terça-feira, 20 de maio de 2008

0403) Treze x Campinense (4.7.2004)










De passagem por Campina Grande dias atrás, acabei indo ao Amigão no domingo para ver a decisão do campeonato paraibano entre Treze e Campinense. Eu não pisava no estádio há uns quinze anos. Como moro longe, minhas idas a Campina nem sempre coincidem com algum jogo que valha a pena ver. Quando eu tinha 15 anos ia ver até Treze x Red Cross, ou Treze x Vovozinhas, mas a passagem das décadas nos torna mais exigentes. O jogo foi bom, o resultado (2x2) foi justo, e o Treze, que precisava vencer por 2 gols de vantagem, poderia ter sido campeão se tivesse forçado mais depois que abriu o placar. Bobeou, e deixou a Raposa empatar com um pênalte duvidoso. No segundo tempo o goleiro deu sua segunda saída em falso e levou um gol por cobertura (que me lembrou um gol que o rubronegro Nogueira fêz em 1964 no Treze, em outro 2x2, no Estádio Municipal). Quando o Galo voltou a empatar, já não adiantava muita coisa.

Disseram-me que há muitos anos Treze e Campinense não decidiam um título estadual, e vejo na decisão deste ano um prenúncio de que o futebol da Serra vai viver dias melhores. Existe no futebol brasileiro uma corrente de pessoas que quer acabar com os campeonatos estaduais, dando ênfase às disputas das séries B e C do campeonato brasileiro. Nada tenho contra estas séries, mas sou contra o fim dos estaduais. Tirem pelo exemplo do campeonato carioca, que acompanho religiosamente todos os anos. As rivalidades locais ainda são um poderoso fator de mobilização da torcida e dos times, o que resulta em estádios cheios e jogos bem disputados. Aqui no Rio, quantas vezes vi o Flamengo estropiado, deficitário, caindo pelas tabelas, reerguer-se durante o campeonato carioca e ganhar uma sobrevida que, bem ou mal, o mantém respirando até o final do Brasileiro. Como diz um flamenguista amigo meu, ganhar do Real Madrid pode ser “a glória”, mas ganhar do Vasco não tem preço.

Treze x Campinense é o grande clássico do futebol paraibano, que me desculpem os torcedores do Botafogo, do Auto Sport e das demais equipes. É um jogo que faz a cidade inteira ficar na ponta dos cascos, e produz uma corrente elétrica que faz a atmosfera da Serra crepitar de excitação. É o nosso Fla-Flu, o nosso Ba-Vi, o nosso Gre-Nal. Quando voltei a ver estes dois times em campo, num estádio cheio de bandeiras ao vento e com os gritos de guerra entrecruzando-se no ar, senti um nó na garganta, e não foi um nó de saudosismo. Pra falar a verdade, eu nem me lembrei que já tinha passado por tudo aquilo antes, mais de cem vezes. Era como se fosse a primeira. Achei a torcida do Treze meio contida, talvez com pouca confiança na “missão impossível” da equipe. A do Campinense estava previsivelmente eufórica, bradando seus slogans ensaiados, parecendo um bloco de axé-music, com seus abadás e suas mamãe-sacode. É bonita a nossa festa, pá. A Raposa estragou o final, mas quem tem com que me pague não me deve nada.

0402) Valei-me meu São João (3.7.2004)



Forró", gravura de Paulo Brabo,

http://www.baciadasalmas.com/

Será que o forró vai se acabar? Acho que a única resposta para isto é a fórmula zen de Mestre Fuba: “Penso que sim, mas acho que não”. É cedo para dizer. Têm surgido cantores e compositores que enriquecem a música cultivada por Jackson do Pandeiro, Dominguinhos, Marinês, Luiz Gonzaga. Tenho aqui do lado, sobre a mesa, CDs que trouxe de minhas recentes viagens ao Nordeste: instrumentistas como Edmilson do Pífano e Silveirinha lançando seus primeiros discos, cantores como Santana e Maciel Melo reafirmando trabalhos anteriores. Por falta de talentos é que não vai ser.

