quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

4898) Nove detalhes sobre Pelé (29.12.2022)



1
Eu nunca vi Pelé pessoalmente, nem mesmo no gramado. Me arrependo de não ter dado uma fugida da farra, do trabalho ou do passeio para ir ao estádio numa das vezes em que ele jogou pelo Nordeste, ou visitou o Maior São João do Mundo. Nunca vi Pelé. Vi (no estádio) alguns de seus companheiros de geração jogarem: Garrincha, Djalma Santos, Rivelino... Pelé, nunca.

Muitos anos atrás li um artigo, de algum cineasta talvez, explicando que na nossa memória formam-se dois aposentos contíguos de lembranças: a) o das experiências vividas diretamente, em primeira mão, em carne e osso, presencialmente; e b) o das experiências a que temos acesso de forma indireta, por imagens, fotos, filmes, gravações, textos, relatos de outras pessoas... 
 
É interessante tentar avaliar qual desses aposentos é maior, qual deles está mais entulhado de referências. A verdade é que nossa “memória de carne e osso” funciona a todo vapor, 24 horas por dia, registrando coisas, mas apenas nos ambientes aonde nosso corpo nos conduz. E a “memória de imagem, ou de palavras” nos dá acesso ao planeta inteiro, ao mundo virtual ou ficcional inteiro, aos milênios de História, às galáxias. É uma memória construída, ficcionalizada, maior (talvez) do que a outra.
 
Philip K. Dick, nas suas impagáveis divagações, dizia que muitas partes do mundo na verdade não existem – são construídas às pressas quando vamos fisicamente para lá. Como no Show de Truman, ou como num videogame, em que a paisagem se recompõe (ou se cria) magicamente no horizonte, enquanto avançamos.
 
Eu e Pelé jamais existimos no mesmo universo físico, jamais estivemos no mesmo lugar ao mesmo tempo. 
 
2
Falei acima que Pelé já jogou na Paraíba. Meus amigos de outros Estados talvez não saibam que um dos orgulhos ficcionais dos paraibanos é o fato de que Pelé marcou seu gol número 1.000 em João Pessoa, num amistoso noturno com o Botafogo-PB, cobrando um pênalti. O famoso gol marcado no Maracanã, contra o Vasco, é a “versão chapa-branca” do fato, a lenda que se publica quando a realidade é menos cativante. Para a imprensa brasileira, era muito mais cativante que esse gol fosse feito no Maior Estádio do Mundo, diante do Vasco (time de coração do Rei), num goleiro argentino que fez o possível para alcançar aquela bola.... A lenda, sem dúvida, dá mais Ibope. 
 
No jogo com o Botafogo, a imprensa afirmava que Pelé tinha naquele momento 998 gols. Toda vez que Pelé dava um passe em profundidade para um atacante do Santos os jogadores do “Belo” se afastavam da bola, na esperança de que ela fosse direto para o gol. Nunca ia. Cometeram um pênalti, em desespero de causa. Longas confabulações. Pelé bateu, fez o gol, e foi substituído. Era (de acordo com a imprensa) o gol 999. No domingo seguinte, jogou contra o Bahia na Fonte Nova, e um zagueiro do tricolor salvou uma bola em cima da linha. No meio da outra semana, veio o gol no Maracanã.
 
Refizeram as contas depois, havia um gol antigo que não tinha sido computado... Mas quem vai reescrever a História só para dar uma glória dúbia ao Botafogo de João Pessoa? Eu, pelo menos, acho desnecessário.
 
3
Um episódio sem nada a ver com futebol é o encontro improvável entre Pelé e John Lennon. Os dois estavam morando em Nova York nessa época – Pelé recém-contratado pelo Cosmos, e Lennon em sua politizadíssima fase pós-Some Time in New York City. Encontraram-se casualmente nos corredores de uma escola de idiomas. Pelé estava aprendendo inglês. Lennon estava fazendo aulas de japonês, algo que certamente teve vontade desde que começou a viver com Yoko Ono. 
 
Consta que os dois se cumprimentaram cordialmente, aquele papo de “sou muito fã seu”, normal entre gente que vive sob os holofotes da fama (e gente que percebe, no outro, a genialidade que os fãs do outro às vezes nem entendem direito). E Lennon confidenciou que, quando a Copa do Mundo de 1966 foi realizada na Inglaterra, os Beatles, então se preparando para lançar Revolver, tiveram a idéia de fazer uma visita à Seleção Brasileira, então bicampeã mundial – mas a burocracia da CBD os desaconselhou. 
 
E eu fico imaginando um universo paralelo onde exista uma daquelas fotos com dois grupos misturados, intercalados: os Beatles e a seleção com Pelé, Garrincha, Gilmar, Bellini, Gérson...
 
Uma pequena digressão: é interessante que nenhum dos quatro Beatles, todos eles liverpudlianos, tenha sido um torcedor fervoroso de futebol. O único futebolista na capa do Sgt. Pepper’s é Albert Stubbins (1919-2002) – do Liverpool, claro. Ao que se diz, alguém sugeriu colocar um jogador de futebol, e Lennon o escolheu porque quando garoto achava o nome dele engraçado. Stubbins é, na famosa capa do disco, o sujeito de rosto rubicundo logo abaixo de Karl Marx e um pouco acima de Marlene Dietrich. 
 
4
Outro encontro improvável de Pelé, que sempre me fez divagar, foi o que ocorreu em Araraquara, numa tarde de domingo de 1960. Numa praça central da cidade, cruzaram-se dois grupos que se entreolharam à distância. Um deles acompanhava Pelé e o time do Santos, que se encaminhava para um jogo com a famosa Ferroviária de Araraquara. O outro acompanhava os escritores Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, que se dirigiam, por sua vez, para uma palestra na Faculdade de Filosofia local. 
 
Já escrevi com maiores detalhes a respeito desse encontro inusitado:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2008/03/0045-um-encontro-em-araraquara-1452003.html
 
 
5
A violência no futebol é como a violência em qualquer esporte de contato, de disputas corporais acirradas. Varia de acordo com o estilo dos jogadores e dos técnicos, com o ambiente, com o peso das ambições transformando um simples jogo numa batalha de vida ou morte. Há grandes jogos em que a violência campeia de parte a parte, e grandes jogos em que se vê futebol-arte do começo ao fim, sem nenhuma falta mais ríspida. Tudo isto faz parte da vida. 
 
Tenho duas imagens de Pelé que se não são “um exemplo para as gerações futuras” ilustram bem o lado “testosterona pura” do futebol. 
 
A primeira é a caçada que Pelé sofreu no histórico jogo Brasil 1x3 Portugal, que tirou o Brasil da Copa de 1966 ainda na fase de grupos. Portugal mereceu a vitória, porque a Seleção daquele tempo era aquilo que os coleguinhas da crônica esportiva gostam de chamar “um amontoado de jogadores”. Mas o que Pelé apanhou não está no gibi, e em grande parte não são as faltas comuns, na disputa brusca pela bola, na imposição de uma força sobre outra força. São faltas planejadas, onde o jogador pensa “vou pegar no joelho”, e o faz. Naquele tempo o futebol não permitia substituições. Pelé ficou mancando em campo, só para fazer figuração, até o fim.
 
