terça-feira, 30 de outubro de 2012

3017) Laerte: La Earth (30.10.2012)




(Laerte, foto de Rogério B. Huss)


A Terra, o nosso planeta, é vista como uma personagem feminina em movimentos influenciados pela contracultura, o feminismo, o misticismo, a ecologia e a preocupação com o meio ambiente. A Mãe Terra é uma criatura viva (alguns chamam a isto “a hipótese de Gaia”), e o princípio feminino seria o princípio básico da existência. Pode-se pensar numa situação em que na humanidade só existam mulheres e elas consigam de algum modo se auto-fecundar e gerar novos seres; mas não se pode pensar numa humanidade composta apenas de homens. Biologicamente, a humanidade consiste nelas, e nós somos acessórios necessários, por enquanto, à reprodução da espécie. (Mas que isto não nos esmoreça, companheiros, em nosso cumprimento do dever!)

Laerte Coutinho é um dos grandes quadrinhistas brasileiros, criador dos “Piratas do Tietê”; surgiu em revistas como Circo, Chiclete com Banana e outras, numa geração de desenhistas que incluía Angeli, Glauco, Adão Iturrusgarai, etc.  Há dois ou três anos começou a se vestir de mulher, e diz ele que deu mais entrevistas nos últimos tempos do que ao longo de toda sua longa carreira de desenhista (Laerte tem 61 anos). Laerte decidiu assumir sua porção feminina e vestir-se com as mesmas roupas que as mulheres se vestem, ir ao banheiro feminino, pedir para ser tratado como “ela” e “a senhora”, etc.

Laerte virou gay? Foi a primeira pergunta que foi feita e a mais irrelevante, até porque ser gay está aos poucos virando uma coisa muito comum e muito aceita no país. Há focos de resistência, mas diminuem a cada década. O que não é comum no país é um homem vestir-se de mulher e sair à rua – sem ser no carnaval, no teatro, numa festa à fantasia, num filme ou em qualquer situação onde possa ser invocado o pretexto de que era mera brincadeira ou encenação.

Diz Laerte (revista Continuum, Itaú Cultural, # 39, out/nov): “Os costumes estão se transformando. Está ficando claro para todo mundo que orientação sexual e gênero são coisas distintas. Não há um vínculo único. A idéia de que todo cara que se vestir de mulher é gay não existe. Tenho muitas amigas que são travestis e são heterossexuais. Não gostam nem têm atração por homem. Ver o gay como mulherzinha é um insulto antigo, fora de moda. Às vezes, tentam ser mais masculinos que o próprio homem”. Quando as executivas da Av. Paulista e de Wall Street começaram a usar terninhos, nos anos 1980, viram essa inserção no mundo masculino como uma promoção, mas era uma promoção que mantinha a hierarquia – ser masculino era necessariamente ser superior. Quando um homem se veste de mulher a inquietação é maior, porque assim a falsa superioridade é desmentida.


3016) "Filhos da Esperança" (29.10.2012)




É um dos melhores filme recentes de ficção científica, e tinha me passado completamente despercebido. Talvez porque o título brasileiro é meio piegas (o original é Children of Men). Dirigido por Alfred Cuarón (Y tu mamá también, Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban) e baseado num romance de P. D. James, é uma história de futuro próximo (o ano é 2027) em que por alguma razão que não fica explicada (nem precisa) a fertilidade humana desapareceu, bebês deixaram de nascer, e a humanidade caminha para o envelhecimento. Quebra financeira, empobrecimento de todos os países, atentados terroristas, e grupos clandestinos defendendo hipóteses para-religiosas mirabolantes.

Leitores de FC hão de lembrar que o livro Greybeard de Brian Aldiss (1964), traduzido no Brasil como “Herdeiros da Terra” (Bruguera) e como “Jornada de esperança” (Ed. Abril) tem a mesma premissa, e seu protagonista, o Barba Grisalha, é o ser humano mais jovem num mundo onde todos têm cabelos brancos. O filme de Cuarón se abre mostrando na primeira sequência a morte do ser humano mais jovem dessa época, um garoto de 16 anos. O mundo está em caos mas a Inglaterra, na base da Lei Marcial, consegue manter um arremedo de ordem, principalmente barrando a entrada de milhões de imigrantes ilegais. (Ainda existem milionários – um deles salvou e trouxe para casa o “Davi” de Michelangelo e a “Guernica” de Picasso). O protagonista, Clive Owen, recebe a incumbência de conseguir papéis falsos para uma garota imigrante e escoltá-la até a fronteira.