Por outro lado, toda vez que eu boto o pé no Nordeste a primeira coisa que faço é ficar olhando os out-doors que anunciam os shows juninos. Aí começa a praga. É Banda Isso, Banda Aquilo... Quando alguém chama um grupo musical de “banda” você pode apostar sua carteira, com documentos e tudo, como aquilo não tem nada a ver com forró. A programação junina do Nordeste virou uma espécie de Praça da Apoteose da axé-music e dos sertanejos paulistas. Se um turista vier ao Nordeste neste período do ano, vai voltar para a Escandinávia dizendo que os maiores ídolos do forró nordestino são Leonardo e a dupla Zezé de Camargo & Luciano.

Vejam bem: não sou inimigo desse pessoal. São meus colegas. São cantores e compositores profissionais, que ganham a vida honestamente. Não gosto da música que eles fazem, mas gosto é gosto. Minha crítica não tem a ver com qualidade, e sim com adequação ao período junino. Por mim eles poderiam cantar na Paraíba todo mês, de janeiro a maio, e de julho a dezembro. Por que não? Têm seus fãs, têm seu público, que é numeroso e tem todo o direito de se divertir cantando as canções com que se identifica. Por mim tudo bem. Mas a presença desses artistas numa programação junina é um erro. Não é um erro deles, porque seu trabalho é oferecer seus shows a quem quiser contratá-los. O erro é de quem os contrata. É o mesmo que promover um baile de carnaval e contratar a Filarmônica de Berlim para tocar Beethoven.

Sou contra a presença dessas Banda Não Sei O Quê no São João como seria contra a presença de artistas que admiro: Milton Nascimento, Chico Buarque, João Gilberto. Não têm nada a ver com forró, então o que diabo iriam fazer numa programação junina? Se Bob Dylan fosse escalado para cantar no Parque do Povo em junho, eu diria: “Sou contra. Pra cantar no São João, eu prefiro Flávio José.”

O mês de junho deveria ser, em todo o Nordeste, uma reserva de mercado para a música regional. Nisto não entra nenhum chauvinismo, nenhuma xenofobia: que se usem os outros onze meses do ano para mostrar de tudo, de rock americano a vocalistas búlgaros, de sertanejos paulistas a reggae da Jamaica. Mas não custa nada reservar o mês de junho para lembrar aos nordestinos o que eles são de verdade, por baixo das roupas de butique, dos modismos de TV e das gírias de shopping center.

0401) Sob o domínio do medo (2.7.2004)





Quando eu tinha dez anos, lia muitas revistas de terror em quadrinhos. Houve uma história que me impressionou muito: um explorador voltava da África meio adoentado, por ter sido picado por uma aranha venenosa. Tempos depois, suas unhas das mãos começaram a inchar e a doer muito. Manchas negras apareceram embaixo delas; as unhas incharam até despregar-se parcialmente dos dedos, e dali de baixo emergiram aranhas negras, vivas, iguais à que tinha picado o explorador. Esse ciclo monstruoso de reprodução durou até que ele suicidou-se. Tempos depois, levei uma pancada num dedo que criou o famoso calo-de-sangue. Não descreverei aqui as noites de horror que passei em claro, olhando para aquilo, esperando a primeira aranha brotar.

Cresci. Leituras imoderadas dos folhetins franceses de Ponson du Terrail e Michel Zevaco me conscientizaram dos perigos de ser enterrado vivo devido a um ataque cataléptico. Como o personagem de “O enterramento prematuro”, de Edgar Allan Poe, passei anos tentando planejar táticas para entrar em contato com a superfície, caso um belo dia despertasse no interior escuro e abafado de um ataúde. Num dos dicionários do meu pai descobri nome desse meu medo: tafofobia. Não melhorei nada após ler um conto (“Crime no túmulo”, de Edmond Hamilton) em que um cara trabalha num parque de diversões como enterrado vivo (num ataúde metros abaixo do solo, com janela de vidro e respiradouro) e um inimigo acha um jeito de fazer uma cascavel descer lá pra baixo.

Aos 15 anos, lendo um daqueles livrinhos policiais da coleção “FBI” (eu sonhava em ser agente do FBI quando crescesse), fiquei sabendo de um golpe mortal, que é quando se atinge a vítima no “apêndice xifóide”, aquela pequena protuberância óssea na parte inferior do esterno, onde as costelas de juntam no meio do tórax. Dizia-se no livro que bastava quebrar aquela ossinho para o sujeito morrer instantaneamente, pois a ponta penetrava no coração. Perdi a conta dos gols que deixei de marcar nas minhas peladas subseqüentes: eu tinha dificuldade em matar a bola no peito, com medo que ela quebrasse meu apêndice xifóide.

