quarta-feira, 20 de julho de 2016

4136) A poesia intraduzível (20.7.2016)



Eu estava passeando pelo Templo de Delfos (http://www.elfikurten.com.br/2015/06/bertolt-brecht.html) quando me deparei com uns versos de Bertolt Brecht que eu tinha lido na idade certa. “Aos que virão” ou “Aos que virão depois de nós”, um longo poema sobre os tempos difíceis em que viveu, e que no caso de Brecht não foram poucos.  

Brecht é um grande poeta, tão grande que até seus poemas políticos são belos poemas (danem-se as exceções). Talvez o elogio de uma ideologia política, de uma religião, de uma bandeira social específica sirva de entrave ou de camisa-de-força para muitos poetas. Para outros, não.

É natural. Há talentos tão transbordantes de poesia que a derramam até nos mais inviáveis recipientes. Os poemas políticos de Brecht talvez tenham sido mais políticos do que hoje, na época em que surgiram, mas para nós valem hoje pelo que têm de poético. Há muitos belos poemas políticos dentro da obra de Carlos Drummond, de Pablo Neruda, de Cecilia Meireles, de Vladimir Maiakóvski, de Bob Dylan.

Brecht, para mim, foi acima de tudo um daqueles socialistas sinceros que nunca acertaram o pé pelo tambor autoritário. Caminhavam sempre numa zona de paixão personalíssima por um certo ideal de igualdade, e em tensão constante com qualquer regime vigente. Como Maiakóvski, como Eisenstein, como Tarkóvski. Dizer que não merecem ser lidos ou assistidos porque são esquerdistas é como não ouvir Bach porque era protestante, ou não ler Rimbaud por ter virado traficante de escravos. Qualquer um deles podia querer ser qualquer coisa. A arte, quando tem, transborda.

Um ponto forte da poesia de Brecht é o modo como ele usa pequenos sofismas filosóficos ou pequenas mudanças de ponto de vista que puxam o tapete do leitor. O chamado distanciamento brechtiano é muitas vezes um ângulo novo de uma história muito conhecida. Ele gosta também de parábolas, koans, microhistórias, canções bíblicas, sentenciosas, onde ele superpõe pequenas metáforas do mundo dos seres vivos e dos objetos à nossa volta. Nesse sentido, seu verso tem uma cadência mais bíblica do que a de muitos poetas cristãos. É a voz bíblica do Eclesiastes, dos Provérbios, dos Salmos, do Livro da Sabedoria. É bíblico quando produz parábolas de quatro ou de seis linhas, em estruturas bem nítidas. É bíblico como Leonard Cohen.

E vejam só, eu aqui deitando e rolando, e a verdade é que nunca li Bertolt Brecht, porque meu alemão não resolve nem as manchetes dos jornais. Só li as traduções dos poemas dele. Primeiro em português, português-de-Portugal e espanhol. Depois em francês e inglês, em muitas antologias, coletâneas, etc. Meu semestre de alemão no Instituto Goethe da Bahia me ensinou um básico muito útil, mas eu não sei se reconheceria aqueles versos que tanto reli, se visse uma estrofe como esta:

In die Städte kam ich zur Zeit der Unordnung

Als da Hunger herrschte.

Unter die Menschen kam ich zu der Zeit des Aufruhrs

Und ich empörte mich mit ihnen.

So verging meine Zeit

Die auf Erden mir gegeben war. (...)

No estado atual dos meus estudos, se lesse isso sem qualquer pista do que era, eu saberia que Städte é cidade, Zeit é tempo, Hunger é fome mesmo, e ficaria em dúvida sobre Erden, mas pensaria se era o mesmo que Earth. Com esses elementos, eu poderia até lembrar do poema de Brecht. Mas a prova final estaria na melodia, na cadência sonora das palavras do poema, aquilo que eu chamo o murmúrio, a toada subjacente, a presença sonora daquilo tudo.


A cidade, o tempo, o não sei o quê, a fome. Os homens, o tempo, alguma coisa séria entre eu e eles. Alguma coisa sobre o tempo, sobre a terra, e um não sei quê final. Um conteúdo assim, derramado nessa ordem, acabaria acordando minha memória, que diria, estremunhada: “aquele poema-textão de Brecht sobre anos de chumbo, Aos Vindouros ou coisa parecida”.

