domingo, 31 de janeiro de 2010

1597) A arte do acrônimo (25.4.2008)




Um acrônimo é uma palavra onde cada letra (ou letras) serve como inicial de outra palavra, formando uma frase. É mais ou menos como uma sigla, só que em geral usamos o termo “sigla” para aqueles conjuntos de letras impronunciáveis como palavras, como BNB (Banco do Nordeste do Brasil), e “acrônimo” para termos que podem ser pronunciados como palavras, como Fifa (Fédération Internationale de Football Association), etc. Alguns acrônimos usam não apenas letras, mas combinam sílabas ou partes de sílabas de modo a que o resultado possa ser pronunciado: Sudene (Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste), Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), Bradesco (Banco Brasileiro de Descontos), e assim por diante.

Muitas vezes uma empresa ou uma entidade qualquer procura criar um acrônimo em cima de uma palavra que tenha relação com sua atividade principal, ou que, no linguajar do marketing, “reforce a imagem”. Um acrônimo como EAGLES (águias) indica o Expert Advisory Group On Language Engineering Standard ( algo como Grupo de Especialistas Consultores de Padrões de Engenharia da Linguagem). Podemos considerar que o disco Minas de Milton Nascimento tem em seu título um acrônimo do nome do cantor, numa feliz coincidência com sua origem cultural.

Uma técnica inversa consiste em pegar uma palavra pré-existente e imaginar uma frase da qual ela pudesse ser o acrônimo. Geralmente isto é feito com intuito satírico. Chico Anysio já disse na TV que o nome “Brasil” significa “Bravos Rapazes Americanos Silenciosamente Irão Levando”. No mundo do show-business corre a piada de que um convidado VIP é um “Viado Impossibilitado de Pagar”. NASA, para alguns, significa “Naves Aterrissando Sem Amortecedor”. Nos velhos tempos em que o atual INSS chamava-se INPS, Millôr Fernandes sugeriu: “Isto Não Pode Ser”. Às vezes o acrônimo serve somente como piada, sem relação direta com a palavra; é o caso da interpretação de Fanta como “F... Andando Ninguém Tentou Ainda” (o que não é verdade).

Houve um tempo em que eu jogava acrônimos com amigos em mesa de bar. Escolhíamos uma palavra ao acaso, olhando os cartazes nas paredes, e cada um usava as letras da palavra para formar um acrônimo. Ganhava quem fizesse a melhor frase, de preferência algo relativo à palavra, ou ao ambiente naquele instante. Pode parecer sem graça ou difícil, mas é impressionante como a mente humana, pressionada, é capaz de tirar leite de pedra. Principalmente quando o combustível é cerveja.

Há saites dedicados a esta nobre arte, em que uma palavra é proposta para que se formem frases. Uma das propostas mais interessantes é a de que a última palavra de um acrônimo sugira o próximo. Digamos que foi fornecida a palavra “Braulio”. Uma resposta seria: “Bom Rapaz, Admirável, Um Leitor Impecavelmente Organizado”. Esta última palavra serviria para formar o acrônimo seguinte. Vejam em: http://acronimo.blogspot.com/.

1596) A fórmula de Syd Field (24.4.2008)




Cacá Diegues disse uma vez que aqui no Brasil “cinema” é abreviatura de “cinema americano”. Isto é cada vez mais verdade, e uma prova é a importância que têm assumido os manuais de roteiro em nosso mercado editorial. 

Quando comecei a me interessar por cinema, os únicos livros que davam dicas de como fazer um roteiro eram Argumento e Roteiro e Elementos de Estética Cinematográfica de Umberto Barbaro, O Processo de Criação no Cinema de John Howard Lawson, um ou outro de Pudovkin. Hoje, em qualquer Siciliano ou Sodiler brasileira, os manuais de roteiro abundam.