Hoje, com mais de cinquenta anos, enfrento a velhice com destemor. Faço meu checape anual. Tenho pequenos problemas: o colesterol-bom está baixo (falta de exercício). Tenho uma calcificação na coluna, que às vezes incomoda pra caramba. Devido a fatores genéticos e alimentares, estou no grupo dos que correm o risco de morrer de câncer ou de enfarte. Se tenho medo de morrer? Morro de medo. Mas creiam-me, já superei problemas maiores. Qualquer indivíduo que já leu quantidades industriais de textos de Lovecraft, Kafka, Benoit Becker, Stephen King ou Bram Stoker fica – como direi? – meio realista para com os males da vida real. Existem, e são temíveis. Mas nada é mais temível do que o mal que só existe na nossa imaginação.




0400) Chico Buarque de Hollanda (1.7.2004)



Em minha recente passagem por João Pessoa, autografei meu livro Páginas de Sombra no Parahyba Café, numa noite em que, por misteriosa sincronicidade, estava marcado um recital de homenagem a Chico Buarque de Hollanda, que está completando 60 anos. Como eu também estou me aproximando dessa idade, achei por bem dar uma força ao novo sexagenário da praça, por solidariedade prévia, e cantei ao violão algumas das primeiras músicas de Chico que aprendi ao violão, numa adolescência que já me parece tão remota quanto a era dos assírios e caldeus.

O Globo fêz um caderno especial sobre Chico, onde há uma enquete sobre a música preferida de cada um dos entrevistados. Se eu tivesse de indicar uma, indicaria “Olê Olá”, uma canção que muita gente não deve conhecer. É do primeiro disco lançado por Chico, em 1966, e foi provavelmente a primeira música que o vi cantar, em algum programa de TV, na roupa e na pose obrigatória da época: black-tie, perna direita apoiada no banquinho, violão em punho. Era assim que ele entoava os primeiros versos da canção: “Não chore ainda não, que eu tenho um violão, e nós vamos cantar... Felicidade aqui pode passar, e ouvir, e se ela for de samba há de querer ficar...” É a melhor música de Chico? Não interessa. O conceito de “o melhor” é um dos mais desnecessários em arte. A música preferida é aquela com que a gente se identifica mais.

Um aspecto do Chico compositor que me parece pouco abordado é o que eu chamaria “as canções construções”, canções que fazem brincadeiras com a estrutura do conjunto letra-melodia. (Não sei se vocês já perceberam que fazer letra de música é muito mais difícil do que fazer poema de livro. Por isso que a esmagadora maioria das letras de música é tão ruim.) O exemplo mais óbvio é “Construção”, com sua estrutura de frases recorrentes, sua obrigatoriedade de conclusão com palavras proparoxítonas (que servem como um enriquecimento do conceito de rima) e depois o rodízio destas palavras, na repetição dos versos.

Um samba pouco conhecido mas brilhante é “Corrente”: “Eu hoje fiz um samba bem pra frente / Dizendo realmente o que é que eu acho...” A letra é um conjunto de estrofes de 2 versos (1+2, 3+4, 5+6, etc.), e a partir da metade os versos são repetidos na mesma ordem, mas com outra conexão (2+3, 4+5, etc.), o que altera por completo o sentido da letra, sem que uma só palavra seja mudada. O que era uma letra de louvor ao samba torna-se uma letra crítica (a música é de 1976). Curiosa também é a estrutura de “Pelas tabelas”, em que ele usa a última sílaba do último verso como primeira sílaba do primeiro verso da estrofe seguinte (como ocorre naquela musiquinha, “Coelhinho, se eu fosse como tu...”). Chico fêz letra bilingüe (“Joana Francesa”), fêz duas letras para a mesma música (“O que será”)... ninguém na MPB fêz tantas experiências (e com tal qualidade) com as possibilidades da letra da canção popular.

0399) Mário Schenberg (30.6.2004)



Costuma-se dizer que alguns dos homens mais influentes na história da humanidade nunca escreveram um livro: Sócrates, Buda, Jesus Cristo. Para nossa civilização tão dependente da palavra escrita parece difícil ser um Mestre sem ter produzido um calhamaço de ensinamentos, mas os exemplos são numerosos. Um caso bem curioso e bem brasileiro é o do físico Mário Schenberg, um dos nossos cientistas mais anti-convencionais e mais influentes. O pensamento de Schenberg, generosamente distribuído com seus alunos ao longo de décadas de ensino e pesquisa, nunca foi posto no papel por ele próprio. Schenberg não escreveu livros, mas depois de sua morte em 1990 seus discípulos têm se dedicado à tarefa de organizar suas idéias, sua visão do mundo e do papel do cientista, em livros como Pensando a Física e Pensando a Arte (Nova Stella Editorial), e Voar Também é com os Homens, organizado por José Luiz Goldfarb (Edusp).

