quinta-feira, 24 de junho de 2021

4717) Meu gosto não se discute (24.6.2021)




“Meu gosto não se discute” é a fórmula cômoda que encontrei para encerrar essas eternas discussões sobre “gostei” e “não gostei”, “você tem (ou não tem) o direito de gostar de algo”, “seu gosto não pode servir de mandamento para os outros”.
 
Nenhuma afirmação estética é universal. A estética tem uma forma ramificada que se espalha por toda a variedade de contextos humanos, de experiências humanas, as diferentes sensibilidades de tempos, de espaços. A estética é condicionada pela História, pela Geografia, por tudo que influi na mente individual e coletiva.
 
A experiência humana é rica, variada, divergente.
 
Eu tenho uma fórmula pessoal para avaliar o “Gostei Ou Não Gostei” de todo mundo, inclusive o meu. É uma fórmula simples, que tenta conciliar gostos coletivos e gostos individuais.
 
Digo assim porque todos nós, mesmos os mais individualistas, os mais independentes, os mais personalistas, acabamos obedecendo aos gostos coletivos da nossa época, da nossa classe social, da geração de que fazemos parte, de algum grupo com aspirações a ser diferente e contestador.
 
Como já disse alguém: “tem certas coisas que nós gostamos para que as outras pessoas gostem de nós.” 
 
A fórmula de gosto pessoal que criei é simples:
 
Gosto = parâmetros + prioridades + preferências.
 
Uma grande parte das pessoas defende as próprias preferências (“Eu não assisto filme de terror por nada nesse mundo”, “Meu negócio é comédia e musical”, “Filme pra mim tem que ter crítica social, senão é alienado”, etc.) mas não costuma refletir sobre seus parâmetros e suas prioridades.
 
O que são parâmetros? São os pares de conceitos que nos fazem acolher certas obras e descartar outras. Têm a ver com essa coisa indefinível chamada “qualidade artística”, mas não só com ela. São os nossos conceitos (muitas vezes pouco claros, mal verbalizados) sobre o que é bom e o que é ruim. O certo e o errado. O bem feito e o mal feito. O ético e o antiético. O importante e o irrelevante. O precioso e o banal. O agradável e o incômodo.
 
Vou pegar essa última parelha. Eu vejo as comédias mudas de Buster Keaton ou Chaplin, em primeiro lugar, porque são agradáveis (me fazem rir), e só em segundo lugar pela sua importância na História do Cinema. Vejo as piadas bobas de Chaves e Chapolin pela mesma razão: me fazem rir, me agradam. Mas se eu aplico o critério “importante / irrelevante”, reconheço que Keaton e Chaplin saem ganhando, e que os comediantes mexicanos, que acho simpáticos, não criaram muito, em geral estão apenas desfiando o frango alheio pra fazer estrogonofe.
 
(O que é uma profissão honesta como qualquer outra, e que exerço com satisfação, quando preciso.)
 
Um espectador comum de cinema não precisa pensar nessas parelhas de conceitos, mas um jornalista precisa, sim, porque ele se vê forçado a produzir julgamentos de vez em quando, e precisa justificar seus vereditos.
 
O filme “X” ou “Y” pode ser chato, para o meu gosto, mas pelo parâmetro de “precioso x banal” talvez ele ganhe pontos. Digamos que foi um filme feito em condições precaríssimas, sob censura, registra fatos ou aspectos importantes lá do seu país (Ucrânia, Guatemala, Laos, não importa onde) – e por conta disso eu posso proclamar sua importância e defender sua preservação, mesmo não tendo gostado de vê-lo. Que importância tem o meu gosto? O filme não foi feito para me agradar. Foi feito para ser visto pela humanidade, e há de agradar a alguém. É chato mas é precioso, sim. Para o Cinema.
 
Do mesmo modo, o espectador que vai ao cinema no domingo à noite, para se divertir, tem todo o direito de não gostar de Fellini Oito e Meio ou de They Live! – mas não tem o direito de erigir o prazer dominical dele em critério absoluto e dizer que os filmes são “umas porcarias” e as pessoas que gostam deles são “pseudo intelectuais”.
 