Na Copa seguinte, em 1970, há outro episódio (que tal como o outro pode ser encontrado no YouTube) no jogo Brasil 3x1 Uruguai. Pelé sofre uma falta, rola no chão. Enquanto está caído, um uruguaio passa por ele, assim como quem não quer nada, e pisa no seu joelho. Pelé marca o cara, e logo depois, quando os dois perseguem uma bola longa lá na ponta esquerda, espera que ele se aproxime, e mete o cotovelo na sua testa, com toda força, antes de rolarem os dois pelo chão. O juiz não viu nada. Deu falta a favor do Brasil. 
 
Isso é feio? Sim, a vida é feia. Todos nós sonhamos com a possibilidade de um mundo futuro onde não existam a violência, os terremotos e as baratas. Viver não é apenas perigoso, viver é cruel.
 
6
O melhor livro sobre Pelé (não que eu tenha lido muitos) talvez seja Viagem ao Redor de Pelé, de Mário Filho, que li adolescente. Foi numa época em que meu pai comprava todos os livros sobre futebol que apareciam na Livraria Pedrosa. Mário Filho escrevia brilhantemente a última página, enorme, da Manchete Esportiva. Eu lia e relia todas.  Juntamente com seu irmão Nelson Rodrigues e com João Saldanha, ele encarna a simplicidade e a riqueza imagística de quem sabe escrever sobre o futebol brasileiro. Destes três, para mim, derivaram todos os que contam histórias futebolísticas e interpretam o mundo fantasioso do futebol, cada qual com sua paleta própria, e a todos li com prazer: Sandro Moreira, Armando Nogueira, Eduardo Galeano, Fernando Calazans, Juca Kfouri, etc. 
 
7
Tem um provérbio segundo o qual “Dinheiro pouco é problema muito, e dinheiro muito é problema muito também”. Pelé ganhou rios de dinheiro, tal como os Beatles. E, tal como os Beatles, poderia ter ganho o dobro ou o triplo se desde o começo a sua fortuna crescente fosse administrada por alguém que tivesse essa rara combinação de qualidades: honestidade, lealdade pessoal e competência.
 
Tem um personagem, hoje obscuro, na história de Pelé, que era conhecido como “Pepe Gordo”. Foi empresário ou contabilista das empresas de Pelé durante anos, e deixou um rombo gigantesco. A imprensa da época dizia que Pelé tinha abandonado o futebol mas teve que voltar, e assinar com o Cosmos, para tapar o buraco deixado por Pepe Gordo.
 
Virou uma expressão de gíria entre alguns amigos meus. Às vezes algum conhecido nosso ficava rico, arranjava um empresário, e alguém comentava: “Ih... o cara tem um jeitão de Pepe Gordo...”  Alguns anos atrás, o bardo Leonard Cohen, com 70 anos de idade, tinha deixado a administração de seus negócios na mão de uma empresária de confiança, Kelley Lynch, a qual raspou o fundo do tacho e sumiu com a grana. E quando eu li a notícia pensei: “Pepe Gordo ataca novamente”. 
 
8
Muita gente criticava Pelé pelo seu hábito de se referir a si próprio na terceira pessoa: “Ah, o Pelé acha isso, o Pelé acha aquilo...”  Para muita gente, é sinal de vaidade, de auto-engrandecimento. Muita gente famosa adquire esse cacoete, que desperta antipatia nas pessoas. 
 
Eu acho meio chato também, mas entendo que isto nasce da consciência de que o personagem admirado pelas multidões é uma coisa, e o “eu”, “a minha pessoa”, é uma coisa diferente. É sempre assim. Pelé fazia com frequência a distinção entre “o Pelé” e “o Edson”. Ele sabia que o público precisa do personagem para fantasiar seus próprios desejos, suas expectativas, seus sonhos, seus medos, seus preconceitos a-favor ou contra... E sabia que a pessoa é sempre um mero portador do personagem. 

9
Uma das expressões mais vívidas sobre a época de ouro do Santos foi uma declaração do próprio Pelé. O Santos, nos anos 1960, era um assombro futebolístico comparável ao que foram em épocas recentes o Barcelona (na era entre Romário e Messi), ou o Real Madrid “galáctico”. Clubes pelos quais a gente não torcia, mas fazia questão de acompanhar os jogos porque sabia que coisas memoráveis iam acontecer naquela tarde, naquela noite. 
 
Era o Santos que tinha a famosa linha atacante com Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe.  Não somente esses. Havia o atacante Pagão, que era o preferido de Chico Buarque. Havia Toninho, um artilheiro nato, matador, no estilo de Pedro (Flamengo) ou Germán Cano (Fluminense). O Santos era um assombro.
 
O jornalista perguntou a Pelé, já idoso, quais as coisas de que ele sentia saudade da época do futebol. E Pelé respondeu: “Eu tenho saudade da sensação que a gente tinha no início de todos os jogos, quando as equipes tomavam posição, a gente botava a bola no centro, se preparava para dar a saída, e então eu levantava a cabeça e olhava o time adversário. E via o medo nos olhos deles. O medo que eles tinham do Santos.” 
 
 
 
 
 
 






terça-feira, 27 de dezembro de 2022

4897) Leituras 2022 -- 4 (27.12.2022)


Não costumo fazer listas de “dez melhores”, mas sempre gosto de dar um balanço, no fim do ano, de alguns livros que li e que por variadas razões não comentei aqui no blog. Quisera eu ser daqueles sujeitos organizados que “ficham” cada livro que leem, redigindo pelo menos meia página de observações. Não é o meu caso. Estas anotações, porém, podem servir como dicas de leitura, ou para que o leitor compare com suas próprias impressões.
 

ENSAIO LITERÁRIO
“Riso e Melancolia” (Cia. Das Letras, 2007), de Sérgio Rouanet
Li este livro em paralelo com a leitura de Jacques, o Fatalista, de Denis Diderot. O livro de Rouanet é uma teorização (e uma detalhação aplicadamente acadêmica) de um tipo de romance que, para meu gosto, anda meio esquecido. Estamos numa época de thrillers, de narrativas super-amarradas com “começo-meio-fim”, de histórias com um frenético realismo epidérmico; romances de onde o autor parece estar ausente, a não ser como enunciador-sem-face daqueles episódios.
 
Rouanet teoriza o que ele chama do “narrador shandiano”, tomando como modelo o Tristram Shandy de Laurence Sterne, e usando como exemplos obras de Diderot (Jacques...), Xavier de Maistre (Viagem ao Redor do Meu Quarto), Almeida Garrett (Viagens na Minha Terra) e Machado de Assis (Brás Cubas).
 
A tese principal de Rouanet é que nestes livros o narrador (seja onisciente, seja um dos personagens) é o condutor principal do fio narrativo, desobedecendo às leis do tempo e espaço, produzindo digressões intermináveis, confundindo a cronologia interna, dirigindo-se ao leitor de forma desabusada e constante, comentando sem parar a excentricidade e o comportamento patético das pessoas, quebrando a “quarta parede” o tempo inteiro, abrindo mão da “ilusão ficcional” que a literatura realista buscou tão ansiosamente.
Aqui, meus próprios comentários anteriores sobre o livro de Diderot:
 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2022/10/4871-jacques-o-fatalista-um-romance.html
 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/06/4587-uma-literatura-ao-res-do-chao.html
 
 

CLÁSSICOS
“Seven Gothic Tales” (1934), de Isak Dinesen
A baronesa Karen Blixen, que usava esse pseudônimo, era dinamarquesa e escrevia num inglês opulento, impecável. Seus contos são quase sempre ambientados num século 19 de salões, castelos, mansões, famílias aristocráticas. Estes contos não são propriamente góticos, a não ser num sentido muito amplo, de uma realidade transfigurada onde a aparência oprime a essência, a forma determina o conteúdo. Dois são fantásticos: “The Monkey” é uma história de transformação sobrenatural, “The Supper at Elsinore” um conto de fantasma), mas o tema subjacente de todos é a dualidade real/fantasia, história acontecida versus história contada (ou imaginada), a implacabilidade dos acasos e dos destinos.
 
