sexta-feira, 28 de março de 2008

0320) Cantigas infantis (30.3.2004)




Freud dizia que a riqueza não traz felicidade porque não é uma das coisas que desejamos na infância. Tenho a pessimista impressão de que dentro de mais alguns anos a lavagem cerebral capitalista terá se encarregado de suprir essa deficiência. Enquanto isto não acontece, nossa memória afetiva é incrustada de elementos que ali se fixam muito antes de adquirirmos um senso crítico ou um filtro racional para escolher o que nos convém ou não. Falei nisso em “A colonização do subconsciente” (28.12.2003), tentando justificar minha inexplicável (em termos rigorosamente estéticos) ternura pelas baladas de Neil Sedaka ou pelos faroestes de Audie Murphy.

Na infância lemos, vemos ou ouvimos coisas que não entendemos por completo, mas que se fixam em nossa memória pela repetição, ou por estarem associadas a eventos deslumbrantes, terríveis ou inesperados. Tornam-se fórmulas mágicas que valem não pelo que dizem, mas pela espessa teia de referência emocionais e de conexões mentais que arrastam consigo. Veja-se o caso das cantigas infantis, por exemplo. Penso nisto porque quando eu era pequeno havia uma parlenda: “Lá em cima do piano tem um copo de veneno; quem bebeu, morreu. Puxa o rabo do tatu, quem tafó-ré-tu.”

Esse copo de veneno deixado por distração (ou maquiavelismo) em cima do piano, à espera da vítima descuidada, sempre me pareceu um toque agatha-christiano autêntico. Não estou exagerando nem comparando água com vinho. Algumas “nursery rhymes” britânicas fornecem a estrutura básica de livros da Dama do Crime, como O Caso dos Dez Negrinhos, Os Cinco Porquinhos, A Pocket Full of Rye, One, Two, Buckle My Shoe. Outras fornecem, através de um verso, o ponto de partida da história, como Hickory Dickory Death, Croooked House, Sing a Song of Sixpence...

Freud explica, essa ligação aparentemente ilógica entre inocentes cantigas de criança e assassinatos? Acho que nem precisamos dele. Canções infantis, como as histórias infantis e os contos-de-fadas, têm raízes remotas na memória social dos povos, e não são tão inocentes quanto gostaríamos. Falam de madrastas cruéis, em crianças enterradas vivas ou perdidas na floresta... Uma cantiga inglesa de jardim-da-infância diz: “Ring a ring of roses, a pocketfull of posies, atishoo, atishoo, all fall down.” Diz a tradição que os versos se referem à Peste Negra: o círculo de manchas vermelhas em volta da boca, os bolsos cheios de flores, os espirros, a morte.

Versos aparentemente inocentes podem ser resíduos de experiências terríveis do passado, de épocas de enorme mortalidade infantil ou de extrema crueldade com crianças. As cantigas infantis não são politicamente corretas; não foram concebidas por um comitê de assistentes sociais. Nasceram, como toda poesia popular, de uma lenta acreção de imagens e situações ao longo de um ciclo em que crianças recebem essas fórmulas mágicas, e as passam adiante na velhice.

0319) Nós, robôs (28.3.2004)


("ArtBots" - Fernando Orellana - "Drawing Machine 3, 14159")

Para muita gente foi uma decepção o Grande Desafio de veículos robôs, realizado há poucos dias no deserto de Mojave (EUA), sob o patrocínio da DARPA (Agência de Pesquisa em Projetos Avançados de Defesa). Tratava-se de um percurso de 241 km a ser cumprido através do deserto por veículos totalmente autônomos, ou seja, depois de dada a partida o veículo teria que se virar sozinho, subindo ladeiras, contornando obstáculos, etc.

