sábado, 18 de julho de 2009

1164) Vende-se o Iraque (6.12.2006)




Em 2003, os EUA tiveram uma vitória militar surpreendentemente rápida sobre o Iraque. Ninguém, inclusive eu, achava que fosse ser fácil. Depois vi na TV a cabo uma entrevista feita antes da guerra com um ex-oficial iraquiano, adversário de Saddam Hussein, que aconselhava: “Façam uma operação rápida, vão direto até Bagdá. Se vocês entrarem em Bagdá, o regime cai, porque ninguém faz questão de sustentar Saddam”. O recém-defenestrado Donald Rumsfeld ouviu este conselho e o seguiu à risca. Deu certo, do ponto de vista militar. O problema dos EUA é que eles sabem como derrubar um regime, mas não como pacificar um país, assim como os nossos partidos políticos são ótimos para ganhar eleições mas não há um só que saiba governar.

A situação se deteriora cada vez mais, e todos os dias vaza para a imprensa americana mais um documento secreto mostrando a enormidade dos erros cometidos. Os EUA são como aqueles PMs que são chamados pelos vizinhos para apartar uma briga de casal, aí entram na casa, dão uma surra na esposa, outra surra no marido, arrebentam a mobília, roubam todo o dinheiro, jogam no lixo o que tinha na geladeira, e vão embora disparando tiros pra todo lado.

A culpa é tos soldados? Um artigo recente de Elizabeth Palmer, da Rede CBS, diz: “É impressionante o quanto os soldados norte-americanos são humanos, com um forte senso do que é certo e do que é errado, e como estão mal preparados para aplicar estes conceitos em situações como a do Iraque, porque lhes falta o conhecimento histórico, geográfico e cultural. A imensa maioria deles é de homens decentes presos numa armadilha, e que ainda não entenderam o que está acontecendo historicamente, culturalmente e até fisicamente. Eles também são reféns de uma situação terrível.”

Um documentário recente de Robert Greenwald, Iraque à venda (http://iraqforsale.org/) explora o mundo nebuloso e sórdido das companhias a quem são terceirizados serviços para os soldados no Iraque. Serviços caríssimos e de péssima qualidade, chegando a colocar em risco a saúde e a vida dos militares, como se já não bastasse a guerra civil que eles têm de policiar. Na seção “Facts and Research” do saite é possível consultar documentos e reportagens sobre esse comércio escuso. São companhias como a famosa Halliburton, à qual o vice-presidente Dick Cheney é ligado, além da Blackwater (que o saite define como “um exército privado, de aluguel”), além da L3 Titan e da CACI (que forneceram tradutores e interrogadores para a prisão de Abu Ghraib).

Acho que o leitor se lembra daquele velho provérbio sertanejo de que “do boi só se perde o grito”, porque todo o resto (carne, couro, chifre, o escambau) dá lucro. O Iraque é hoje o principal boi sendo esquartejado e vendido ainda vivo pelas companhias norte-americanas. E enquanto tiver uma “peínha” de couro para arrancar, os urubus não vão largar esse esqueleto.

1163) Leopoldo Lima (5.12.2006)



Conheci este livro na Bahia, nos anos 1970. Leopoldo Lima, de Ribeirão Preto (SP), é o que eu chamo de “artista fora-de-esquadro”, ou seja, um sujeito que não se encaixa em definições ou escolas. O pessoal que o admirava dizia ser um “maluco beleza” que fazia uns desenhos e xilogravuras estranhas, meio surrealistas. Diziam que o filho mais novo dele se chamava Ôi, ou melhor, esse era o nome provisório que lhe tinha sido dado até que ele crescesse e escolhesse um nome para si próprio. O livro tem como título: 729 o varal biográfico embananado, ou pelo menos é isto que está escrito na capa, junto ao nome do autor, tudo em caixa-baixa (letras minúsculas). O exemplar que tenho hoje (comprado no Sebo Cultural de Heriberto) tem uma dedicatória do autor, para um tal de “Célio”, com um desenho e a data de 1970. 729 é o número da casa onde o artista morava (ou mora) em Ribeirão Preto, como se percebe pelas numerosas fotos no início e no fim do livro.