Uma coisa fascinante no estilo de Isak Dinesen é que cada personagem seu é capaz de, no meio de uma ação movimentada ou de uma situação de suspense, começar a contar a própria história – e com isto adiar por cinco ou dez páginas a continuação da história principal. Algo que qualquer redator de “Como Contar Uma História” desaconselharia vivamente – “porque iria quebrar o ritmo, desviar a atenão, etc. etc.”. Cada conto de Dinesen acaba se transformando, graças a esse recurso bem século 19, numa antologia de pequenos contos, porque cada um daqueles personagens aparentemente insignificantes tem sua vida, sua história, suas aventuras, seus episódios sombrios ou eufóricos... Como em certos videogames onde basta ao protagonista deter seu cavalo no meio de uma estrada e interpelar um camponês que trabalha obscuramente na plantação para ficar sabendo de uma história não apenas extraordinária e chocante, mas de importância crucial para a aventura do próprio cavaleiro – que talvez pudesse ter passado direto, a toda brida, sem sequer perceber que o camponês estava ali.  Os contos de Isak Dinesen são um tributo permanente à Estória, como grafava Guimarães Rosa.
 

AUTOR NACIONAL
“O rastro da lesma no fio da navalha” (Patuá, 2022), de Adérito Schneider
Contos de prosa rápida, precisa, numa sucessão de cenas cruéis ou estranhas. Há um leit-motif que retorna em várias histórias, uma menina morta que é repetidamente sepultada ou afastada, mas sempre retorna para assombrar o bairro. Há histórias de violência brutal e gratuita (“Road Movie”, “O Assalto”), o homem que vira executor de jacarés meio por acaso (“Do fundo daquele lamaçal, eu tirei um jacaré e o matei”), a impressora que parece mal-assombrada (“Magenta”). Alguns contos são em forma de argumento ou roteiro de filme, mas no geral todos compartilham a mesma urgência, a mesma rapidez na tentativa de registro de uma realidade que dá voltas sobre si mesma o tempo todo.
 



INSÓLITO
“Cold hand in mine” (1975), de Robert Aickman
Robert Aickman, um autor pouco traduzido no Brasil, ao que eu saiba, é um desses ficcionistas inquietantes empurrados à força para dentro da gaveta do gênero “Horror”, mas não é horror o que seus contos produzem. É estranheza, descolamento, desorientação.  Para a obra de pessoas como ele prefiro usar o termo “o Insólito”. Em vez de produzirem a descarga catártica, previsível, diante de horrores monstruosos ou de mutilações brutais, seus contos narram uma sucessão de situações espantosas, inquietantes, mas organizadas numa estrutura de aparente non sequitur, que deixa as descargas emotivas todas presas dentro de nós. Não sabemos como descarregá-las, porque a cada episódio a história vira uma esquina numa direção inesperada e sem respostas visíveis. O leitor não se sente sepultado vivo; ele se sente (para usar uma expressão atual) “sem chão”.
 
Ler Lovecraft é algo “cozy”, reconfortante, aconchegante. Já sabemos o que vamos encontrar ali. É como assistir os velhos filmes de terror da Hammer Films, estrelados por Christopher Lee ou Peter Cushing.  Ler Aickman é como ver um filme de David Lynch.
 



EXPERIMENTAL
“A Visit from the Goon Squad” (2010), de Jennifer Egan
Egan é autora do excelente O Torreão (“The Keep”). Li no original, mas este livro saiu no Brasil com o título A Visita Cruel do Tempo (Intrínseca, trad. Fernanda Abreu). É aquele difícil e fascinante gênero de “romance de contos” – uma série de histórias mais ou menos independentes, interligadas por alguns arcos narrativos, ou pela simples presença de personagens de outras histórias. Os enredos envolvem bandas de rock, mercado fonográfico, gente rica e neurótica querendo ocupar o tempo livre, histórias de amor bem ou mal sucedidas... Ela entra e sai com facilidade da “voz interior” dos protagonistas de cada conto, e tem um prazer especial em criar situações bizarras, improváveis, cuja existência depende apenas do fato de que as pessoas vivem fora da realidade, são “habitantes da bolha” e por isso praticam atos patéticos, cruéis, engraçados, irremediáveis.
 
 

CLÁSSICOS
“The Street of Crocodiles” (1934, trad. Celina Wieniewska), de Bruno Schulz
Schulz é apontado por muita gente como “o Kafka polonês”. Este livro é também uma série de contos interligados, numa atmosfera soturna típica da Europa Oriental. Não é apenas Kafka, é aquele tipo de alucinação fluente do Expressionismo Alemão, um mundo taciturno sobre o qual se abatem pesadelos sem motivo. Bruno Schulz (1892-1942) era escritor e artista plástico, foi morto pelos nazistas. Este livro tem edição brasileira com o título de Lojas de Canela e Outras Narrativas (Ed. 34, 2019). O termo “realismo mágico” acabou sendo contaminado, via América Latina, de calor, de frutas, rios, batalhas ensolaradas, morenas fatais; mas pode-se argumentar a existência de um “realismo mágico” do Leste europeu, feito de neve, sótãos, matadouros, vultos encapotados, capelas góticas, becos tortuosos que mudam de lugar e abrem espaço para uma cidade de pessoas sem rosto.
 



POESIA
“O Truque da Carta e mais 11 Cordéis” (Rio, Ed. do Autor, 2022), de Mário Bag
O termo cordel é usado hoje em dia de forma às vezes excessivamente liberal, sem discriminação, para qualificar qualquer formato de poesia feita em verso de redondilha e com dicção coloquial. É um pouco como hai-kai, que está sendo usado para indicar qualquer poeminha curto entre uma e dez linhas mais ou menos.
 
Mario Bag (“disclaimer”: ele é ilustrador de dois livros meus) está migrando aos poucos da ilustração para o cordel – desta vez o cordel tradicional, canônico, escrito em sextilhas de versos setissílabos. Conforme o figurino. Depois de Mitos e Lendas do Folclore (2013), ele lança esta coletânea de poemas curtos (que dariam folhetos de 4 ou 8 páginas), “versando” histórias populares da Rússia, Lituânia, Groenlândia etc., além de enredos tirados da música popular (“Shame and Scandal in the Family”) ou dos clássicos de terror (“A Pata do Macaco”). E quando o leitor compra os versos do poeta leva de brinde as ilustrações do artista.
 



CLÁSSICOS
“Kwaidan” (1904), de Lafcadio Hearn
Eu sou um leitor antiquíssimo de histórias de fantasmas, histórias de assombração, ghost stories derivadas principalmente do modelo britânico e do modelo alemão. O problema com esse gênero é que histórias de fantasmas versam quase todas sobre pessoas que morreram e cujo espírito reaparece no mundo material (para assustar alguém, vingar-se, pedir perdão, etc.). Depois que se lê alguns milhares de histórias assim, como é o meu caso, fica tudo parecido, meio previsível. Já as histórias de terror japonesas, de que Lafcadio Hearn foi um colecionador dedicado (ele passou os últimos 15 anos de sua vida no Japão, constituiu família japonesa, e por lá morreu) mantêm o lugar comum da “reaparição dos mortos”, mas dão nisso uma bela injeção de outros elementos, seja da cultura e religião locais, seja da psicologia (japoneses reagem de modo diferente dos europeus). Kwaidan (que foi adaptado ao cinema em 1964 por Masaki Kobayashi) é uma das várias coletâneas de Hearn com histórias que, além de assombrar, surpreendem.