Apareceram 106 interessados, que foram submetidos a um filtro prévio, até restarem apenas quinze equipes consideradas aptas a concorrer. Munidos com localizadores GPS (via satélite), os veículos teriam que cumprir um percurso ao longo de 2000 pontos possíveis de localizar automaticamente. O resultado, no entanto, ficou muito aquém do esperado. Nenhum dos veículos cumpriu mais do que 5% do trajeto, e o prêmio de um milhão de dólares não teve ganhador. Veículos capotaram, outros caíram em barrancos. Parece distante o objetivo dos americanos, de que um terço de todos os seus veículos militares sejam totalmente autônomos por volta de 2015.

Por outro lado, parece que na área esportiva estamos indo melhor. A ROBOlympics, olimpíada para robôs realizada em 20-21 de março em San Francisco (Califórnia) reuniu 414 robôs de 11 países em 34 diferentes eventos esportivos, que incluíram desde futebol até luta de sumô, combate ao fogo, solução de quebra-cabeças, travessia de labirintos, e outros desafios que os técnicos consideram ao alcance dos robôs de que dispomos atualmente. As “robolimpíadas” não têm ligação com o Comitê Olímpico Internacional: são um evento organizado pelos técnicos e pelas empresas envolvidas. Quem quiser mais detalhes, é só ir para: http://www.robolympics.net/index.shtml.

Sei que esta coluna é lida por muita gente de formação não-científica, não-técnica. Que tal, então, considerarmos a ArtBots, uma exposição internacional de arte robótica? Aconteceu pela primeira vez em 2002, em New York, e este ano deverá ter sua terceira edição. A exposição exibe qualquer obra de arte que envolva robôs, num critério bastante amplo. Dizem os organizadores: “Inscreva seu trabalho, se você acha que é um robô, e se acha que é arte.” Ou seja: são aceitas obras produzidas por robôs, ou obras que contenham algum tipo de mecanismo robótico: objetos, instalações, esculturas... Regulamento e detalhes podem ser obtidos em: http://artbots.org/ -- e cada obra inscrita recebe 500 dólares de participação! (Infelizmente, todas as despesas correm por conta do participante)

Parece bobagem, mas vendo isso eu me sinto como Isaac Newton, apanhando conchinhas na beira do oceano da sabedoria. De repente, lá vem um peixe se arrastando para a areia, com nadadeiras que já começam a se parecer com pernas... Para uns é grotesco, para mim é fascinante e assustador. Oxente, pessoal, é como qualquer começo de um mundo novo. No começo a gente estranha; depois, fica se perguntando como conseguiu viver sem aquilo.

0318) Poesia sem livro (27.3.2004)



(The Pillow Book, de Peter Greenaway)


Falei ontem sobre a poesia-publicada-em-livros, o que equivale a falar dos filmes-que-passam-no-cinema, que são a única espécie de filmes que existem, na opinião de muitas pessoas (principalmente as que fazem tais filmes). 

Mas, assim como existe vídeo digital, filme super-8, curta em 16mm, filme-de-animação-com-massinha, e incontáveis outros tipos de filme que um cinema jamais verá, existe também a poesia que tem espaço em todo canto, menos num livro.

Quando eu era cineclubista, observei numerosas vezes como os cineastas profissionais, que faziam longa-metragens em 35mm., suportavam com estoicismo o entusiasmo da rapaziada que fazia documentários curtos em 16mm., e não tinha a menor paciência para com os “porra-loucas” que faziam filmes experimentais em super-8. 

Era uma luta de classes sociais no interior de uma atividade artística: havia “os que faziam Cinema de verdade” e os que “estavam brincando de fazer cinema”. Algo semelhante ocorre na atitude dos poetas-de-livro com relação aos poetas de cordel, aos poetas que recitam na praça ou em botequins, aos poetas da geração mimeógrafo, aos letristas de MPB.

Para alguns, essa atitude elitista é cultivada por quem pertence a uma burguesia dona das rédeas da produção cultural (leia-se: editoras, revistas, suplementos literários, clubes literários, academias, cursos de letras, etc.). 