Leopoldo Lima faz um tipo de xilogravura cheia de traços retos ou sinuosos onde nenhum trecho da imagem é deixado em branco; lembra muito o estilo de cortar do cordelista e gravador Abraão Batista. Algumas imagens são recorrentes: crianças escuras, magras, fantasmagóricas; casas labirínticas; árvores retorcidas. Algumas fotos do interior de sua casa dão a idéia de uma mente atormentada e criativa, mas ao mesmo tempo pensamos: “como é que uma família com crianças mora num lugar doido como este?”. Um quadro intitulado “eu e voce” mostra um infinito corredor de tábuas, e em primeiro plano um sapato de homem sobre um sapato de mulher.

O texto em si são 60 páginas de linhas corridas, sem pontuação, numa fonte em negrito e itálico (mas legível), sem dar muita atenção à presença do til e de outros acentos. É um monólogo interior mas sem pretensões literárias, e neste aspecto lembra um pouco outro livro excêntrico de outro autor fora-de-esquadro, o lendário José Américo II, ou Zé Américo da Camionete, que em 1976 publicou em Campina suas memórias sob o espantoso título de Uma vitória dentro de uma derrota que não tive. Esta derrota foi a vitória do meu livro. Leopoldo Lima enfileira memórias, divagações, comentários sobre seus quadros, filosofias de vida, tudo isto sem recorrer sequer a um misericordioso ponto-parágrafo. Lembra as Galáxias de Haroldo de Campos ou o Catatau de Leminski, com a diferença que estes dois tentavam fazer Literatura, e Leopoldo faz um jorro de lava fumegante brotando pelas comissuras da mente.

Diz ele à página 42: “com este negocio do pessoal passar as maos nos quadros fiz um de um homem bebado caiu sentado com os pes para a frente descalço e no lugar havia uma garrafa de bebida quebrada sangravalhe o pe entao coloquei um caco de vidro cortante onde machucou as pessoas passavam a mao para ver se era caco de vidro pois parecia muito e de fato era cortavam a mao e coloriam mais o quadro”. Cuidado com a Arte, ela morde.

1162) Quem nos ensinou a ler? (3.12.2006)




Perguntam-me com freqüência por que motivo a Paraíba tem uma tradição literária desproporcional ao seu tamanho ou à sua economia. Tudo que posso fazer são suposições em voz alta.

Penso que o Nordeste teve duas frentes de colonização: a do litoral e a do interior. A do litoral era a colonização oficial, feita de navio, de porto em porto, trazendo as autoridades do Brasil Colônia, do Brasil Reino, do Brasil Império, do Brasil República. A do interior se deu ao longo do Rio São Francisco, com bandeirantes, caçadores de índios, criadores de gado.

Beirando os numerosos rios dos sertões, os desbravadores criaram uma civilização rude, aguerrida, ascética, onde a presença do Estado (fosse em que século fosse) era nula.

Atrás deles, vinha a Igreja Católica, trazendo a alfabetização e a instrução. Esses pioneiros desconheciam a existência das Capitais. Nunca pediram nada a governo. Não vieram de navio, vieram por dentro, chupando imbu.

No Nordeste surgiram estas duas civilizações cujos primeiros choques políticos, econômicos e militares ocorreram no século 19, e cuja crise mais grave foi a Revolta de Princesa – e a Revolução de 30. Cearenses, baianos e pernambucanos talvez discordem, mas, paciência, esta coluna só tem 3 mil toques.

Canudos, Padre Cícero, Guerra de Doze, tudo isto são os grandes épicos do nosso faroeste da vida real, que não deve nada a John Ford ou Howard Hawks.

E por baixo disto tudo, silenciosamente, vinha o Livro.

Pensem, por exemplo, no que foi a explosão da Poesia Barroca em pleno sertão, com os poetas que criaram o Romanceiro Popular Nordestino a partir de 1850: Silvino Pirauá, Ugolino e Nicandro Nunes, Germano da Lagoa. Cantadores como Romano do Teixeira, capazes de compor décimas barrocas de improviso.

E os padres que fundavam colégios em lugares que só vieram ter prefeituras décadas depois. Colégios de onde meninos sertanejos saíam compondo sonetos e declinando em latim.