Apesar de ter se dedicado por décadas à vida acadêmica, Mário Schenberg nunca foi um intelectual fechado num gabinete, e é um dos poucos brasileiros de quem pode-se dizer que se dedicaram com a mesma intensidade à Ciência, à Política e à Arte. Foi eleito deputado pelo Partido Comunista; cassado, impedido de lecionar, passou anos ganhando a vida como crítico de arte. Nos três domínios em que atuou, Schenberg sempre foi um sujeito imprevisível, com idéias próprias que muitas vezes iam de encontro à ideologia dominante. Não são muitos os cientistas capazes de dizer, como ele: “Tenho experiências extremamente estranhas, sobretudo experiências de identificação com pedras, árvores e plantas. Essa experiência às vezes é muito intensa, muito violenta, especialmente com as árvores e as pedras. Acho que tenho uma capacidade de viver certas experiências sem recalques, experiências que talvez em outras pessoas estejam recalcadas.”

Suas aulas eram muitas vezes conferências improvisadas, sobre um assunto escolhido de antemão. Em vez da costumeira aula previamente preparada na “ficha”, ele costumava anunciar um tema e começar a discorrer sobre ele, em voz pausada, com os olhos semicerrados, como se estivesse visualizando a extensão inteira do assunto que abordava e escolhendo, meio de improviso, os aspectos que naquele momento lhe interessava destacar, para aquele grupo específico de alunos. Dizia ele: “Sou uma pessoa de tendências intuitivas, não sou de muito raciocínio. Comporto-me como a minha intuição me sugere, desde a maneira de dar uma aula. Posso ter preparado a aula e, ao chegar à sala, mudar completamente, porque na hora surgiu outra idéia, e vou atrás daquela do momento, que me fascina mais.” É um tipo de aula que, decerto, só funciona com um grupo de alunos capacitados para acompanhar o professor nesses vôos de imaginação em busca da solução de um problema. Schenberg não era, certamente, o professor indicado para aqueles alunos que erguem o dedo e perguntam: “Vai cair na prova?...”

0398) O telefone de Gilberto Braga (29.6.2004)



(A Arca Russa, de Alexander Sokurov, Rússia, 2002)


Numa entrevista de semanas atrás, Gilberto Braga, o autor de “Celebridades”, comentou: “Recentemente eu fui criticado porque alguns personagens procuram outros pessoalmente quando na vida real se telefonariam. Respeito a crítica, mas não me acho errado. Se a gente escrever realisticamente, cada personagem vai passar metade de seu tempo ao telefone.” GB está coberto de razão. Discute-se muito o que é ou não realista na arte da narrativa, mas raras vezes se desce a este nível de detalhe quase imperceptível. E é justamente daí que brota grande parte da impressão de realismo passada ao leitor ou espectador.

O Realismo é uma otimização do que acontece na vida real, e não uma transposição passiva. É uma otimização no sentido de ganhar tempo, de simplificar ações a bem da fluência narrativa, ou de omitir os momentos em que nada acontece. Esta otimização também implica em abrir mão de situações verossímeis, mas entediantes, e substituí-las por situações que não são bem o que aconteceriam na vida real, mas rendem mais em termos dramatúrgicos. O próprio GB justifica sua escolha dizendo que faz assim “para que a cena saia mais agradável de se ver.”