POESIA

“O Sono dos Humildes” (Patuá, 2021), de Alexei Bueno

Alexei Bueno é um dos defensores quixotescos da forma-fixa na poesia (tal como eu), e poucos a exploram tão bem quanto ele. Na poesia atual, um oceano de versos que não enxergam a si próprios, a forma fixa traz uma utopia de rigor e flexibilidade, porque ela estabelece uma medida, e cabe à voz do poeta forçar essa regra da métrica e da rima de todas as formas possíveis. Alexei usa formas variadas para refletir sobre a vida, a morte, a materialidade do instante, como em “Às Cegas”:

 

(...) Há um ser sem tempo que não concebemos.

 Que nos faz recolhendo-se ao seu ser.

Dentro do fora dele nos movemos

Sem nunca o conhecer.

Nosso acidente nada alterará.

Mas por que existe? O sempre nasce da hora

Em que o instante se apaga, o que aqui há,

E este sol negro, o agora.

 

 

-oOo-

 

Veja outros comentários das leituras do ano:



 









sábado, 24 de dezembro de 2022

4896) Natal 2022 (24.12.2022)



(ilustração: Unhandeijara Lisboa)

 
...e o mundo se remunda em redemunho,
turbilhão de manchetes impossíveis!
São outros patamares. Outros níveis.
Outras notícias – as mais esperadas,
as mais temidas, as encomendadas,
e a História se rasga e se remenda
na política vã desta fazenda
onde mandam o sobrenome, o dote,
o libambo, a manilha e o chicote –
que podem mais que a pena e a espada.
 
Abro os olhos: a Terra Devastada
nas pupilas, nas telas, monitores...
No rádio se revezam locutores
como enxerto-robô na carne morna. 
É o tropel dos centauros, que retorna,
carpideiras uivantes nas colinas,
fervilhar das arraias assassinas
tilintar de ferrões do povo-inseto...
e a TV que me diz pra “deixar quieto”,
pois o mundo resolve-se a si mesmo.
 
Fico eu aqui, eu caramujo, eu lêsmo,
eu búzio na ilusão que vou ser lido,
me apegando ao meu sétimo sentido
para entender o caos que desabrocha.
Tinha razão o doido Glauber Rocha.
Na fazenda quem manda é o capataz:
os herdeiros consomem mais e mais
dos poços, das jazidas, dos filões,
e a cada dia partem mil vagões
no rumo dos castelos de ultramar. 
 
Então... Querem saber? Vou levantar,
vou fazer um café, vou à janela,
vou dar bom-dia ao mundo que me vela,
que me cuida e pergunta se estou bem.
É matemático: outro ano vem,
mesmo eu não vendo, mesmo eu não estando,
os algarismos se reiterando
trazendo a sensação de algo novo;
e até comove a gente ver o povo
dizer: “É outro ano!...  Agora vai!...”.
 
Minha esperança? Não enche um hai-kai.
Meu otimismo é um dedal e meio.
O apocalipse nuclear não veio
mas, quem sabe, seria boa idéia.
Ah!  Que deus perdoou esta Pompéia
que mais que a outra merecia a lava?!
E o mundo a bomba acende, a tumba cava,
sob um pretexto unânime – o progresso,
o lucro, o dividendo e o sucesso,
e a forca, o fogo, o ferro aos dissidentes.
 
Café tomado – e eu escovo os dentes,
enxáguo a boca do mingau-das-almas.
Minha mãe, minha tia batem palmas,
“muito bem!  um rapaz!  gostei de ver!”
E quem outro é capaz de conceber
em jejum, dez cenários fim-do-mundo?
Quem é capaz, no ano moribundo,
de exumar as guarânias natalinas,
vinhos, passas, maçãs, bebidas finas,
presentes... e pavês presenciais?
 
São os problemas de quem vive em paz!
Outros vivem na guerra. Estou sabendo.
Mísseis caindo, e o bebê nascendo
ao mesmo tempo, a meio quarteirão.
E eu cá tremendo a sós, feito um poltrão...
É só a vida, com ou sem Natal!
Abraça alguém!  Abraço é tão legal,
escreve, lê, escuta, vive, canta...
Quando o sol desce a noite se levanta;
quero comer uma canjica em junho...
 
 







quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

4895) Leituras 2022 -- 3 (21.12.2022)



Não costumo fazer listas de “dez melhores”, mas sempre gosto de dar um balanço, no fim do ano, de alguns livros que li e que por variadas razões não comentei aqui no blog. Quisera eu ser daqueles sujeitos organizados que “ficham” cada livro que leem, redigindo pelo menos meia página de observações. Não é o meu caso. Estas anotações, porém, podem servir como dicas de leitura, ou para que o leitor compare com suas próprias impressões.

 

CLÁSSICOS
“Wise Blood” (1952), de Flannery O’Connor
Flannery O’Connor é uma contista de estilo e cenas tão imprevisíveis quanto Clarice Lispector. Suas histórias curtas sobre aquele mundo de pernas para o ar que é o Sul dos Estados Unidos estão em todas as antologias. Procurei este romance depois de ver e rever a excelente (e fiel) adaptação de John Huston, com Brad Dourif no papel de Hazel Motes, o rapaz que volta da guerra transtornado. Ele se perde da família, fica vagando sem rumo certo, se apaixona pela filha de um pastor charlatão que finge ser cego, e embarca num delírio psico-religioso que o leva a algumas catástrofes pessoais. No meio de tudo isto ainda cabem o roubo da múmia de um anão, um automóvel jogado num lago, um homem que queima os próprios olhos, uma fila de garotos para apertar a mão de um gorila, e por aí vai. 
 
A literatura de Flannery O’Connor me parece existir num terreno fora dos EUA (sem com isto deixar de ser intensamente norte-americana), mas uma terra-de-ninguém onde se situam também vários romances do “realismo mágico” latino-americano, vários romances nordestinos com um pé no insólito e no bizarro... Em suma, histórias que constroem delírios em torno da visão mágica do universo, a qual não é muito distante da visão religiosa, principalmente a visão dos fanáticos religiosos ou dos “messias artesanais” – os profetas por conta própria, como é o caso de Hazel Motes.
 
Dentro da literatura norte-americana este livro pode evocar algo daquelas histórias de dark fantasy como em Ray Bradbury (Something Wicked This Way Comes), Jonathan Carroll, Charles G. Finney (The Circus of Dr. Lao). Mas a visão de Flannery não tem aquelas interfaces confortáveis com a fantasia-de-gênero. Parece uma obra brotada de uma enorme solidão, onde a autora vê o mundo, vê Deus, não duvida da existência de nenhum dos dois, mas duvida que qualquer um deles tenha razão de existir.
 