Estas pessoas têm todo o interesse em só considerar Poesia a produção que está sob seu controle e que pode lhe proporcionar os respectivos lucros simbólicos, em forma de prêmios, prestígio, convivência social com gente mais rica, títulos, empregos públicos, etc. Grande parte da história da poesia ocidental transcorreu dessa forma.

Essa Poesia, simbolizada no livro, é inalcançável pelos poetas-de-rua, sejam eles beatniks cabeludos, cordelistas de alpercata e terno-de-mescla, letristas de samba-de-morro, sonetistas de fim de semana, violeiros repentistas, tiradores-de-verso do maracatu rural e da folia-de-reis... 

Todos estes se consideram poetas, com alguma razão. E todos também sabem que não o são, e só o serão se um dia publicarem “um livro de verdade”, parecido com os que os poetas de verdade publicam. 

Já vi muitos cordelistas sonhando com isto: já publicaram centenas de títulos e milhares de poemas, mas comentam com nostalgia: “Tô com 65 anos e ainda não fiz um livro...”

São poetas, esses caras? São e não são. São, porque tecnicamente falando o que produzem é poesia, não é pintura-a-óleo nem escultura-em-madeira. E não são porque o que fazem passa ao largo da História da Poesia Brasileira, de uma tradição literária brasileira que só leva em conta o que é registrado em livro. 

É como uma História do Cinema Brasileiro que ignore o que foi feito em curta-metragem, ou em bitolas menores. A História é sempre incompleta. Disse alguém que a História é sempre escrita pelos vencedores; pois digo eu que escrever a História é a última batalha, aquela que define quem de fato venceu.





0317) A poesia está para o livro... (26.3.2004)




...assim como a canção está para o CD? Discussões recentes sobre poesia, pessoalmente ou através de textos, me levam a tocar de novo num assunto já abordado aqui: pode existir poesia fora dos livros? Por exemplo – em letras de canções populares? 

Já falei sobre isto em “O poeta principiante” (25.10.2003), “Primo rico e primo pobre” (29.11.2003), “Santo nome em vão” (24.12.2003) e outras. Se pode, ou se não pode, então por que é assim? Acho que a resposta a esta pergunta depende (eita, que agora eu vou dizer uma coisa originalíssima!) do que a gente chama de “poesia”.

Poesia é um texto em verso publicado num livro. Tenho plena consciência de que para algumas pessoas esta frase é um óbvio ululante, e para outras um total absurdo. 

Já tomei muita cerveja com ambos os grupos. Os que acham óbvio lembram que existe uma tradição poética, uma História da Poesia que trata das obras publicadas em forma de livro, por poetas como Drummond, Bandeira, João Cabral, Cecília, e mais antigamente Bilac, Castro Alves, Camões, Dante, etc. 

Poesia, portanto, é tudo que bebe nesta tradição, tudo que prolonga esta tradição, tudo que dialoga com ela, mesmo quando se trata de questioná-la ou negar sua importância – como o fizeram os modernistas de 22, por exemplo.

Os defensores desta tese não se consideram elitistas. Argumentam eles que os livros dão à poesia a divulgação e a perpetuação necessárias para que ela seja uma espécie de consciência lírica ou épica de um povo, de uma época. 

O próprio conceito de nacionalidade se funda em torno de um conjunto de sentimentos, valores e imagens expressos num poema que se torna símbolo nacional, tanto quanto a bandeira ou o hino do país. Não existiria a Itália que conhecemos se não existisse a Divina Comédia, não existiria Portugal sem Os Lusíadas, não existiriam os Estados Unidos sem as Folhas da Relva (que neste aspecto podem ser consideradas um vasto, único poema), e assim por diante.

O livro é o espaço da poesia, porque é o único que consegue acomodar suas gigantescas proporções, assim como o teatro é o espaço da ópera. Nunca ouvi falar em ópera-na-rua, em ópera-na-praia. Na produção poética, pode haver um varejo de plaquetes e de recitais, mas é no livro que o que é realmente grande encontra sua própria dimensão. 