A Arte da Narrativa (cinema, teatro, romance, etc.) está para a vida real assim como os “Melhores Momentos” estão para os 90 minutos de um jogo de futebol. A Narrativa é sempre um encadeamento do que teria acontecido de relevante naquela história, entremeado com alguns momentos banais para dar efeito de ritmo e de contraste. Nunca é uma transcrição ao pé da letra da vida real. Claro que já se fizeram muitas tentativas de “realismo ao pé da letra”. Há filmes em tempo real, ou seja, filmes que duram na tela o mesmo tempo dos acontecimentos narrados; mas mesmo isto só é conseguido subindo-se a um degrau mais alto de artificialismo. Matar ou Morrer, o faroeste clássico de Fred Zinemann, é um filme minuciosamente escrito e montado de propósito para durar uma hora e meia, o tempo exato de duração da história. O recente A Arca Russa mostra um plano-seqüência de uma hora e meia ao longo do Museu Hermitage, mas tudo que acontece ali mostra uma orquestração de esforços de complexidade quase inimaginável. Ou seja: aquilo não é a-vida-como-ela-é. É tudo muito menos realista do que “Celebridades”.

Um dos paradoxos mais curiosos da Narrativa é esta necessidade de artificializar as coisas para que elas pareçam naturais. Vemos um filme com olhos diferentes dos que usamos para ver a rua por onde caminhamos todos os dias. Se os personagens da novela ficassem falando ao telefone o tempo todo as cenas não seriam apenas menos agradáveis de ver: elas nos passaram a impressão de uma realidade diluída, frouxa, sem dinamismo. Esperamos de uma Narrativa, mesmo a de um novelão de TV, uma certa compactação de ações, de tempos e de espaços. Narrar é cortar 90% e encadear os 10% que nos dêem a ilusão de ter visto o total.

0397) O projeto “Gato infinito” (27.6.2004)



A Internet tem coisas que ninguém mais duvida. Mike Stanfill, um ilustrador e designer residente em Dallas (Texas), criou o projeto “The Infinite Cat”, uma dessas simpáticas excentricidades que não poderiam existir num mundo desprovido da rede eletrônica. Mike descreve a si mesmo como um cara competente em “qualquer coisa que envolva um computador e uma imaginação ativa”. Em seu saite pessoal, ele fornece amostras de seu trabalho gráfico, e um link para o Projeto do Gato Infinito.

A fórmula do projeto, pelo que pude ver, é bem simples. Um cara mandou para Mike uma foto digital de seu gato, “Frankie”, ao lado de uma flor. Outro amigo fotografou seu próprio gato olhando essa foto de “Frankie” no monitor. Outro fêz a mesma coisa com a foto deste segundo gato, e aí começou a corrente. Cada pessoa recebe a foto do gato anterior, coloca-a em seu próprio monitor, e fotografa seu próprio gato olhando para ela. Mike define o projeto de uma maneira simples: “Gatos olhando gatos olhando gatos”. Em algumas das fotos que vi dá para ver até seis gatos olhando-se em série, cada qual menor do que o anterior, desaparecendo num infinito de caixas dentro de caixas. Pode haver fotos com maior alcance, mas confesso que não vi tudo. No dia em que escrevo estas linhas, o Projeto está no Gato 158, e não tenho tempo para conferir.

O saite fica em: http://www.infinitecat.com/ . Cada foto de um gato está numa página individual, com links que você pode clicar para ver o “Gato Anterior” e o “Próximo Gato”. Direis agora: “E pra que diabo isso tudo?” E eu responderei: não faço a menor idéia, até porque detesto gatos (ver “Gatos e cachorros”, 8.4.2004). Acho uma bobagem e uma perda de tempo, mas a minha mente racionalista e pragmática me adverte que não é bem assim. É uma atividade lúdica – algo que se faz por prazer, por diversão, e pela sensação de estar produzindo algo que tem uma dimensão, embora mínima, de interesse humano, de beleza, e de habilidade técnica. E uma criação que preencha estes três requisitos não pode nunca ser totalmente inútil.

Isso me lembra a Matemática. A Matemática é uma linguagem abstrata que vale apenas pela beleza e pela eficiência técnica dos resultados que atinge, e dos raciocínios que desenvolve. Para que vai servir um teorema, uma fórmula de solucionar um trinômio? O matemático não sabe. Mas um dia acaba servindo. A história da Física, por exemplo, está repleta de casos em que um conjunto de fórmulas matemáticas existentes há anos, e para as quais ninguém descobrira uma utilidade prática, revela-se crucial para descrever e interpretar fenômenos do mundo sub-atômico ou da formação das estrelas. O projeto de Mike Stanfill coloca lado a lado o gato (graça felina, animalidade intensa, mistério, imprevisibilidade, crueldade, beleza) e o computador (frieza tecnológica, precisão, aura futurista, poder de manipulação do Real). Podem ser o Yin e o Yang da síntese final do Universo.