AUTOR NACIONAL
“Onde as verdades nascem” (Patuá, 2022) de Julio César Bernardes
Primeiro livro de contos do autor paulista. Histórias que roçam pelo fantástico e pelo insólito, numa prosa trabalhada. São ambientadas geralmente em cidades do interior onde acontecem fatos bizarros. As histórias são contadas num tom vagaroso e impassível, deixando os elementos insólitos aparecerem como parte integrante daquele ambiente que se desvenda; em geral não há surpresa a não ser a dos personagens envolvidos. Esse tom se mantém mesmo quando a narrativa é na primeira pessoa e por mais estranhos que sejam os fatos relatados: cabeças cortadas que começam a aparecer nas ruas de um bairro, um menino sonha uma vida completa com outra família num país desconhecido, um vagabundo de rua parece deter o segredo de um acidente que se abaterá sobre a cidade, a cidadezinha de litoral que não sabe o que fazer com a carcaça de uma baleia gigantesca onde um homem sem-teto resolve fazer morada. 
 
 

EXPERIMENTAL
“The Conversions” (1962), de Harry Matthews
É um típico romance do pessoal da OuLiPo, a Oficina de Literatura Potencial formada por um grupo parisiense. Aqui, um milionário deixa uma fortuna em testamento para quem for capaz de responder algumas perguntas absurdas e misteriosas, e o narrador mergulha numa série de eventos bizarros, encontrando gente estranha que se comporta de modo inexplicável. Tudo está contido numa série de “chaves” verbais, como o enunciado de uma charada, que em si mesmo não faz sentido, mas é narrado ao pé da letra, como se fizesse. Não é para todos os gostos. Eu gosto. 




MEMÓRIA
“Tarcísio Pereira: Todos os Livros do Mundo” (Recife, CEPE, 2022), de Homero Fonseca
A vida cultural do Recife nunca teria sido a mesma sem a influência de um dos seus maiores livreiros. Tarcísio (falecido em 2021, vítima da Covid) foi o homem que criou nos anos 1970 a “Livro 7”, mistura de livraria, bar, centro cultural e reduto de resistência política. Homero Fonseca pesquisou com carinho e reconstruiu o ambiente que possibilitou a existência da “maior livraria do Brasil”. Amigos do biógrafo e do biografado contribuíram com artigos, fotos, depoimentos, documentos de época; eu forneci um poema, “A Caverna Luminosa”, porque sou em grande parte um produto daquele aqui-e-agora.



POLICIAL
“Hotel Iris” (1996), de Yoko Ogawa
Uma garota adolescente, cuja mãe administra um hotel, se deixa fascinar por um homem mais velho que costuma se hospedar ali com prostitutas. Ela passa a segui-lo, até ser levada para a casa dele, onde os dois se entregam a rituais previsivelmente bizarros. O livro é contado do ponto de vista dela, com uma espécie de fascinação robotizada. Lembra a teoria da “vitimologia” de Julio Cortázar, para quem algumas histórias de crime são desencadeadas em igual medida pelo criminoso e pela vítima, a qual encara o perigo com o mesmo destemor anestesiado com que um viciado encara a droga que o está destruindo.
 



AUTOR NACIONAL
“O que a casa criou” (Record, 2021), de Diogo Monteiro
Este livro, vencedor do Prêmio Sesc de contos, tem uma prosa burilada minuciosamente, cada frase é inteira em si própria, sem servir de mero veículo para o fluxo da narração. Seria chamada de prosa poética, se isso não fosse hoje um termo meio maldito, principalmente no Brasil; mas mesmo assim é a narração que predomina. Mesmo elíptica e onírica em muitos pontos, é sempre uma história que está sendo contada, em ambientações rurais ou interioranas: o circo mambembe que viaja guardado numa caminhonete (“Várzea”), o lago que devolve as pedras jogadas dentro dele (“Repique”), o menino cujas partes do corpo desaparecem de uma em uma sem que isso cause alarme à sua mãe (“Campainha”). Todo um estilo, caprichado e imaginativo, se desdobrando.



FICÇÃO CIENTÍFICA
“The Other Nineteenth Century” (2001), de Avram Davidson
Avram Davidson era um judeu novaiorquino, baixinho, barbudo e irascível. Morou algum tempo no México e depois nas Honduras Britânicas (América Central), antes de se estabelecer na Caifórnia. Foi um desses indivíduos com leituras vastas e ecléticas, um vasculhador incansável de alfarrábios, arquivos, bibliotecas empoeiradas, hemerotecas de um tempo em que este termo ainda estava em uso.
 
The Other 19th Century é uma coletânea póstuma das principais histórias que ele ambientou nesse século, com o qual se identificava. Muitas de suas histórias de FC têm lugar no passado, com episódios bizarros relativos à descoberta e exploração da eletricidade, rádio, etc.  Bastaria esta coletânea para que Davidson pudesse ser considerado um precursor do gênero steampunk, porque ele mostra, além da fascinação pela tecnologia vintage, o exotismo de uma época delirantemente imperial, e a mestiçagem cultural resultante do refluxo, para dentro das capitais dos impérios, de tudo que existe de improvável e ininteligível na cultura das colônias.
 
Davidson (1923-1993) sempre foi uma espécie de “estranho no ninho” na FC norte-americana – ainda assim, ganhou prêmios como o Hugo, o World Fantasy Award e o Edgar (de literatura policial). Ursula LeGuin disse certa vez, referindo-se a Philip K. Dick, que este seria “o Borges do nosso país”. Acho que Avram Davidson é quem mereceria essa qualificação, por mais de um motivo.
 
O título completo deste livro é: O Outro Século Dezenove: Uma Coletânea de Histórias de Avram Davidson, Contendo Extraordinárias Revelações sobre as Vidas de Pessoas da Literatura; bem como Relatos Fidedignos sobre Fósseis Vivos, a Câmera de Montavarde, a Máquina de Irradiodifusão, e o Vilvoy das Ilhas; com Crimes Nefandos, Nobres Damas em Adversidade, Brilhantes Deduções, Eunucos Imperiais, Maquinações Políticas, etc etc



CLÁSSICOS
“Orlando” (1928), de Virginia Woolf
Li este livro em tradução brasileira, quando tinha trinta e poucos anos, e tive a sensação de que estava lendo um livro de alguém tão hábil com as palavras e com os pensamentos quanto Machado de Assis. (Li na edição do Círculo do Livro, e até hoje não consegui descobrir quem traduziu esta versão.) Reli agora no original inglês, e achei o livro muito melhor, mas muito mesmo. O impulso de reler veio por ter assistido a ótima adaptação feita por Sally Potter em 1992, com Tilda Swinton no papel-título.
 
Virginia Woolf tem o dom, que nem todos os escritores (mesmo os que são geniais) têm, de puxar o leitor pelo fio das palavras da maneira como uma criança puxa pelo fio de uma linha a sua pipa (arraia, coruja, pandorga, etc.).  Basta um fio de palavras, e como o fio tem solidez e tensão suficientes, ele arrasta o leitor para o século tal, para Londres, para Istambul, para o oceano, para o passado e o futuro... Virginia Woolf escreve o tempo todo como quem começa a contar uma história para os frequentadores de um café egípcio, e poucos parágrafos mais à frente tudo acontece como se estivesse acontecendo de verdade, ou seja, num filme de verdade, com atores e tudo, navios e tudo, explosões e tudo; e mal se dissipa o fumo das explosões lá vem o fio das frases nos arrebatando e nos levando de novo na direção que a autora bem entende, e até em direções que ela confessa não entender por completo, mas afinal, como é ela que está levando, ela leva mesmo, lá vai ela e lá vamos nós. 
 
Este livro é uma beleza, li traduzido em edição de papel, li agora em inglês (em PDF no celular), e pretendo comprar outra versão em papel para me deleitar sublinhando. 
 