Lá em Delfos os versos aparecem em traduções de Paulo César de Souza e de Manuel Bandeira. Depois, remexi nas minhas estantes e localizei a mais antiga que eu lembrava, de Fernando Peixoto.

Primeiro, a tradução de Paulo César de Souza para esse trecho:

À cidade cheguei em tempo de desordem
quando reinava a fome.
Entre os homens cheguei em tempo de tumulto
e me revoltei junto com eles.
Assim passou o tempo
que sobre a terra me foi dado. (...)

(Digressão: No texto acima tomei apenas uma liberdade: iniciei os versos com letras minúsculas, seguindo o fluxo do texto em si. É dessa maneira que prefiro alinhar o que escrevo ou transcrevo. No original, todas as linhas começam com maiúsculas. Os editores-de-texto de hoje oferecem isso como primeira opção, acho. Mas eu prefiro quando o texto é pontuado como se fosse de prosa, sem levar em conta as quebras de linha; ele dá a impressão de um líquido derramado num recipiente e se acomodando bem direitinho.)

Esses versos de Brecht, curiosamente, têm uma cadência de sextilha. Não estou falando das sextilhas de três dísticos do cantador nordestino ou da Bíblia, mas a sextilha melódica do blues. Tal como nesses blues, a terceira e a quarta linha desse trecho são variações simétricas das linhas 1 e 2; e as duas linhas finais têm uma melodia diferente dessa. Não seria nada difícil verter uma estrofe assim para o inglês (ressalvando que as linhas não rimam entre si).

Falei estrofe mas esse trecho é o início da parte II do referido poema. Tal como Drummond ou Bandeira, Brecht incrustava trechinhos rimados e metrificados no meio de um texto cheio de linhas longas e linhas curtas. O verso visto de longe parece totalmente livre, mas ali dentro há muitos trechinhos de métrica repetida, impecáveis.

Na tradução acima, não se pode pedir melhor junção de um verso de doze sílabas seguido por um de seis sílabas. Para mim, como leitor champoliônico, mesmo que essa contagem 12/6 não seja a mesma em alemão, o tradutor manteve a relação verso longo / verso curto. Porque a natureza de certos tipos de poema requer que esses tamanhos se alternem, e às vezes o tradutor, a bem da compreensão, mexe nas frases e a linha que era grande fica pequena ou vice-versa. Isso para mim, como leitor, é mais incômodo do que ver um decassílabo ser traduzido com 9, com 11, com 12. Se tiver o peso do verso original, que diferença faz uma ou duas sílabas?

A tradução de PCdS segue a cadência, o murmúrio poético do original. Isso é mais fácil de seguir, de certo modo, quando o poeta usa quaisquer formas fixas de estrofe, formas recorrentes (dísticos, tercetos, quadras, sextilhas, etc.).

Além da extensão relativa das linhas, outra coisa importante, que pesa ainda mais na tradução da poesia, é tentar dar às palavras o mesmo peso que têm no original – abrindo ou fechando uma frase, p. ex.  Se isso no original corresponde a mais impacto, se dá um sentido adicional ao texto, é bom que se mantenha, embora nem sempre dê. Uma coisa que eu talvez mexesse seria a ordem proposta por PCdS. Em vez de “À cidade cheguei em tempo de desordem” (um dodecassílabo de que meu ouvido divide em segmentos assim: 3-3-2-4), eu seria menos fiel ao original, inverteria os termos e poderia dizer também: “Eu cheguei à cidade em tempos de desordem”, de cadência equivalente.

Eu botaria esse “tempos” assim mesmo, no plural. Me dá a idéia de tempos muito interessantes, diversos, contraditórios, plurais. (E porque o ouvido me lembra que em nordestinense esse uso, quando no singular, tem outra conotação, quando dizemos: “Não me provoque não que eu estou em tempo de explodir”, “Ele está em tempo de enfartar porque não consegue resolver esse problema”, etc.  É um equivalente nosso ao “a ponto de”.)

Na página aparecia outra tradução, olha de quem, Manuel Bandeira. Fui direto ao começo da Parte II do poema. Eis a versão bandeirana da coisa (com texto minusculado onde cabe):

Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra. (...)

