
Faleceu no mês passado, no Rio Grande do Norte, uma mulher de 85 anos considerada por muita gente a maior romanceira do Brasil. “O que diabo é romanceira?”, pergunta o Brasil, este país que vive a perguntar e responder a si próprio. E responde: Romanceira é uma mulher que recita de cor romances em versos com séculos de idade, romances cujo autor ninguém sabe nem precisa saber (um conceito bastante pós-moderno de literatura), romances que ela aprendeu na infância ao ouvi-los recitados por uma outra romanceira de 80-e-tantos anos cujo nome, infelizmente, não ficou registrado. E talvez não fosse preciso.
A cultura oral brasileira é feita assim, por pessoas sem rosto e sem nome, mas que passam adiante uma tradição. Comparada à imensa maioria das nossas romanceiras, Dona Militana Salustiano é uma Madonna. Gravou um CD triplo acompanhada por artistas variados (de Gereba a Antonio Nóbrega), recitou em teatros pelo Brasil afora (vi-a ao vivo uma única vez, em São Paulo, no SESC Pompéia), foi louvada na imprensa. Que bom. Através dela foi exibida e louvada uma multidão indistinta de velhinhas com dicção precária e memória inquieta, capazes de recitar sem pausa um romance de centenas de versos, salmodiados numa cantiga monocórdia igualmente sem autor conhecido.
Essas velhas romanceiras são personagens de uma história de ficção científica brasileira, versão oblíqua do romance Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, filmado por François Truffaut. Nesse livro-filme, uma sociedade futura, totalitária, proíbe os livros e obriga todo mundo a assistir TV interativa. A população emburrece; os dissidentes são rastreados pelos bombeiros (uma espécie de polícia secreta) que incineram os livros guardados clandestinamente. Os dissidentes encontram um recurso: passam a guardá-los na memória. Cada pessoa decora um livro, e antes de morrer recita-o em voz alta para alguém jovem que se encarregará de manter viva a obra desse autor (Tolstoi, Jane, Austen, Balzac, etc.).
Dona Militana viveu numa sociedade em que o romance tradicional não era proibido, mas era menoscabado. A censura que sofreu não foi a da perseguição, mas a do desdém. Os romances que sabia de cor não eram considerados subversivos, eram considerados “coisa de gente velha, de gente pobre”. Velha e pobre como realmente foi, ela se sabia depositária de um tesouro, que protegia não por seu valor teórico, mas pelo valor afetivo que lhe atribuiu, de tão ligado que estava às suas memórias mais remotas de menina.
O CD Cantares, produzido pela Fundação Hélio Galvão, de Natal, teve uma tiragem de mil exemplares (já esgotada). Tem 52 faixas, o que parece muito até para um disco de Madonna, mas talvez seja pouco diante dos 800 romances que Dona Militana, ao que se diz, sabia de cor. Que imenso acervo se perdeu, pensamos. Ou talvez não. Sendo o Brasil o que é, quem nos garante que não existam mais dez, mais cem Donas Militanas nas filas do SUS de nossas cidades?