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Outras indicações: 

https://mundofantasmo.blogspot.com/2022/12/4892-leituras-2022-1-12122022.htm

https://mundofantasmo.blogspot.com/2022/12/4893-leituras-2022-2-15122022.html 





domingo, 18 de dezembro de 2022

4894) Entrevistas Transcendentais: Alfred Hitchcock (18.12.2022)




O elevador é espaçoso, sem ruído, e meus sapatos se afundam num carpete fofo. No final do largo corredor, uma secretária ergue-se da mesinha e me conduz a uma sala interna, ampla, com teto altíssimo. As paredes são cobertas de cartazes e fotos emolduradas. Há uma estante envidraçada a um canto, dois sofás, três poltronas, uma mesa baixa de madeira, sem nada em cima a não ser três cinzeiros de vidro. Ela me pede que espere e sai, pé ante pé. Fico olhando a janela envidraçada e enorme por onde entra a luz da manhã californiana, onde arde um sol de ouro. 
 
Um minuto depois abre-se outra porta ao fundo e ele se aproxima, com passo tranquilo e miúdo, um sorriso formal, a mão estendida, senhor de si. Sentamos, trocamos amabilidades, ele se interessa em saber se fiz boa viagem, se estou bem instalado, se fui bem atendido. Por fim, explico-lhe o conceito por trás da minha visita.
 

HITCHCOCK - Dizem que tenho uma relação difícil com a imprensa. Por quê? Poucos diretores receberam tanta cobertura de imprensa quanto eu, o que prova que sei como os jornalistas pensam. Se gosto das críticas? Incomoda-me a injustiça de me atribuírem, mesmo de boa fé, intenções que nunca tive, ou de exibirem má-vontade para com certos aspectos do meu sucesso.
 
BT – Há diretores que se fecham em si, se distanciam do público. Com o senhor, parece ter sido o contrário. O senhor se preocupa em saber o que as pessoas pensam de cada filme, de cada plano em cada filme.
 
HITCHCOCK – Concordo, com uma correção: não o que as pessoas pensam, mas o que elas sentem. O que procuro é um cinema de comunicação instantânea, onde o ato de ver e a descarga de emoção sejam quase simultâneos. Deixar o público num estado de interrogação; depois, de surpresa; depois, de medo, de riso, de indignação, de simpatia...
 
BT – Talvez também um estado de juízo crítico, de distanciamento?...
 
HITCHCOCK – Menos! Muito menos. Somos educados para pensar criticamente o tempo todo. O cinema quebra essa barreira racionalista e vai no ponto mais fundo de cada pessoa. Muitos dos roteiros que filmei tinham que ter trechos expositivos, com diálogos falando da política, da psicanálise, da investigação policial... O cinema sonoro produziu este pesadelo: o blá-blá-blá filmado. Sou de um tempo em que apenas víamos os lábios se movendo e deduzíamos sem erro o que estava sendo dito. 
 
BT – Muitas vezes o senhor se vinga do diálogo irrelevante de forma até óbvia.
 
HITCHCOCK – Sim, acho que consigo, com certa frequência, fazer com que as ações na tela sirvam de desmentido às falas. Os diálogos, em  geral, são irrelevantes, estão ali apenas para que a cena pareça realista. As pessoas falam demais na vida real, não acha? Palavras, palavras...
 
BT – Eu tenho uma curiosidade especial em saber a forma como o senhor escolhe os títulos dos filmes. Alguns são óbvios ou banais, mas outros parecem cuidadosamente pensados. 
 
HITCHCOCK –  Isto varia de caso para caso. No cinema empregamos muito os títulos provisórios; North by Northwest se chamou durante algum tempo A Mulher no Nariz de Lincoln. Creio que O Homem Que Sabia Demais é um bom despiste, porque esse personagem é claramente o agente que morre apunhalado no mercado ao ar livre, na sequência inicial do filme, no Marrocos. O protagonista (James Stewart) é, como sempre, alguém que só conhece a verdade aos pedaços, nunca sabe o suficiente. 


 
BT – O senhor fala frequentemente no contraste entre o suspense e a surpresa.
 
HITCHCOCK – São dois instrumentos úteis, e a sabedoria está em usá-los da forma adequada. Prefiro defini-los como: “A Ignorância do Espectador” e “A Onisciência do Espectador”. No primeiro caso, acontece algo que ele não entende por completo, e por isso o desfecho é surpreendente: um simples susto, digamos. A ignorância do espectador, porém, deve ser explorada para gerar mais que o mero susto. Gerar a estranheza: a cena da estrada e do avião em North by Northwest, da loja do taxidermista em O Homem Que Sabia Demais... A estranheza é tudo. 
 
E há as situações em que o espectador é onisciente, ou seja, ele sabe coisas que os personagens não sabem. Muitos efeitos de suspense brotam desse tipo de situação. Veja a cena de Rear Window em que Grace Kelly penetra no apartamento do assassino em busca de provas, e nós vemos à distância que o assassino está voltando pelo beco. Somos oniscientes, vemos tudo, e não podemos fazer nada para avisá-la – nesse momento, “somos” James Stewart, que está nessa mesma situação. 
 
BT – Muitos cineastas afirmam que pensam só no filme, e quase nunca no espectador. Certamente não é o seu caso. O senhor pensa o tempo todo nas reações do público.
 
HITCHCOCK – Mas é claro! O cinema existe para isto! Alguns colegas meus têm uma visão interiorizada, voltada para seus dramas íntimos, e eu os respeito. Mas também é legítimo pensar nos dramas íntimos do público e tentar contar histórias que tragam esses dramas para a superfície. O suspense é catártico. Tem sua função. 



BT – Quando estudei sua carreira, tive até a impressão de que o senhor era um leitor voraz de romances policiais, e que teria estudado psicologia. Mas logo vi que me enganava. 
 
HITCHCOCK – Minha abordagem reflete minha formação. Estudei engenharia, mecânica, eletricidade, desenho técnico. O cinema veio para mim como consequência do trabalho técnico no estúdio.  Um filme é como uma máquina: uma sucessão de diferentes funções (suspense, riso, susto, romance, etc.) que devem ser cumpridas de maneira consciente, deliberada. O trabalho do roteirista depende do trabalho do ator, que depende do trabalho do fotógrafo, que depende do trabalho do diretor de arte... e por ai vai. 
 
BT – Com esta sua formação técnica, o que acha dos atuais efeitos especiais?  Gostaria de tê-los tido à sua disposição?
 
HITCHCOCK –  Há momentos em meus filmes que exigiram um esforço técnico prodigioso, mas o resultado compensava: o mundo coberto de aves no final de The Birds, o crime na escada em Psicose, a subida da torre em Vertigo... Dezenas de pessoas suando a camisa durante dias para produzir alguns minutos de imagem na tela. E creia-me, todo trabalhavam exultantes. A computação gráfica permite transformar uma pessoa em outra em segundos, apenas apertando meia dúzia de teclas? Ora, ora... Isso é bem típico da época do capital financeiro, em que fortunas fictícias são construídas através de transferências eletrônicas. Nada disso é real. 



BT – Salvador Dalí à parte, eu creio que o senhor tem uma fascinação pelo Surrealismo, pelas imagens improváveis, incongruentes. Algo mais sutil do que uma girafa em chamas, ou um relógio derretido. Penso, por exemplo, nos cigarros que seus personagens apagam num ovo frito (Ladrão de Casaca), num pote de creme facial (Rebecca); no copo que Cary Grant pousa no pescoço da mulher bêbada em Notorious; na freira de saltos altos em The Lady Vanishes; no garoto que exibe um rato morto à mesa do jantar, em Young and Innocent... 
 