O exemplo maior disto é a obra de Homero, que certamente lançou mão de fontes orais e dispersas, mas só se tornou o que é depois de tornar-se Livro.

O poeta-de-livro olha para os poetas-sem-livro do mesmo jeito que o arquiteto do Taj Mahal olha para o arquiteto que projeta um restaurante na orla: com um misto de simpatia paternal, cauteloso distanciamento, e certeza íntima de que, como dizia Tim Maia, “uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa”. 

Sem dúvidas tem suas razões para pensar assim, e digo isto porque também o penso nos dias pares. Mas amanhã eu gostaria de examinar outras coisas, que penso nos dias ímpares.

(continua amanhã)




0316) O xadrez transgênico (25.3.2004)




Quando garoto, eu me admirava ao ver nos livros de xadrez as partidas sendo concluídas com a rubrica: “Abandonam”. Acostumado à ética brutal dos jogos de pelada no campinho das Barreiras, eu perguntava a meu pai: “Ei, que história é essa? As Brancas correram-com-medo?” Aí vinha a explicação de que o xadrez é um jogo de tal exatidão que em certo momento, depois de uma jogada decisiva, ambos os jogadores percebem que não há alternativa possível para evitar o xeque-mate dentro de um, dois ou mais lances. Qualquer que seja o caminho a seguir, o desfecho será um só. Não é preciso continuar. O resultado final é inevitável.

Comecei a pensar no assunto e me ocorreu que à medida que fosse aumentando o poder de antevisão das jogadas (com o uso dos computadores, por exemplo), seria possível prever o fim de uma partida com 10, 20, 30 jogadas de antecedência. Talvez chegássemos ao ponto em que um cara jogaria “Peão 4 de Rei” e o outro diria: “Abandono!” O xadrez perderia a graça. Ficaria parecendo com aquela cidadezinha do interior, onde todas as piadas eram conhecidas e numeradas, e bastava alguém dizer: “187” pra todo mundo rir. (E o forasteiro diz: “126”, ninguém ri, e aí explicam que a graça da piada está no jeito de contar.)

O xadrez é um jogo de multifurcações estratégicas onde cada jogada provoca uma mudança qualitativa radical. Em cada posição temos milhões de jogadas possíveis, milhares aceitáveis, e um punhado de jogadas que nos permitem chegar onde queremos sem que o adversário, que está vendo tudo, nada perceba. Vi há algum tempo uma entrevista na TV com Gary Kasparov onde ele fala que o uso de super-computadores está tornando o xadrez uma simples disputa de velocidade no cálculo de probabilidades, e que por isto Bobby Fischer teria sugerido alterações pequenas mas radicais nas regras, para trazer uma certa novidade e imprevisibilidade ao jogo. Bastaria, por exemplo, mudar a posição inicial das peças – digamos, invertendo as posições relativas do bispos e das torres. Bastaria isso para evaporar quase todas as estratégias provadas e comprovadas até agora, fazendo o xadrez recomeçar quase do zero.

Mais recentemente foi noticiado (em “The Guardian”, 4 de março) que pesquisadores da Suécia e da Austrália têm examinado mudanças nas regras do xadrez, não para serem aplicadas no jogo em si, mas como complemento a estudos de estratégia militar. Uma mudança interessante, para tornar o jogo mais parecido com a guerra, é o que eles chamam “incerteza informacional”. Os jogadores, por exemplo, jogam “às cegas” e são impedidos de conhecer os dois últimos movimentos do adversário. Outra mudança permite aos jogadores vários movimentos simultâneos, como ocorre numa batalha real. Este xadrez “transgênico” talvez não venha a ser assimilado pelos torneios oficiais ou pela teoria ortodoxa, mas pode ajudar a revitalização do jogo entre seus praticantes mais calejados (e entediados).

0315) Menos é mais (24.3.2004)



A filosofia da arte minimalista é: “Menos é mais” (“Less is more”). Ou seja, quanto menos você diz (desde que diga o essencial), mais você permite que o leitor recrie por conta própria. 