No livro Editora Globo, sobre esta casa editorial gaúcha, Elizabeth Torresini transcreve um documento de 1927 que diz:

“Há Estados também para os quais essa taxa de analphabetismo fica abaixo de 75,5%. É principal destes o Rio Grande do Sul, onde esse coeficiente é de 64,2% vindo depois Parahyba do Norte com 68,8%, e, depois, sucessivamente: Território do Acre e São Paulo com 70,2% cada um, Santa Catharina com 70,5, Pará 70,7, Mato Grosso 70,9, Paraná 71,8, Amazonas 73,4, Rio de Janeiro 75,3”. 

Foi neste Brasil desigual que surgiu o Romance Regionalista dos anos 1930.

Quando entramos em Campina, há uma placa orgulhosa da Pitu: “Esta é a terra de Clementino Procópio”. Outras cidades celebram seus filhos famosos, que saem na TV e figuram nas enciclopédias. Eu me orgulho do fato de minha cidade se orgulhar desse professor anônimo, que do Cajá em diante ninguém sabe quem foi. Campina deve a ele (e a todos que ele aqui simboliza) a grandeza que já teve um dia e que pode voltar a ter.






1161) Universos Comunicantes (2.12.2006)




Certamente há precursores mais remotos, mas ao que eu me lembre foi Balzac o primeiro romancista a tentar unificar todos os seus ciclos de romances como partes de uma única e gigantesca história. Li muito pouco da sua “Comédia Humana”, mas os livros do tradutor Paulo Rónai são ricos em referências a respeito desse trabalho incessante do autor, revisando livros antigos, substituindo e unificando nomes de personagens, para que um sujeito que é protagonista numa história tenha uma aparição breve como coadjuvante noutro livro de dez anos antes ou dez anos depois.

Todo autor gosta de, a certa altura, voltar atrás e dar uma mexidinha num livro antigo, para criar um portal, uma conexão entre ele e outro livro. Na reedição recente do Romance da Pedra do Reino, Ariano Suassuna resolveu assumir que dois figurantes de rápida aparição, os picarescos “Piolho” e “gordo Adauto” (que surgem no final do Folheto LXXVIII), são na verdade João Grilo e Chicó, a dupla do “Auto da Compadecida” – unificando, assim, as suas duas Taperoás.

Isaac Asimov também não resistiu. Nos anos 1980, ele já havia marcado sua presença no mundo da ficção científica com dois ciclos de histórias: o ciclo dos robôs, em que postulava a criação de robôs inteligentes e obedientes, e o ciclo da Fundação, onde ele contava a criação de duas Fundações científicas destinadas a preservar a ciência e salvar a galáxia de um ciclo de obscurantismo. Eram dois universos estanques, distantes no Tempo, sem relação entre si, mas Asimov, depois dos 60 anos, decidiu unificá-los. A dificuldade principal era o fato de que nas histórias da Fundação não existiam robôs, mas ele contornou o fato postulando a evolução dos robôs metálicos para andróides com aparência humana, de modo que muitos dos personagens “humanos” do futuro eram na realidade andróides.

Existe um movimento instintivo de nossa mente em busca dessa unidade, em busca da crença de que todas as histórias acontecem num universo só. Eu estava lendo uma crítica do filme House of Frankenstein de Erle C. Kenton (1944), onde se dá o famoso encontro entre o monstro de Frankenstein, o Conde Drácula e o Lobisomem. Estas tentativas de misturar vários universos são fascinantes pelas suas implicações de ordem psicanalítica e mitológica, embora em geral resultem em filmes grotescos. Mas o resenhador do filme observa a certa altura que a ressurreição de Drácula é contraditória, pois em Dracula’s Daughter de Lambert Hillyer (1936) o corpo do Conde havia sido cremado por sua filha.

Buscar continuidade entre esses produtos híbridos da cultura-de-massas é tão absurdo que deve corresponder a um instinto profundo de nossa mente, alguma coisa num nível neuronial. Para mim, o mais interessante é que essas histórias sejam estanques, e recomecem do zero a cada vez. Como os desenhos animados de South Park, em que o personagem Kenny morre em cada episódio e recomeça vivinho da silva no próximo, para morrer de novo.