Já me vi em situações delicadas quando meu interlocutor, lendo algo escrito por mim, opinava: “Olha, sinto muito mas não está de acordo com Syd Field”. Quando é o contratante que diz uma coisa assim, você gela, porque vê seu cheque batendo asas e acenando com o lenço, fugindo pela janela. Syd Field é o principal oficineiro e manualista de roteiros do cinema americano, e seus livros, lidos febrilmente aqui no Brasil, viraram uma espécie de Bíblia.

Field tem uma fórmula de roteiro (ele diz que não é fórmula, mas é), em que uma história é dividida em três atos. O Ato I tem 20 ou 30 páginas, o Ato II tem 60, e o Ato III tem 20 ou 30. 

Estes atos estão separados por dois “pontos de virada”, que são os pontos de transição entre os atos, definidos por reviravoltas que reacendem o interesse do espectador. 

E o ato mais longo, o do meio, tem o que ele chama de duas “pinças”, que ocorrem por volta das páginas 45 e 75, e são “incidentes ou acontecimentos que mantêm a história nos trilhos”. E assim por diante.

Está errado? Não. Field e seus seguidores (que são Legião) estudam a fundo o cinema norte-americano, e os americanos, como disse um crítico europeu, “descobriram o segredo do ritmo cinematográfico”. Questionar o ritmo cinematográfico de Hollywood é como questionar as orquestrações da música clássica européia ou a estrutura formal do soneto. Não se pode negá-las. Funcionam, e acabou-se. Mas não são a única possibilidade.

Field teoriza e receita um tipo de cinema, e suas receitas só valem para quem quer fazer cinema narrativo ao estilo norte-americano. O qual não é o único modo de fazer cinema. 

Atos, pontos de virada, pinças e tudo o mais não são “universais fílmicos”. São recursos técnicos inventados por uma cultura e um mercado. Nada obriga um cineasta sueco ou romeno a segui-los. Nada obriga um brasileiro. 

E não estou me referindo a filmes de arte (Godard, Bergman, Raul Ruiz), onde a platéia deve se curvar aos interesses do diretor. O cinema de entretenimento, em que o diretor deve se curvar aos interesses da platéia, é tão necessário quanto qualquer outro, mas não precisa seguir a fórmula Syd Field, por mais eficaz que ela seja. 

Seria como dizer que a fórmula da Coca-Cola é satisfatória, e que por isto o guaraná, a fanta ou a soda limonada “estão erradas”. Fórmulas existem para serem seguidas, mas também para serem inventadas.






1595) Um cão morrendo de fome (23.4.2008)




A Internet entrou em ebulição algum tempo atrás em torno de mais uma “instalação de arte contemporânea” perpetrada por nossos criativos artistas. Noticiou-se que o costarriquenho Guillermo Vargas, conhecido como “Habacuc”, teria amarrado um cachorro faminto numa exposição de artes plásticas e o deixado ali sem pão nem água, até que ele morreu de fome. Um abaixo-assinado de protesto se alastrou pela rede. Blogueiros pediram a cabeça de Habacuc, sugerindo que na próxima exposição ele amarrasse a própria mãe, etc. e tal.

Eu sou da tribo e conheço os caboclos. Tudo que aparece na Internet com abaixo-assinado sempre me acende uma luzinha de alerta, porque cheira a boato, invenção, lenda urbana. Pesquisei mais um pouco e achei, se não um desmentido categórico, pelo menos uma versão diferente dos fatos. Habacuc de fato usou o cão, mas ele era alimentado diariamente, e só ficava amarrado no salão durante as horas em que a exposição estava aberta ao público. Na parede da sala lia-se a frase “Eres lo que lees” (“Tu és o que lês”) em letras formadas com biscoitos de cachorro; e um aparelho de som tocava o hino sandinista ao contrário. Bem – em termos de arte talvez não seja nenhuma Guernica, mas é muito mais plausível do que a primeira versão. Além disso, o cachorro acabou fugindo depois de alguns dias, numa distração do vigilante.