HITCHCOCK – O mundo tem uma faceta absurda, que tanto pode virar comédia como tragédia. Meus filmes refletem isso, porque é algo que aprendi na vida. Há uma área limítrofe entre a imitação e a realidade, entre a encenação e a “coisa real”. Muito do que vemos na tela nos parece invenção, mas a vida real é mais rica de surpresas do que imaginamos.    



BT – O que nos leva, de certa forma, à questão de suas breves aparições nos filmes. Há uma certa injustiça nos críticos que atribuem esse gimmick à simples vaidade.
 
HITCHCOCK – Essas aparições começaram por acaso, e se tornaram uma espécie de assinatura.  Eu sempre fui um admirador das artes plásticas. E garoto, indo aos museus ou folheando álbuns, eu me assustava às vezes ao olhar um quadro famoso, geralmente no canto inferior direito, e ver que nas folhas de um jardim ou na água do mar estava escrito o nome do pintor! Ora, aquelas imagens me pareciam reais. Quando um vaso de girassóis mostrava o nome “Vincent” ou o véu de uma freira taitiana trazia o nome “PGauguin” aparentemente bordado, não me passava na mente, de início, que aquele nome fosse um elemento estranho ao quadro. O nome fazia parte daquele objeto! Somente depois, com um pouco mais de idade, vim a entender o que era uma assinatura, e que ela estava numa “camada” externa ao quadro em si. 
 
Quando apareço em meus filmes sentado num ônibus, ou conduzindo terriers pela coleira, ou pondo uma carta no correio, é como se dissesse ao meu público que aquela história aconteceu no mesmo mundo em que eu existo. As pessoas que aparecem naquele filme são tão reais quanto eu – ou então, sou eu que sou tão irreal quanto o mundo delas. O público é livre para escolher!...  (risos) 



BT – O senhor já afirmou que depois de certa época, procurou incluir esse “cameo” nos primeiros minutos do filme, para não distrair o público da história...
 
HITCHCOCK – É preciso usar essas coisas com sensatez. Mesmo assim, confesso que já tive vontade de deixar de fazê-lo em algum filme, e depois afirmar vigorosamente, na imprensa, que estou ali, sim, o público é que não prestou atenção. Algumas pessoas talvez comprassem um novo ingresso, só para conferir. (risos) 
 
BT – O senhor é visto como o mestre do suspense e dos crimes violentos, mas não são coisas equivalentes.
 
HITCHCOCK – Por certo que não. O suspense não precisa da existência do crime, a não ser para ganhar mais dramaticidade. Estar atrasado rumo à estação de trem ou ao aeroporto é uma situação de enorme suspense pela qual todos nós passamos algumas vezes na vida. O suspense é a incerteza entre vários desfechos possíveis. Já a violência faz parte de nossa sociedade, infelizmente. Precisamos descarregar esses impulsos, projetando-os numa atividade inofensiva, simbólica, imaterial como o cinema. 



BT – É engraçado que o senhor qualifique o cinema como algo imaterial, porque problemas materiais, físicos, são a essência dos seus filmes. Livrar-se de um cadáver, por exemplo.
 
HITCHCOCK – Isso me fascina, porque depois que cometemos o mais horrível dos pecados – matar um ser humano – ficamos com a mais prosaica das tarefas: dar fim àquele trambolho que é um cadáver. Por isso os ingleses geralmente enterram suas vítimas, prosaicamente, no porão ou no jardim. É a solução mais prática, e somos um povo prático. Levá-lo para longe é sempre arriscado, principalmente quando o jogamos num caminhão de batatas e depois precisamos reaver um objeto que foi junto por engano, como fiz em Frenesi. Em O Terceiro Tiro pude usar a chave do humor sinistro para me divertir um pouco com isso. 
 
BT – Em The Rope o cadáver fica praticamente ao alcance da mão de todas as possíveis testemunhas, durante o filme inteiro.
 
HITCHCOCK – Uma das vantagens da tomada em ação contínua, que usei nesse filme, é reproduzir a sensação material que temos numa peça de teatro, de sabermos que não houve nenhum intervalo de tempo, por menor que fosse, que lhes possibilitasse dar um fim do cadáver. Ele é uma presença obsessiva, material mas invisível, pesando sobre o filme inteiro.


BT – Podemos dizer que o senhor leva a sério este problema.
 
HITCHCOCK – Faz parte da vida. É como no sexo, não acha? Depois que o indivíduo comete um crime ele está psicologicamente exausto, como se tivesse acabado de concluir um ato sexual. Tudo que ele quer é descansar. Mas... ele vê aquele corpo ali, ao lado, e precisa tomar uma providência a respeito. 
 
BT – O senhor tem de fato um humor muito peculiar.
 
HITCHCOCK – Sim, tenho consciência de que ao longo da vida fui um homem temido e admirado. Amado... raramente.




 
(Nota necessária: esta série de "Entrevistas Transcendentais" é composta por textos imaginários. Eu não entrevistei essas pessoas.) 

Augusto dos Anjos:

Philip K. Dick:

Agatha Christie:

Julio Cortázar:





quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

4893) Leituras 2022 - 2 (15.12.2022)




POLICIAL
“O Homem do Terno Marrom” (1924; L&PM Pocket, trad. Petrúcia Finkler) e “The Mousetrap” (1952), de Agatha Christie

Reler um livro depois de mais de cinquenta anos equivale a ler pela primeira vez. O Homem do Terno Marrom pertence a uma linha menos famosa na obra de Agatha Christie: aventuras movimentadas e com algum mistério criminal, cujos protagonistas são jovens. Os mais conhecidos são o casal Tommy & Tuppence Beresford (que aliás envelhece ao longo das décadas), mas neste romance há a aventura única de Anne Bedingfield, uma moça sozinha e expedita. Um crime que ela casualmente testemunha no metrô de Londres a envolve numa conspiração internacional cheia de peripécias, onde há um clima de aventura juvenil e até de comédia, mas os personagens morrem de verdade. Não darei spoiler de um detalhe importante, apenas direi que ele de certo modo prenuncia o clássico The Murder of Roger Ackroyd (1926). Agatha está visivelmente tentando transportar para a página escrita um pouco das emoções e da excitação de seriados de cinema como Os Perigos de Paulina (1914, com Pearl White). No texto (caps. 1 e 19) ela cita Os Perigos de Pamela – não sei se é outro seriado, ou apenas uma referência camuflada. 
 
Li o texto da peça The Mousetrap depois de ver o filme See How They Run (2022), de Tom George, uma comédia policial que transcorre no palco e nos bastidores da montagem desse texto. É a peça em cartaz há mais tempo no mundo inteiro; transcorre numa pousada num lugar remoto, isolada pela nevasca, com hóspedes que não se conhecem uns aos outros (ou talvez sim), e que têm, todos eles, episódios suspeitos no passado. De certo modo, é um ensaio para Ten Little Niggers ou And Then There Were None, um dos melhores romances da Dama do Crime. E para milhares de outras narrativas em que é essencial, acima de tudo, um ambiente fechado e isolado do mundo (numa montanha, numa ilha, num local com comunicações cortadas) onde crimes são praticados e resolvidos sem interferência do mundo externo. Para quem se interessar, aqui há uma filmagem completa da peça (câmera parada, no meio da platéia, plano único, mesmo ângulo; sem legendas):
https://www.youtube.com/watch?v=F_3ZSoRV7aE&t=552s&ab_channel=CraigJohnson
 


 
FANTÁSTICO
“The lost and the lurking” (1981), de Manly Wade Wellman

Um dos meus personagens preferidos no chamado “folk horror” é o cantador de viola Silver John, ou John The Balladeer, que viaja pelas montanhas dos EUA enfrentando seres sobrenaturais, feiticeiros, assombrações. Neste romance ele vai parar num vilarejo onde as pessoas parecem sujeitas a um encantamento coletivo, centrado num culto satânico cuja sede é a mansão de uma mulher que o próprio John confessa ser a mais bonita que ele já viu.
 