Muitas vezes, quando estamos escrevendo (compondo, filmando, etc.), o entusiasmo criativo é tão grande que tendemos a sufocar o leitor, dizendo tudo, explicando tudo, mostrando tudo. Está errado. O leitor gosta de se sentir esperto. O leitor gosta de adivinhar o que estamos pensando, nas entrelinhas do que estamos dizendo. 

O leitor gosta de perceber nosso trajeto do raciocínio A para a conclusão B, sem que tenhamos de explicar tintim por tintim como chegamos lá. Toquei no assunto há algum tempo (“Prolixidade”, 8.1.2004) e agora toco de novo para mantê-lo acordado.

Para mostrar o essencial é preciso saber o que é essencial, e muitas vezes não sabemos. O recente filme Dogville de Lars von Trier faz uma experiência interessante: recria uma cidadezinha através de riscos de giz no chão do cenário. Paredes e casas invisíveis, pessoas que fingem abrir portas e janelas. É um imenso palco de teatro, vazio, com um mínimo de móveis e objetos. 

Depois de meia hora de filme, a gente nem percebe que a cidade não existe: presta atenção apenas no essencial, ou seja, no que acontece com os personagens.

A síntese verbal é igualmente importante. Há uma frase famosa, que já vi atribuída a Blaise Pascal e a Oliver Goldsmith, numa carta a um amigo: “Desculpe a carta ter ficado tão longa, não tive tempo de fazê-la mais curta.” 

A literatura (a escrita, de um modo geral) deveria adotar uma regra básica do cinema, chamada de “8 por 1”, ou seja, para cada hora de filme na tela são filmadas oito horas de material. Um copião de 16 horas nos dá um filme de duas. Não conheço muita gente que escreva 800 páginas para produzir um livro de cem.

Transcrevi ontem, aqui, um curioso exercício de Eric Schulman, uma “História do Universo” em 200 palavras. Houve quem a achasse muito prolixa. Um sujeito religioso contou a mesma História em apenas duas palavras: “Deus. Homem.” Um agnóstico discordou, e deu sua versão compacta: “Nada. Algo.” 

Um curioso exercício de contenção linguística é o que em inglês se chama “drabble”: histórias com exatamente 100 palavras. Parece difícil? Confira em: http://www.livejournal.com/interests.bml?int=drabbles.

O credo do minimalismo está sintetizado na quadrinha de Paulo Leminski: 

Um pouco de Mao 
em cada poema que ensina: 
quanto menor 
mais do tamanho da China. 

A obsessão infatigável de Jorge Luís Borges pelo minimalismo já reduziu o universo a uma biblioteca (“A Biblioteca de Babel”), a um livro (“O Livro de Areia”), a uma palavra (“Undr”), a uma letra (“O Aleph”). 

Não precisamos ir tão longe, mas não custa nada tentar escrever como se cada frase tivesse a obrigação de dizer alguma coisa, como se cada palavra tivesse o poder de ser insubstituível.







0314) Mini-História do Universo (23.3.2004)

(Foto da NASA)

Para algumas pessoas (eu, por exemplo) escrever muito é mais fácil do que escrever pouco. Dois terços dos assuntos que penso em tratar nesta coluna são descartados porque iriam exigir demasiado espaço (e vou logo avisando à editoria do jornal que só aceito aumento de espaço se aumentarem proporcionalmente o salário). Em geral, escrevo o dobro do necessário, e ao terminar volto ao começo e venho cortando.

Minha medalha de ouro de Síntese Conceitual vai para Eric Schulman, autor desta curiosa “História do Universo em 200 palavras ou menos”. A tradução brasileira é de Wilson Afonso (wilson@nutec.com). Quem gostar pode ver versões, adaptações e paródias variadas em: http://members.bellatlantic.net/~vze3fs8i/hist/. E antes que algum espertinho se dê o trabalho de contar e verificar que são na verdade 221 palavras, explico que o original em inglês não tem a maioria dos artigos e preposições que são necessários em nosa língua. Vamos ao texto de Schulman.