Quem quiser mais detalhes veja o verbete de Habacuc na Wikipédia, ou consulte o blog português “Varal de Idéias” (em http://cimitan.blogspot.com/2008/04/este-post-repe-as-coisas-nos-seus.html). A Humane Society International (http://www.hsus.org/contact_us/humane_society_international.html#Q_dog_artist) critica a idéia do artista e afirma ser contra o uso de animais vivos em exposições, mas diz que pelas informações que obteve o cachorro estaria vivo, e teria fugido da exposição.

O interessante é que 2 milhões de pessoas assinaram o pedido de boicote à participação de Habacuc na Bienal Centroamericana de Honduras de 2008. Na página que abri agora, são 2 milhões, 147 mil, 980 assinaturas, entre as quais (fui conferir a lista) as de alguns amigos meus. O que me lembra um episódio que contam da vida de São Tomás de Aquino. Já velhinho ele vivia num mosteiro onde dava aulas para os noviços. Estes eram jovens e brincalhões, e resolveram zoar com o mestre. Amontoaram-se numa janela, quando viram que ele se aproximava, e começaram a apontar para o céu, aos gritos: “Vinde ver, Irmão Tomás! Vinde ver um boi voando!” Tomás chegou à janela, protegeu os olhos com a mão e ficou buscando em vão o boi nos ares. Os noviços riram e disseram: “Acreditaste que um boi pode voar?” E ele ripostou: “Achei que seria mais fácil um boi voar do que um religioso mentir”. Pois é – parece que hoje em dia é mais plausível um artista de vanguarda matar um cão de fome do que um desocupado postar uma mentira na Internet. Ó tempos! Ó costumes!

1594) O caso Isabella (22.4.2008)




Dias atrás escrevi aqui sugerindo outra linha de investigação para o caso da morte da menina Isabella, em São Paulo. Propus um hipotético suspeito: alguém com acesso ao prédio, como um operário da construção. Não porque achasse que esta era a solução, mas como alternativa à linha adotada desde o começo pela polícia e pela imprensa – a de que a menina teria sido morta pelo pai e pela madrasta. Na verdade não acreditei muito no meu imaginário “Zezinho”, que ao ser surpreendido pela garota dentro do apartamento a teria matado e atirado pela janela. Os indícios iniciais sobre o casal davam o que pensar, e os mais recentes parecem (parecem!) confirmar a culpa dos dois.

Minha preocupação é menos a de encontrar os culpados do que a de preservar os inocentes. Há pessoas que se deixam empolgar pela indignação moral diante de um crime e, quando é apontado o primeiro suspeito, ficam todas assanhadas, querendo linchá-lo no meio da rua. Não duvido que teriam feito isto com Alexandre Nardoni e Anna Jatobá, se a polícia os deixasse sair sem escolta. Enormes injustiças já foram praticadas aqui pela impaciência em achar um bode expiatório cujo apedrejamento público dê aos apedrejadores a sensação de que são pessoas dignas e respeitáveis, fazedoras de justiça. E não são. São pessoas transtornadas, preconceituosas, que se deixam levar por idéias preconcebidas sobre tipos de pessoas que são criminosos em potencial. Nos EUA, enforcaram-se negros em árvores e postes elétricos durante muitos anos. Bastava que um deles fosse acusado de alguma coisa.

O nosso Brasilzinho tão democrático não é muito diferente. Se a imprensa faz um pouquinho mais de pressão, todo mundo sai à rua de cabo de vassoura em punho, disposta a ser o carrasco de alguém que mal teve tempo de provar sua inocência. O caso da Escola Base é o mais notório – educadores foram acusados de pedofilia, foram depois inocentados, mas o mal estava feito, e a vida deles está arruinada até hoje. A Rede Globo, a revista IstoÉ e os jornais “Estado de São Paulo” e “Folha de São Paulo” já foram condenados a pagar indenizações às pessoas acusadas injustamente (ao que parece, houve apelações e os processos continuam correndo na Justiça).