É uma história violenta, com tiroteios, mortes brutais, muito suspense. E é um filme totalmente diferente dos chamados “filmes de ação” de hoje em dia, os filmes-sobre-carros-explodindo. Cuarón usa para o suspense um recurso clichê, a corrida contra o tempo – os personagens têm dois dias para chegar num ponto tal, clandestinamente, sendo perseguidos por diferentes grupos. Os tiroteios são intensamente reais, porque ao invés do “BUUUUUM!” dos tiros em Dolby-stereo de hoje em dia as armas fazem aquele “pá” meio abafado que corresponde a um tiro de arma de fogo de verdade. Há planos longos de perseguição, dirigidos com primor. O mundo onde tudo isto se passa é lúgubre, tenso, sofrido. É uma mistura de V de Vingança, Blade Runner, 1984, Esperança e Glória (aquele filme de John Boorman sobre a infância em Londres durante a Guerra).

É um dos melhores filmes sobre futuro próximo e sobre crise populacional que vi em todos os tempos. Se todo filme de ficção científica fosse feito com essa simplicidade e realismo, talvez a gente pudesse deixar de usar Star Wars como o ícone do gênero.


3015) Os jeans e a FC (28.10.2012)




Recentemente comentei nesta coluna o romance Zero History de William Gibson (http://bit.ly/KomW6C), talvez o primeiro livro de FC que tem como tema a fabricação de jeans. Gibson, que de certo modo inventou a realidade virtual em Neuromancer (1984) começou em seus últimos livros a explorar a virtualização da realidade física. Ele percebeu que a realidade daqui de fora dos computadores é tão artificial quanto a da Matrix. Ela é o que chamamos de “mídia ambiente” (“media landscape”), um espaço físico completamente artificializado através de linguagens superpostas, entrelaçadas e conflitantes: arquitetura, vestuário, publicidade, decoração, urbanismo, comunicações, etc. Tudo é linguagem. E tudo é produto de uma máquina feita de gente, planejamento, sistemas e maquinismos.

Na selva barroco-pop, as pessoas estão anestesiadas, embrutecidas de tanta poluição semiótica. E Gibson imagina a criação de produtos que estão limpos dessa sujeira linguística, produtos que utilizam uma linguagem não-referencial, produtos tão simples que não se parecem com nada. Em Reconhecimento de Padrões (2003) é A Filmagem (The Footage), fragmentos de um filme anônimo, que brota aos poucos na Internet sem que se saiba quem o dirigiu, onde, quando. Um filme esteticamente perfeito, para os cinéfilos de um culto que o investiga e acompanha (é este o tema do livro). Em Zero History, é a marca de jeans “Gabriel Hounds”, que tem textura perfeita, corte, acabamento. Um jeans que não se parece com nada, e é vendido clandestinamente, sem propaganda, só para os iniciados. Gibson parece procurar produtos que são verdadeiros paradoxos: produtos no mais alto grau de refinamento de uma cultura e ao mesmo tempo esvaziados de cultura, objetos platônicos que só significam a si mesmos, sem nenhum referencial exterior.

Scott Morrison é um fabricante de jeans-sob-medida em Nova York (http://3x1.us) que certa vez distribuiu calças novas para os lavadores de pratos de um restaurante para que estes os usassem durante o trabalho, na cozinha quente, enfumaçada. O uso “quebra” as fibras e amolda os jeans ao corpo (tem gente que entra na banheira com o jeans novo para acelerar esse processo). Morrison procura o que os japoneses chamam “wabi-sabi”, a beleza do que é “imperfeito, impermanente, incompleto”, a beleza que decorre do uso humano, do desgaste humano, das pequenas vacilações humanas na feitura que dão aos objetos uma marca única, incapaz de surgir da máquina. Ao seu modo, Gibson, como Philip K. Dick, procura estabelecer, num mundo de máquinas, quais são os sinais da presença humana, da vida humana, da imprevisível e inimitável ação humana.