do espaço preenchida por um turbilhão de átomos. 

A bela dualidade sugerida por Palmarini não deixa de nos evocar também, como síntese, o verso de Manuel Bandeira: “A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos”.

A linguagem inexata nos empobrece; a exatidão nos revela um mundo de inesgotável riqueza e variedade. 

Calvino observa uma curiosa vocação para “o exercício de descrições” na poesia de William Carlos Williams, Marianne Moore (a dos “jardins imaginários cheios de sapos verdadeiros”), Eugenio Montale e Francis Ponge, “poeta que se bate com a linguagem para transformá-la numa linguagem das coisas”. 

Por mais que venha a ser exata, a palavra, tal como a aritmética e a geometria, jamais dará conta da infinita variedade e mutabilidade do mundo.  










0355) Os super-vilões (9.5.2004)



Desde o 11 de setembro a figura de Osama Bin Laden habita os pesadelos do mundo ocidental. Há muito tempo o mundo não desfrutava de um super-vilão tão nítido, tão adequado. Os ditadores das últimas décadas, além de caricatos, sempre tiveram ação circunscrita a sua área geográfica: Idi Amin, Ferdinand Marcos, Papa Doc, Bokassa, Pinochet, Kadhafi, Saddam Hussein, Pol Pot, Khomeini... Todos eles foram demonizados pelos governos e pela imprensa ocidental (com exceção do General Pinochet, que até pouco tempo atrás somente nós, latino-americanos, chamávamos publicamente de assassino), mas nenhum deles foi em momento algum encarado como uma ameaça ao mundo. Um atentado ou seqüestro de vez em quando, um crime de grandes proporções, mas nada que tirasse o sono de quem vivia em outro continente.

Osama Bin Laden e o 11/9 mudaram tudo. Ainda tenho minhas dúvidas se foi mesmo Bin Laden o orquestrador daquilo. É mais possível que tenha financiado, encorajado, ajudado com a logística. Mas quem sentou na mesa com os mapas, os horários de vôos, as plantas dos prédios... ah, não foi ele não. Foi gente que faz a barba todo dia e não mora em caverna. Osama serve para nós porque corresponde, com outro perfil étnico, à imagem dos super-vilões com que a cultura-de-massas nos acostumou desde o Dr. Fu Manchu, criado por Sax Rohmer em 1912. Fu Manchu exprimia o medo britânico e norte-americano das imigrações em massa de chineses na virada do século. Foi quando o Ocidente começou a ter uma noção da ameaça meramente quantitativa que era a China. Essa ameaça foi personificada em Fu Manchu, um cérebro privilegiado, formado em três universidades do Ocidente, mestre do disfarce, e que tinha em suas mãos as rédeas de todas as sociedades secretas do mundo.

Fu Manchu teve uma horda de imitadores nos pulp-magazines americanos (“Wu Fang, o Senhor da Morte”, “Dr. Yen Sin”); estes arqui-vilões orientais tinham uma contrapartida européia no Dr. Mabuse dos filmes de Fritz Lang. Como todo arqui-vilão, Mabuse se considera “um Estado dentro do Estado”. O arqui-vilão típico é um gangster elevado ao quadrado: em vez de controlar um bairro, ele quer dominar o mundo: “Agora o mundo saberá quem sou eu! Serei um gigante, um titã que varre as leis e os deuses como folhas secas!” A oratória desvairada de Mabuse inspirou muitos imitadores, mas logo foi substituída por estilos mais melífluos e suaves, como os vilões típicos de James Bond (Dr. No, Goldfinger, Blofeld). Osama Bin Laden tem alguns traços típicos dos arqui-vilões da “pulp fiction”: paradeiro desconhecido, imensa fortuna, uma rede de seguidores devotos e onipresentes, talento para se disfarçar e para se deslocar clandestinamente sem ser identificado, e uma capacidade quase hipnótica de comandar a mente dos seus seguidores. É um Fu Manchu em carne e osso, alguém que o inconsciente coletivo das multidões ocidentais enxerga com facilidade, e teme sem esforço da imaginação.