Certas coisas da mente humana me deixam de queixo caído. Pessoas que dirigem carro conversando, por exemplo. Lá vai o sujeito, pisando no acelerador e projetando para a frente aquelas toneladas de metal, tomando decisões cruciais de cinco em cinco segundos, escapando a cada instante de espatifar aquele troço de encontro a outro que vem no sentido contrário, fazendo manobras, cortando um pela esquerda, outro pela direita, lendo as placas, antevendo as mudanças de sinais... e tudo isto enquanto conversa comigo, tranquilão, descrevendo um gol do domingo passado, ou criticando a reforma tributária do governo Lula. Como é que eles conseguem?
No livro Brida, Paulo Coelho explica certos estados alterados de consciência cultivados no ocultismo, e os compara com as pessoas que fazem algo enquanto falam ao telefone. Semana passada tive uma prova disto. Fui a um escritório buscar um documento. Fui atendido por uma senhora que estava ao celular, dando instruções à filha sobre os preparativos para uma festa. Explicava a quantidade de comida, quantidade de bebida, onde alugar mesinhas, onde colocá-las, quem convidar, quem não convidar... Tudo isto enquanto acessava um arquivo no computador, verificava meus dados, ia ao arquivo no canto da sala, trazia uma pasta, somava valores na ponta do lápis, transportava isso para o computador, imprimia uma cópia, verificava um defeito, corrigia, imprimia outra cópia e me entregava, com um sorriso e um aceno, sem deixar de falar um só instante. Paulo Coelho tem razão. É magia pura.
Sem falar nos adolescentes de hoje, como vi dias atrás num boteco: o garoto comia um cheeseburger e olhava um jogo de basquete na TV, com o walkman ligado. Tocou o celular, ele afastou o fone do ouvido esquerdo, encostou o celular, e ficou ali: comendo, vendo TV, ouvindo música e conversando. Comentei isto com um amigo meu, que é analista de sistemas e escritor de ficção científica, e ele disse, com naturalidade: “Mas é muito simples! São sub-rotinas sendo processadas em paralelo.” Ora, por que não me disseram antes?
Na verdade, este espanto todo que estou fazendo é fingido. Não apenas vejo isso com a maior naturalidade, como sou também um emérito praticante. Só sei tomar café da manhã lendo jornal. Geralmente almoço diante do computador, escutando o noticiário da TV no quarto vizinho. Tenho o hábito (que provoca acessos de riso nos meus filhos) de ver futebol na TV dedilhando o violão, para desenferrujar os dedos. Fazer uma coisa só é um desperdício de tempo. Nossa mente não é um computador, é vários computadores interligados, e a maioria fica ociosa, passando aqueles peixinhos coloridos no aquário, quando poderia estar sendo usada para algo útil ou agradável. Deveríamos desenvolver técnicas para processar sub-rotinas em paralelo. É um dom divino, ou um recurso da biologia, não importa. Temos a obrigação moral de aproveitá-lo. Já que só temos uma vida, o jeito é viver muitas dentro dela.
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