A cadência da primeira linha, neste caso, eu leio como 4-2-2-4. A segunda linha, em ambos, está igual, com seis sílabas e acentuação 4-2. (É engano meu ou o verso original alemão só tem cinco, mais uma átona que não conta?) Veja-se que Paulo César de Souza manteve nas linhas 1 e 3, as linhas longas, a mesma cadência 3-3-2-4: “À cidade cheguei em tempo de desordem”, “Entre os homens cheguei em tempo de tumulto”. Para mim basta esta repetição de cadência para tornar o verso sonoramente verossímil, mesmo (repito) que a contagem das sílabas em português seja diferente do que tem no alemão.

As duas linhas finais deste trecho precisam ser bem escolhidas, porque elas se repetirão pelo menos duas vezes nessa mesma estrofe. Quando Brecht diz “Assim passou o tempo / que me foi concedido na terra”, ele eleva o tom, mesmo usando palavras simples. Eleva porque em vez de descrever situações concretas, datadas, ele está falando meio filosoficamente, é quase um acerto de contas com a vida. Tem que ter o tom bíblico, mais eclesiástico do que escolástico, mais sentencioso do que retórico. ‘Cause the times, they are a-changing.

Os versos de PCdS são um de seis sílabas (cadência 2-4) e um de oito (4-4). Manuel Bandeira diz: “Assim passou o tempo / que me foi concedido na terra”. O primeiro verso é igual ao de PCdS, mas o segundo tem nove sílabas, com cadência 3-3-3, mais uma átona, “...ra”, que não conta. (Mais uma vez: posso estar pronunciando errado, mas em princípio o verso original alemão também tem nove, com cadência 3-2-4.)

Comparando as duas versões, percebi que nenhuma das duas era a que me vinha mais espontaneamente à memória. Essa era uma terceira: a da minha primeira e mais constante leitura, visto que tenho o livro comigo até hoje: Brecht – Vida e Obra (Rio, José Álvaro Editor / Paz e Terra, 1974, 2ª. edição),  de Fernando Peixoto, e o poema (provavelmente traduzido pelo próprio), aparece como Aos que virão depois de nós, no final, nas páginas 347-348.

Eis a tradução de Fernando Peixoto (minusculada ao meu modo):

Eu vim para a cidade no tempo da desordem,
quando a fome reinava.
Eu vim para o  convívio dos homens no tempo da revolta
e me revoltei ao lado deles.
Assim se passou o tempo
que me foi dado viver sobre a terra.

Eu vejo algo de teatral nesse “Eu” que encabeça triunfante os dois dísticos iniciais. Muito mais forte, muito mais energético, do que “À cidade cheguei...”...  “Para as cidades vim...”. Para quem imprime o texto na página pode parecer prescindível, mas não imagino um ator, mesmo um ator brechtiano, que abrisse mão de iniciar uma frase de impacto com um monossílabo tão augusto. A página pode ser sutil, mas a presença física da voz do ator precisa se impor com as armas que tem. A palavra “eu”, em alto e bom som, é uma delas. Não deve ser malbaratada, mas precisa estar sempre a postos.

A tradução de FP me parece (talvez pelo vêzo de saber que ele é diretor de teatro) a menos preocupada com exatidão métrica e mais atenta para a emissão física pela voz de alguém. (Praticamente todo poema de Brecht era assim, mesmo os que não eram poema-de-peça, os que eram poemas-para-publicar.)  Seus primeiro e terceiro versos têm treze e dezesseis sílabas respectivamente, mas só percebemos isto quando os checamos de encontro ao original ou às outras traduções. Em si e por si, são versos longos que podem ser escandidos com vigor sem se diluir no meio do caminho: “Eu vim / para o convívio dos homens / no tempo da revolta”.

Comparando versões assim sempre podemos achar que uma tradução é mais fiel à linguagem, outra é mais bonita, outra mais próxima ao conteúdo, outra reproduz melhor as cadências semiaudíveis. E tudo isto vai produzindo em nossa imaginação uma espécie de ilusão, de fantasia: a fantasia de que lemos as frases escritas por Brecht num idioma que desconhecemos.


(Para mim, e acho que para a maioria dos leitores, isso forçosamente relativiza nossa apreciação dos poemas japoneses de Bashô, dos poemas médio-ingleses de Chaucer, dos poemas russos de Pushkin, dos poemas persas de Omar Khayam, e assim por diante.)