sexta-feira, 18 de novembro de 2016

4180) "Sarapalha" (18.11.2016)



(Vau da Sarapalha, com o grupo paraibano Piollin)

O terceiro conto de Sagarana (1946) de Guimarães Rosa, que está completando 70 anos de lançamento, acabou alcançando grandes públicos meio século depois, por vias transversas, ao servir de inspiração para uma das montagens mais bem sucedidas do teatro paraibano: Vau da Sarapalha, pelo grupo Piollin, com direção de Luiz Carlos Vasconcelos e interpretações de Everaldo Pontes, Nanego Lira, Soia Lira, Servílio de Holanda e Escurinho.

É a história de dois homens que vivem num sitiozinho entre as ruínas de um povoado extinto pela malária, à beira rio:

“O rio – que não tem pressa e não tem margens, porque cresce num dia mas leva mais de mês para minguar”.

Primo Ribeiro e Primo Argemiro passam o dia sentados, tremendo de sezão, tomando quinino, delirando. Além disso, ambos amargam a partida de Luísa, mulher de Ribeiro, que um dia partiu com um boiadeiro no trem-de-ferro. No dia em que ocorre o conto, Primo Argemiro recorda o amor secreto que tinha sentido pela mulher do outro, e depois, no meio do delírio, fala disso em voz alta. Primo Ribeiro se ofende, e o expulsa das suas terras.

O conto se resume a isso, dois homens tresvariando de cócoras, tremendo do frio da maleita e depois suando copiosamente, porque ali “a febre serve de relógio”. Em volta deles, a Natureza invencível toma conta devagarinho do que restou do sítio:

“Aí a beldroega, em carreirinha indiscreta – ora-pro-nobis! ora-pro-nobis! – apontou caules ruivos no baixo das cercas das hortas, e, talo a talo, avançou. Mas o cabeça-de-boi e o capim-mulambo, já donos da rua, tangeram-na de volta; e nem pôde recuar, a coitadinha rasteira, porque no quintal os joás estavam brigando com o espinho-agulha e com o gervão em flor.”

Essa proliferação vegetal e barroca, viva como num desenho animado, vem temperada por uma das grandes novidades que Rosa introduziu no romance regional: o olho literário urbano, informado de cultura pragmático-livresca, revelado assim como quem não quer nada, sem alarde.

As cobras dágua passam “em nado de campeonato”, um cachorro tem um “focinho cúbico”, os mosquitos fêmeas zunem “em tom de dó” e os machos “uma oitava mais baixo”. Detalhes e comparações que um regionalista tradicional, preocupado em reproduzir o espírito dos capiaus, não ousaria inserir.

O tema da ida-e-volta (“For a walk and back again”, na epígrafe do livro) perpassa praticamente todos os contos de Sagarana:



Aqui, ele está presente na ida-embora dos habitantes do povoado, na fuga de Luísa com o boiadeiro, na própria morte que se avizinha: “Tudo tem que chegar e de ir s’embora outra vez... Agora é a minha cova que está me chamando...”. Está na desorientação do cachorro Jiló quando, após a briga dos primos, Argemiro parte pela estrada e o outro fica, deixando a lealdade do cachorro dividida e perplexa:

“O perdigueiro de focinho grosso vem correndo também. Vem, mas diz que não vem: vira a cabeça, olha para primo Ribeiro, que lá está sentado ainda, curvado para o chão. O cachorro está desatinado. Para. Vai, volta, olha, desolha... Não entende.”

Outro tema eterno de Rosa é a arte da narrativa, a contação de histórias. Aqui, esse tema aparece quando Argemiro conta pela milésima vez a Ribeiro a historinha sobre uma moça que é roubada por um “moço-bonito que apareceu, vestido com roupa de dia-de-domingo e com a viola enfeitada de fitas”. O moço-bonito é “o capeta”; o furto da moça espelha o furto de Luísa, e maltrata a lembrança do marido traído.

O mais interessante, contudo, é que essa história, claramente da tradição oral, é concluída por Argemiro numa ramificação de possibilidades:

“Aí a canoinha sumiu na volta do rio... E ninguém não pôde saber pra onde foi que eles foram, nem se a moça, quando viu que o moço-bonito era o diabo, se ela pegou a chorar... ou se morreu de medo... ou fez o sinal-da-cruz... ou se abraçou com ele assim mesmo, porque já tinha criado amor...”

Um final múltiplo que lembra experiências como as de John Fowles (A Mulher do Tenente Francês, 1969) ou de Alain Robbe-Grillet (La Maison de Rendez-Vous, 1965).

Tem outros detalhes que deixam a gente matutando. A certa altura, Primo Ribeiro diz: “Agora mesmo, ‘garrei a ‘maginar...” Posso estar delirando também, mas acredito ver nisso um eco da letra da famosa “Maringá” de Joubert de Carvalho:

Maringá, Maringá...
Depois que tu partiste
tudo aqui ficou tão triste
que eu ‘garrei a ‘maginar...

A canção é de 1932. Quando Sagarana chegou às livrarias, em 1946, ela estava no auge do sucesso – tanto é assim que a cidade paranaense (fundada em 1947) ganhou esse nome porque diz-se que os operários construtores a cantavam dia e noite.

Rosa afirmou, numa carta famosa a João Condé, ser este o conto de Sagarana de que ele menos gostava. Pelo clima mórbido, doentio?  Não dá pra saber. Mas eu sinto “Sarapalha”, apesar do clima “pra baixo”, como um dos seus contos com presença mais exuberante da Natureza (superado apenas por “São Marcos”, do mesmo livro).

Em certos momentos, os dois primos (“dois velhos – que não são velhos”) lembram, mais do que dois doentes, dois drogados perdidos numa Cracolândia rural.  Dois junkies eternamente de cócoras, chapadões, no presente imóvel que a droga proporciona. A malária se transforma no seu barato, com a febre pontualíssima, o desvario manso em que Ribeiro tem visões ominosas: “Passam umas mulheres vestidas de cor de água, sem olhos na cara, para não terem de olhar a gente...”

Resíduos certamente das experiências de Rosa como médico de roça, misturando aqui a epifania desumana da doença e o amor entrançado ao sofrimento e à humilhação (“Pra que é que há de haver mulher no mundo, meu Deus?!”).

Droga, amor, doença, Natureza, tesão, sezão:

“Disse que a maleita era uma mulher de muita lindeza, que morava de-noite nesses brejos, e na hora da gente tremer era quem vinha... e ninguém não via que era ela quem estava mesmo beijando a gente... (...)  O começo do acesso é bom, é gostoso: é a única coisa boa que a vida ainda tem. (...) – Mas, meu Deus, como isto é bonito! Que lugar bonito pra gente deitar no chão e se acabar!... / É o mato, todo enfeitado, tremendo também com a sezão.”

Ao fim e ao cabo, para um jeca-tatu no fim da vida e sofrendo de dor-de-corno, não existe muita distinção entre os infernos da Natureza e os paraísos artificiais.