sexta-feira, 15 de novembro de 2024

5123) Eles passarão (15.11.2024)



 

Quando  ando pelas ruas do centro da cidade, aquele rio de gente, aquelas correntezas contrárias que se entrelaçam tão bem, nunca deixo de pensar como seria aquele trecho de calçada cinquenta anos atrás, cem anos atrás, duzentos. A calçada estava ali, e quem passava por ela passou sem deixar rastro, como a sombra de um pássaro na água de um rio. 

 

Entro num ônibus cheio, num vagão de metrô, fico olhando aqueles rostos, e penso comigo: “Eles passarão.” Passaremos todos, pelo que me consta. Passarão inclusive os passarinhos que cantavam ao ouvido do poeta Quintana. E o poeta os entendeu tanto que voou também. 

 

Os poetas, os artistas criadores em geral, têm a chance de deixar uma sobra, uma imagem, um resíduo de si mesmos. A obra não é a pessoa, mas por isto mesmo tem direito a uma existência própria, num mundo à parte. Shakespeare e Machado de Assis já se dissolveram em moléculas; de sua pessoa, deixaram lembranças de lembranças de lembranças, que a cada transmissão tornaram-se mais esmaecidas. Ou mais autônomas. 

 

A obra ficou, e é de natureza a ficar ainda mais. 

 

Pessoa e obra permanecem ligadas por um laço invisível qualquer. Como aquelas partículas sub-atômicas ligadas pelo que os físicos chamam de “conexão não-local”. Duas partículas que foram submetidas juntas a tais-e-tais medições e experimentos tornam-se uma espécie de espeho ou reflexo uma da outra. Há entre elas uma conexão, uma conexão que não sabemos como funciona, sabemos apenas que está ali. O que acontece a uma acontece à outra, mesmo que estejam a um milhão de quilômetros de distância. 



Com o Artista e a Obra ocorre uma conexão ainda mais misteriosa do que esta. Uma das partículas morre; deixa de existir; a matéria de que se compunha está agora “anônima e dispersa”, como dizia o poeta. Restou apenas a segunda partícula, a Obra, e aí ocorre algo estranho. Por um lado, cada nova descoberta que fazemos sobre o Artista se reflete na nossa percepção da Obra, e cada nova descoberta que fazemos sobre a Obra muda, aos nossos olhos, a idéia da pessoa do Artista

 

Nossa primeira impressão, lá atrás, era de que após a morte do Artista ele vai para o reino do Nunca Mais, e a Obra transpõe o portão do Para Sempre.  É meio assim, mas não totalmente assim. Os dois continuam como se vivessem juntos, e toda luz que se projeta sobre um deles lança algum reflexo sobre o outro. 

 

O poeta Capinam dizia, numa canção antiga gravada por Maria Bethânia: 

 

As coisas passam, e eu quero

é passar com elas...




(José Carlos Capinam)


O ser humano sonha em ser imortal, e os nossos acadêmicos literários criaram esse mito inofensivo de que a Academia imortaliza alguém – no sentido de que pelo menos a segunda partícula, a Obra, jamais morrerá. 

 

Porque a imortalidade física deve ser um fardo injusto, uma maldição. Em toda a literatura não me lembro de um só imortal que seja feliz. Não que a felicidade deva ser um objetivo obrigatório, mas esses personagens parece que a procuram, sim, procuram-na com ansiedade e angústia, e a procuram primeiramente recusando-se a morrer – e aceitando para isto qualquer pacto, qualquer beberagem, qualquer turbinação high-tech. 

 

Tim Powers, o autor de Os Portais de Anúbis (1983) e O Palácio dos Pervertidos (1985), usa a imortalidade como recurso dramatúrgico em seus romances fantásticos, mas com um certo calafrio quanto a essa perspectiva: 

 

Muitos autores neste gênero literário se inscreveram em algum desses projetos onde eles cortam sua cabeça depois da morte e a congelam, confiando na teoria de que daqui a 100 anos ou daqui a 500 a ciência será capaz de descongelá-la e providenciar seu transplante para um clone mais jovem. Muita gente pensa, instintivamente: “Ah, eu quero!...”. Eu, instintivamente, penso: “Que pesadelo. Eu faria qualquer coisa para escapar disso.” 

(Locus, fevereiro de 2002, trad. BT) 

 


Penso no protagonista do conto “O Imortal” (1882) de Machado de Assis, o homem que tomou a poção do pajé e ficou com a possibilidade de ser eterno. Viveu duzentos anos. Enfastiou-se da vida. enfastiou-se tanto quanto quem vive setenta, e resolveu seu problema com um recurso que deixo para os que não leram ainda esta história inquietante, uma das melhores de nosso conto fantástico. 

 

Diz a literatura vampiresca que os nosferatus são quase imortais. Podem ser mortos com estacas, alho, luz do sol, etc., mas se nada disto ocorrer durarão para sempre. 

 

Um aspecto que me assusta nos vampiros nem é sua ferocidade, é a aterrorizante velhice que eles transpiram. Séculos de egoísmo, solidão e idéia fixa. O imenso desdém que adquirem pelos seres humanos, vistos não apenas como fonte de alimentação, mas também como criaturas que nascem, piscam o olho, e desaparecem. Que outro valor tem, para um vampiro, essa nuvem de insetos, cuja vida dura apenas o tempo de torná-los importunos? 

 

Quem quiser que pense em Brad Pitt ou Tom Cruise, quando lembra os vampíros; Hollywood está aí para isso mesmo. Eu penso nos dois vampíros mais verossímeis do cinema, a criatura-gêmea que encarnou no Max Schreck de Nosferatu (F. W. Murnau, 1922) e no Klaus Kinski de Nosferatu the Vampyre (Werner Herzog, 1979). Ali está toda a sequiosidade dos muito velhos, dos que cambaleiam rumo à vítima, dos que um dia foram tigres mas regrediram a percevejos, dos que se recusam a morrer por medo da própria ausência, e tornam a imortalidade uma obrigação sem propósito. 



(Klaus Kinski, como o Nosferatu)