Para ter em mente esses parâmetros, é preciso deixar de ser egoísta e não ver o cinema apenas como um passatempo feito para dar prazer a mim, o reizinho do mercado, de ingresso-comprado em punho. Quanto mais a gente entende os bastidores do cinema, o que é produção, o que é direção, o que é o comércio, a publicidade, as ramificações financeiras e ideológicas dessa indústria bilionária, a gente vai expandindo esse leque de parâmetros.
 
O mero consumidor, é claro, nem liga para isso.
 
Vem então o critério seguinte – prioridades. Em alguns momentos da vida alguns tipos de filmes são mais importantes do que outros. Nas minhas décadas formadoras (1960-1970), filmes de ficção científica, mesmo dos EUA, eram muito raros. Na minha coluna de jornal, eu só faltava implorar: “Pessoal, por favor, vamos dar uma força aos filmes de FC! Todos ao cinema!...”
 
Depois da geração Lucas (Star Wars), Spielberg (E.T., Contatos Imediatos) e outros, esses filmes transformaram a indústria. Nos anos 2000, os filmes de Super-Heróis se transformaram nos grandes blockbusters atuais. Já estão fazendo mais mal do que bem ao cinema. É um cinema de clichês em todo volume, tecnicamente e financeiramente hipertrofiado. Filmes à base de esteróides anabolizantes, concentrados energéticos, e que estão fazendo mais mal do que bem à ficção científica.
 
Ver e comentar filmes de FC deixaram de ser prioridade para mim. Talvez na próxima década o sejam novamente.
 
As prioridades mudam. Eu já fui um defensor do cinema brasileiro na linha do “compre o ingresso, e se não gostar, saia, mas compre pra ajudar”. Já combati as chanchadas da Atlântida, e depois passei a gostar delas. Já detestei o “western spaghetti” italiano, e hoje gosto. Por que? Porque entendi melhor certas coisas, alterei meus parâmetros. E algumas coisas que eram prioritárias deixaram de sê-lo.
 
Finalmente, vêm as preferências, e é nesse território que a maioria das pessoas navega: é o território do “gosto disso, não gosto daquilo”. Curiosamente, as nossas preferências são os nossos critérios mais óbvios, mais evidentes – e mais obscuros. Gosto porque gosto, dizem as pessoas, e a auto-análise se detém aí. Quando não encalha em tautologias do tipo “gosto porque é bom”.
 
Eu admiro o realismo literário e cinematográfico, mas tenho uma preferência pelas histórias que a todo instante estão botando o pé no impossível, no bizarro, no estranho, no fantástico. Por que? Não sei. Vem desde a infância. Mesmo no auge da minha admiração pelo Neo-Realismo italiano, quando vi muita coisa de Vittorio de Sicca, Rossellini, os primeiros filmes de Fellini, Antonioni, Pasolini, etc., me dava uma certa impaciência quando tudo se resumia àquela “vidinha besta”, como dizia Carlos Drummond. Os melhores filmes dessa turma, para mim, são os mais fantasiosos. Por que? Não sei. É a qualidade da imaginação, do aparecimento de algo improvável, imprevisto, impossível.
 
Quem escreve na imprensa tem a mania de colocar suas preferências como parâmetro geral. “Eu não gosto de musicais. Esse filme é um musical. Portanto, não deveria ter sido feito, nem exibido, nem assistido.” Críticos de cinema fazem isso o tempo todo.
 
Tudo isso vale não apenas para o cinema, é claro. Vale para literatura, para música, para qualquer tipo de arte, porque na arte existe justamente esse entrançamento entre critério pessoal e critérios coletivos. Nunca poderíamos ler tudo, assistir tudo, então somos forçados a escolher, e escolhemos o que achamos agradável, ou importante, ou enriquecedor...
 
Ou então escolhemos na base da boiada, do impulso coletivo, vamos ao cinema porque é com nossa turma, lemos um livro para conversar nas festas com os amigos.
 
O que também não está errado, pois é assim que nos alimentamos de outras opiniões, outros conceitos, vemos como é que pessoas diferentes de nós reagem diante disso ou daquilo. Nunca existe um “gosto pessoal” 100% individualista. Somos sempre um reflexo do nosso mundinho, que por maior que seja é sempre pequeno, porque é do tamanho do que conhecemos.