Crianças indefesas, de famílias miseráveis, são mortas como Isabella todos os dias. Os defensores de crianças não se manifestam porque se pressupõe que numa favela ou numa periferia a vida é assim mesmo. É uma triste rotina. Quando a vítima é de classe média, o caso muda de figura – parece que só então trata-se de um ser humano; poderia (pensam os moralistas) ser um dos nossos próprios filhos. Não nego que a morte de Isabella é trágica, e deve comover a todos. Toda vez que penso nesse assunto também sinto uma revolta. Mas é assim que somos – escolhemos um bode expiatório cujo perfil nos convém, despejamos toda nossa indignação em cima dele, e depois vamos cuidar da nossa vida, que ninguém é de ferro.

1593) O Cérbero (20.4.2008)




Conta a mitologia grega que à porta do Inferno havia um gigantesco cão de guarda, o famoso Cérbero, cão de três cabeças prontas a dilacerar qualquer incauto. “Mas pra quê?” pensava eu. “Quem diabo vai querer entrar no Inferno?” Na verdade, Cérbero estava ali para evitar que os condenados ao fogo eterno fugissem. Era um cão-de-guarda ao contrário dos que temos aqui – não guardava a entrada, guardava a saída. Mesmo assim, também cumpria a função oposta, porque somente as almas dos condenados poderiam entrar no reino de Hades. Pessoas vivas não – daí o grave incidente diplomático ocorrido quando Orfeu apareceu por lá querendo trazer de volta sua amada Eurídice. E quando Hércules chegou para levar o próprio Cérbero consigo, cumprindo o último dos seus Doze Trabalhos.

Acho que a lenda grega morre aí, mas pretendo enriquecê-la noutra direção. Por que motivo o cão se chama Cérbero? Respondo: porque ele representa o nosso Cérebro, a nossa mente pensante, a nossa consciência. Exatamente por isto ele é figurado com três cabeças (em diferentes versões da lenda, números muito maiores, que chegam até a cem). É o excesso de proteção, de controle, de censura. A função ditatorial do nosso Super-Ego ou que nome lhe queiram dar – a função controladora que nos impede de fazer bobagens mais sérias e de praticar crimes, mas ao mesmo tempo nos proíbe um comportamento mais relaxado, mais intuitivo, mais espontâneo. Toda vez que você vir aquele sujeito todo certinho, todo tenso, todo bem comportado e impecavelmente limpo, todo politicamente correto, aquele cara que na hora de pagar a conta vai até a última casa decimal e paga trinta e dois reais e sessenta e sete centavos – não duvide, amigo: é um prisioneiro de Cérbero, um prisioneiro de sua própria mente controladora.

E por qual estatuto mitológico ele é colocado justamente como guardião da saída do Inferno? A explicação mais lógica que me ocorre é que o Inferno protegido por esse cérebro não é um Inferno externo a nós, e sim interno a nós, um inferno aqui dentro. Como dizia o poeta Gilberto Gil: “Teu inferno é aqui”. O Inferno é o Inconsciente, é o lugar para onde arremessamos tudo que não presta, tudo que nos inquieta e perturba, tudo que é uma ameaça à ordem, à limpeza e à disciplina. O cérebro está ali justamente para evitar que esses pensamentos mal comportados se evadam do porão e venham perturbar o chá-das-cinco que nossa “persona” pública toma na sala de visitas, recebendo as autoridades.

Todas as vezes que tentamos acessar nosso Inconsciente (rastreando um ato falho, dissecando uma neurose, confrontando um trauma daquele bem brabos, ou meramente analisando um sonho), o Cérebro de não-sei-quantas-cabeças aparece rosnando seu recado pitbull: “Pra trás!” rosna ele. “Aqui, não! Aqui só tem o que não presta!” E recuamos, temerosos. Talvez menos com medo das 100 cabeças do Cão do que com medo do nosso verdadeiro Rosto, que estamos a ponto de enxergar.