“Flutuação quântica. Inflação. Expansão. Forte interação nuclear. Aniquilação partícula-antipartícula. Produção de hélio e deutério. Perturbações de densidade. Recombinação. Radiação de corpo negro. Contração local. Formação de clusters. Reionização? Relaxamento violento. Virialização. Formação irregular de galáxias? Fragmentação turbulenta. Contração. Ionização. Compressão. Hidrogênio opaco. Formação maciça de estrelas. Ignição de deutério. Fusão de hidrogênio. Redução do hidrogênio. Contração do núcleo. Expansão dos limites. Fusão de hélio. Fusão de carbono, oxigênio e silício. Produção de ferro. Implosão. Explosão de supernova. Injeção de metais. Formação de estrelas. Explosões de supernovas. Formação de estrelas. Condensação. Agregamento planetesimal. Diferenciação planetária. Solidificação da crosta. Expulsão de gases voláteis. Condensação de água. Dissociação da água. Produção de ozônio. Absorção ultravioleta. Organismos unicelulares fotossintetizadores. Oxidação. Mutação. Seleção natural e evolução. Respiração. Diferenciação celular. Reprodução sexual. Fossilização. Exploração da terra. Extinção dos dinossauros. Expansão dos mamíferos. Eras glaciais. Manifestação do Homo Sapiens. Domesticação de animais. Produção de excesso de alimentos. Civilização! Inovação. Exploração. Religião. Nações guerreiras. Criação e destruição de impérios. Exploração. Colonização. Impostos sem representação. Revolução. Constituição. Eleição. Expansão. Industrialização. Rebelião. Proclamação de emancipação. Invenção. Produção em massa. Urbanização. Imigração. Conflagração mundial. Liga das Nações. Extensão do voto. Depressão. Conflagração mundial. Explosões de fissão. Nações Unidas. Exploração do espaço. Assassinatos. Excursões lunares. Renúncia. Informatização. Organização Mundial do Comércio. Terrorismo. Expansão da Internet. Reunificação. Dissolução. Criação da World-Wide Web. Composição. Extrapolação?”

0313) Bússolas (21.3.2004)




Eu tenho para mim que os Grandes Artistas devem servir à gente como bússolas. Ajudando a gente a se orientar. Indicando direções. Permitindo que a gente perceba com nitidez os limites do nosso mundo, e o ponto que estamos ocupando no interior destes limites. Mas o fato de a bússola apontar o Norte não quer dizer que a gente tenha que navegar na direção do Norte!... Ela aponta o Norte por causa dos metabolismos magnéticos dela, ou coisa que o valha. É a idiossincrasia das bússolas, apontar para o Norte. (Rapaz, eu tô polissilábico hoje, preciso me policiar.)

Indo mais fundo nesta metáfora, eu diria que um grande artista, digamos, William Shakespeare, é na verdade um “Norte magnético” e sua obra é que é a bússola, a agulha imantada que aponta na direção dele. Quando pegamos num exemplar do Macbeth ou quando assistimos uma montagem das Alegres Comadres de Windsor, essas obras são agulhas imantadas que nos dizem: “Veja! Lá está William! Lá está a imaginação fértil, as sacações psicológicas, o brilhantismo verbal dele, seu pessimismo e seu otimismo com a natureza humana, o realismo cruel e o humor cheio de leveza dele... Lá está o Norte do universo que produziu essas obras, e seu nome é William Shakespeare” Estas obras não estão nos dizendo “faça isto também!” Elas nos mostram um dos pontos extremos, um dos pontos mais elevados do fazer poético humano. O resto é conosco.

Penso nisto todas as vezes em que me debato, ou vejo gente se debatendo, nas contradições aparentemente insolúveis entre Grandes Artistas que têm visões do mundo muito diferentes, ou até antagônicas. Os exemplos são incontáveis. Ariano Suassuna x Caetano Veloso. Henry Miller x Jorge Luís Borges. Pink Floyd x Sex Pistols. Sam Peckinpah x Charles Chaplin. Augusto dos Anjos x Vinicius de Moraes. Elomar x Cazuza. João Cabral x Pablo Neruda. Chico César x Antonio Nóbrega. Podem prosseguir … não falei que eram incontáveis?

Sempre que me propõem uma dupla desse tipo e me perguntam quem tem razão, digo: “Os dois têm razão. Um me aponta o Norte, o outro me aponta o Sul. O resto é problema meu.” A verdade é que, se quaisquer dois destes artistas tivessem exatamente a mesma visão, repetissem as mesmas opiniões, trouxessem as mesmas contribuições ao mundo... então um dos dois seria desnecessário. Será que eu preciso mesmo optar pelo Movimento Armorial e abrir mão do Tropicalismo, ou vice-versa? Pelo contrário. A existência desses dois pontos cardeais acaba sendo muito útil, e quanto mais afastados eles estiverem, melhor – porque vai existir um terreno muito mais vasto a ser percorrido, explorado e cultivado por mim. Todos esses artistas são grandes: viveram suas vidas, trabalharam intensamente suas obras, tornaram o mundo mais Real depois de passarem por ele. São bússolas, dezenas de bússolas, que me mostram uma inesgotável rosa-dos-ventos do que é possível fazer. Abrirei agora uma cerva gelada, e brindarei a todos.

0312) O Zé Pelintra de Chumbo (20.3.2004)




Hoje, na casa de amigos, fiquei assistindo trechos de um DVD do Led Zeppelin, com apresentações ao vivo gravadas nos anos 70, no auge do sucesso da banda. E fiquei meditando um pouco sobre toda essa história de “heavy metal”, um tipo de rock do qual nunca fui grande admirador, mas que até hoje espanta e fascina milhões de pessoas. 

O heavy metal é acima de tudo um vagalhão sonoro, como aquelas ondas gigantescas do Havaí: algo que se abate sobre nós, submergindo-nos por completo. Antes de ser música no sentido tradicional de melodia e harmonia, é uma experiência sensorial, algo que devemos absorver com o corpo inteiro, e não apenas com os tímpanos.

Alguém poderá objetar que todo show de rock é assim. Mas nos primórdios do rock contemporâneo não era. Vejam as fotos dos Beatles no Shea Stadium, em Forest Hills, em todos os lugares onde se apresentavam entre 1964-65 para públicos de 15 a 20 mil pessoas. A amplificação era qualquer coisa, qualquer nota. Não existiam ainda as mesas e as poderosas caixas-de-som que nos anos 70 fariam a fama das bandas metaleiras. 

Comparado ao que o Zeppelin, The Who e outras bandas estariam fazendo cinco anos depois, o som dos Beatles era uma vitrola de piquenique.

O Led Zeppelin produzia um tremor-de-terra semelhante à decolagem de um ônibus espacial, mas isso era um bônus que se somava à enorme musicalidade do grupo. Basta revê-los tocando “Going to California” ou a inevitável “Stairway to Heaven” para perceber que o conceito de amplificação de som, numa banda como aquela, não era voltado apenas para o super-espetáculo auditivo, mas também para a criação do que poderíamos chamar de gigantescos close-ups sonoros, onde uma aparelhagem poderosa e sofisticada tornava audível cada respiro e sussurro do vocalista, cada trastejo ou harmônico de um violão acústico.

Em Revolution in the Head, a meu ver o melhor livro já escrito sobre a música dos Beatles, o recentemente falecido Ian MacDonald observava que o heavy metal se originou de uma transição, em meados dos anos 1960, das bandas de quatro integrantes com volume acústico mediano (caso dos Beatles) para o “poderosos trios” que empregavam enorme amplificação. 

Nessa mudança, a guitarra-ritmo (ou guitarra-base) era eliminada, e seu espaço era preenchido pelo recurso de aumentar o volume do baixo, microfonar mais de perto a bateria, e encher de distorções a guitarra solo. Com isso, o rock ganhou em poder auditivo: MacDonald chama a música resultante de “um esporte-de-contato sonoro”, enquanto Jon Pareles define a música do Zeppelin como “esculturas em ruído”. 

A perda foi pelo lado das composições. Os guitarristas-ritmo eram geralmente compositores, e provinha deles um senso mais nítido de estrutura e de harmonia nas canções. O Zeppelin é o ponto alto do heavy metal, antes que o gigantismo sonoro engolisse o artesanato das melodias, harmonias e letras.






0311) Minha boa ação de hoje (19.3.2004)




(David Alfaro Siqueiros, "Echo of a Scream", 1937)


O mundo está ficando um lugar impossível de se habitar. 

Vou ao supermercado ao meio-dia, o que não é uma das coisas que me deixam de bom-humor. Confiro a lista e empilho coisas no carrinho. Batata, banana, abóbora, alho. Bife, frango, fígado. Cerveja, refrigerante, mineral-com-gás. 

O problema é que o supermercado passou por uma reforma recente, e tudo mudou de lugar: onde era a prateleira de sucos é agora a estante de vinhos, onde ficava o balcão de frutas é agora o balcão de carne-seca e sal... 

Mudou tudo. Está tudo maior, mais bonito e mais caro; é a saúde-com-anabolizantes do capitalismo brasileiro. Passo horas procurando o lugar onde tem lâmpada. (Não, não pergunto. Mulher adora perguntar onde ficam as coisas. Homem que é homem insiste até descobrir sozinho.)

Aí me aparece um pirralho com um pacote de biscoito na mão: “Moço, passa isso no caixa pra mim?...” 

Pronto: acabou meu dia. O camarada já está enfarruscado com a vida... e agora vem mais esta. Olho para o guri. É um mulatinho de seus 10 anos, com uniforme de escola pública, e mochila às costas. Isso deve ser golpe. A família manda botar farda pra dar credibilidade. Se eu aceitar comprar o biscoito, daqui a pouco ele vem com um litro de Ballantine: “Dá pra passar isso aqui? É pra minha Vó, ela sofre de pressão baixa...” 

Fico me roendo em dúvidas. Por que logo eu, minha Mãe do Céu? Tanta gente aqui dentro, e o moleque vem pedir a mim. Isso é golpe, é esperteza da família. A mãe apronta ele, e aconselha: “Procure alguém que pareça ter bom coração... Aqueles caras com jeito de católico ou marxista, gente que acredita na humanidade...”

Suspiro fundo. “Tudo bem, põe aí.” O guri põe o biscoito e eu lhe dou as costas, vou pegar o filtro de café e descubro que a prateleira agora é de conservas. 

Quando me viro, o que vejo? Lá vem o garoto, empurrando meu carrinho! Acabou-se minha paz. A gente não pode nem ter um gesto humanitário sem que eles queiram logo grudar na gente. 

Este é o meu problema com as virtudes teologais: Fé e Esperança tudo bem, a gente pode exercê-las em paz, no sofá, de braços cruzados, mas a tal da Caridade obriga a gente a se relacionar com desconhecidos. Que mundo!

O menino fica me assessorando à revelia até que por fim passo no caixa, ele agradece feliz e dispara de rua afora com o biscoito na mão. Tomara que esteja mesmo indo para a escola, e não para a boca-de-fumo. 

Tem horas que eu preferiria que um camarada desse me abordasse de canivete em punho, numa rua mal iluminada. Eu teria um bom pretexto para sair correndo e nunca mais olhar para a cara dele. 

Não é pelo preço do biscoito. É por este espinho encravado num lugar que não conheço, remorso de crimes que eu não me lembro, essa pedra de estilingue estilhaçando o espelho-meu. Cai fora, pirralho, não olha sobre o meu ombro enquanto escrevo, que assim eu me desconcentro.