Wellman nasceu em Angola e passou boa parte da infância na África, o que o levou a criar um estilo de fantasia bem pessoal. Em geral seus contos são superiores aos romances, que dão a impressão de estar sendo “esticados”; mas o personagem é sempre fascinante, uma espécie de Woody Guthrie com traquejo pra enfrentar o sobrenatural. Silver John é um cara simples, do povo, mas daquele povo “com uma certa leitura” que me lembra muito o ambiente do cordel e da cantoria de viola no Nordeste. Assim como os sertanejos nordestinos leem o “Lunário Perpétuo” e eventualmente o “Verdadeiro Livro de São Cipriano”, os montanheses dos EUA têm algum conhecimento das obras de Cornélio Agripa ou Alberto Magno. Mergulhado na cultura folk local, Silver John é bom entendedor de amuletos, sinais cabalísticos, lugares com boa ou má energia, e toda a “sabedoria oculta” que a literatura fantástica usa como se fosse uma Ciência paralela (e que funcionasse). 
 




AUTORA CONTEMPORÂNEA
“O Lugar” (Ed. Fósforo, 1983, trad. Marília Garcia), e “La Honte (1997), de Annie Ernaux

Para que serve o Prêmio Nobel? Uma resposta possível: para leitores desinformados descobrirem uma autora com quem rapidamente se identificam. Annie Ernaux só não era totalmente anônima no Brasil porque a jovem Editora Fósforo (S. Paulo) já estava traduzindo e publicando seus livros fininhos, densos, aqueles livros onde em cada parágrafo cai uma ficha. São textos autobiográficos, mas em vez de circularem apenas em torno do umbigo afetivo de quem escreve, alargam-se na observação dos contextos, dos confrontos sociais, dos comportamentos padronizados que dão às sociedades conservadoras uma permanente ilusão de estabilidade até o próximo terremoto. 

“O Lugar” começa com a narração da morte do pai e da memória que ela guarda do pai, um camponês que se tornou operário de fábrica e depois pequeno comerciante. É a penosa e nem sempre bem sucedida ascensão social dos que sabem que por definição jamais deixarão de ser pobres, e que mesmo que um dia se tornem milionários carregarão a pobreza gravada na pele em caracteres indeléveis. 

“La Honte” (a Vergonha), um livro confessadamente mais doloroso de escrever, tenta reconstituir o dia em que o pai de Annie brigou com a esposa e tentou matá-la. “Meu pai tentou matar minha mãe” é um começo difícil para qualquer livro; embora depois o episódio tenha sido superficialmente superado, ele se espalha em constatações de inadequação social, ressentimentos, incompatibilidade de sonhos, tudo isto pesando na cabeça de uma garota de doze anos que “é a única da família a ter a chance de estudar numa boa escola” – onde, aliás, praticamente todos a tratam com desdém, por ser quem é e por vir de onde vem. Mais comentários aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2022/11/4884-vergonha-de-annie-ernaux-18112022.html
 


 
AUTORA NACIONAL
“Vestígios – Mortes nem um Pouco Naturais” (Bandeirola, 2018), de Sandra Abrano

O que chamamos de “romance policial” nem sempre (e às vezes quase nunca) se prende ao funcionamento da polícia e das atividades correlatas à investigação policial. A literatura em inglês tem o termo police procedural para designar os romances que mostram de forma verossímil os “procedimentos policiais” de investigação. Aqui, alguns poucos autores transitaram nesse terreno: José Louzeiro, Rubem Fonseca e outros.  Sandra Abrano avança com segurança, em Vestígios, por um terreno pouco explorado (talvez por estar cheio de minas subterrâneas): os procedimentos da polícia brasileira, principalmente das chamadas polícias secretas, no tempo da ditadura militar.

É um tipo de romance policial-político, onde o crime é visto como uma instituição coletiva. Não é o crime clássico, onde um indivíduo sozinho arquiteta e executa o delito. É o crime transformado em profissão legalizada e lucrativa, uma prática sabida e tolerada pelas autoridades, um “mal menor” com o qual muitas sociedades se conformam porque temem reprimi-lo e desencadear, assim, represálias imprevisíveis. O poder corrompe, e o poder não-fiscalizado corrompe absolutamente, ainda mais quando se tem a certeza da impunidade, e da cobertura de gente graúda. 

Sandra Abrano (“disclaimer”: a autora editou e edita livros meus pelo selo Bandeirola) aborda, numa narrativa de tragédias familiares e luta diária pela sobrevivência, o tema clássico da polícia criminosa, mostrando o que acontece com esses indivíduos quando algum surto democrático (como o que o Brasil experimentou a partir do final do século 20) desmantela seus grupos, organizações, folhas de pagamento, burocracias. Para onde vai esse pessoal? Raymond Chandler retratou a corrupção policial na Califórnia e recebia cartas dizendo: “eu conheço todos esses homens que o senhor descreve”. De certa forma, todos nós os conhecemos.





CLÁSSICOS
“Os Refugiados” (1893), de Conan Doyle (Melhoramentos, trad. Agenor Soares de Moura)

Um dos melhores romances históricos de Doyle, e um dos seus típicos livros com duas partes muito diferentes entre si. Na primeira, o oficial De Catinat, na corte de Luís XIV, sofre perseguições por ser huguenote (protestante) e se envolve nas intrigas da corte. Quando o rei promulga o Édito de Fontainebleau, que joga os huguenotes na ilegalidade, ele foge com a família num navio que vai para a América. Chegando lá, as perseguições continuam, e eles acabam tendo que atravessar uma parte selvagem do continente, perseguidos pelos índios. Doyle era um pesquisador dedicado, e algumas das suas fontes surgem como coadjuvantes na história, que é de ação constante, com ótimos personagens, diálogos vívidos. Há cenas notáveis, como a do despertar matinal do rei (que chega a ser cômica, pela pompa envolvida) e no final o cerco dos índios à casa onde De Catinat está refugiado. 
 
Li esse livro quando era garoto e reli agora com o mesmo prazer. É enorme o contraste de ambientes entre a primeira parte (a corte do Rei Sol) e a última (a selva da imprecisa fronteira, na época, entre o que hoje são o Canadá e os EUA). Há uma parte intermediária, a viagem de navio, que serve de ponte entre as duas e é também cheia de lances mirabolantes, conspirações, tentativas de morte, fugas, perseguições.  Doyle tinha faro para história de aventuras, e no cânone de Sherlock Holmes há blocos narrativos impecáveis, como a violência na colônia mórmon em Um Estudo em Vermelho, os conflitos no sindicato dos mineiros em O Vale do Terror, ou a perseguição final de barcos no Tâmisa em O Signo dos Quatro. Para falar em linguagem de hoje, The Refugees daria uma série de TV com duas ótimas temporadas de cinco ou seis episódios.
 
 (continua)
 
Primeira parte: