sexta-feira, 30 de setembro de 2016

4165) A espionagem eletrônica (30.9.2016)



Vi pelas redes sociais uma propaganda de gadget eletrônico que diz: “Agora você pode rastrear o seu carro usando o seu smartphone.” Essa frase é acompanhada pela foto de uma mulher loura, no banco do carona de um carro, segurando (na verdade mostrando para a câmera, para a qual sorri) o que parece ser um pequeno disquete.

Querer destrinchar um conceito produzido por uma equipe de publicitários é uma ilusão, mas vamos lá. Um leitor marcha-lenta irá perguntar: “Ora, mas se o carro é meu e quem anda nele sou eu, pra quê que eu preciso rastrear?”  Uma resposta bem contemporânea seria: “Caba leso, se roubarem teu carro, tu não ia querer saber onde ele tá não?!”

Há mil e um veículos (de carga, oficiais, etc.) que são normalmente rastreados pelas empresas a que pertencem, mas a possibilidade agora está ao alcance de qualquer mero possuidor de smartphone. O que a mulher loura sugere na foto do anúncio é que o carro é do marido (ela está no banco do carona), e que quem vai rastrear é ela. Muita mulher sem malícia irá ter um susto ao perceber essa possibilidade e pela primeira vez pensará, maliciosa: “Aaaah!...”  E o leitor masculino dará de ombros. Pau que bate em Chico bate em Francisco.

Contudo, o mais interessante do anúncio é a formulação da frase: “Agora você pode rastrear o seu carro usando o seu smartphone.”  Esses pronomes possessivos estão aí numa função de folha de parreira, ou seja, para fazer de conta que está ocultando o óbvio. O sentido prático e inegociável da mensagem transmitida é: “Agora pode-se rastrear qualquer carro usando um smartphone.” 

Essa é a mensagem concreta que está sendo passada. O “seu” entra aí para que a agência publicitária, se confrontada com o cenho franzido da Lei, possa dizer: “Mas nós não sugerimos ao consumidor que ele saia por aí rastreando ninguém, nós sugerimos especificamente que era para poder vigiar o carro dele, sua propriedade inalienável, bibibi, bobobó.”

Um artigo recente de Cory Doctorow na Locus discute a enorme permeabilidade de todas as coisas eletrônicas, quando seu alcance é multiplicado pelo sem-fio, e quando o hardware de interatividade se torna universal (ou seja, custa uma mixaria). 


Em breve maridos e esposas, patrões e empregados, polícias e bandidos, banqueiros e banqueiros e assim por diante poderão se rastrear uns aos outros através não de um automóvel, mas de um button (atenção, não é “bottom” que se escreve), um crachá, uma carteira de identidade informatizada, um chip implantado no primeiro dia de trabalho (previsto em contrato, com aprovação sindical), um livro dado de presente, uma roupa, uma implantação dentária ou pequena cirurgia feitas com outro pretexto.

Dize-me se andas, e eu te direi em que direção estás indo.

Na trilogia “Science in the Capital” de Kim Stanley Robinson” (aqui: https://www.amazon.com/Forty-Signs-Rain-Stanley-Robinson/dp/0553585800/ref=sr_1_1),  Frank Vanderwal arranja uma namorada que é casada e trabalha para a CIA, e em cada encontro ela precisa usar um detector para se certificar de que nenhum dos dois está com um bug implantado. Frank geralmente está, e não faz idéia de como puseram aquilo ali. Uma moeda, um pequeno adesivo colado às escondidas no aperto de um elevador, qualquer coisa minúscula capaz de emitir um sinal.

Em Onde os Fracos Não Têm Vez, de Cormac MacCarthy (filmado pelos irmãos Coen), um transmissor desse tipo (só que em tamanho maiorzinho) é encontrado tarde demais. No romance de William Gibson Zero History, o personagem acha um aparelhinho que o denunciava e dá um jeito de, num shopping, jogá-lo dentro do carrinho do bebê de uma mulher russa, chique, que passeia vigiada por dois seguranças.

A mão de escrever argumento chega treme ao pensar nas ramificações dramatúrgicas dessa tecnologia.

Tem um componente adicional. Nem falo de atitudes espionatórias como a de rastrear o percurso físico de um cidadão, uma tarefa zerozerossetiana que qualquer agente interpretado por William H. Macy é capaz de executar. Falo no acúmulo de dados sobre a pessoa de cada um de nós. Se você tem cartão bancário, cartão de crédito, número de CPF, se você usa computador e smartphone, já existem a esta altura alguns terabytes de atividades suas espalhadas em pacotes por servidores do mundo inteiro.

Ninguém apaga nada. Custo de estocagem desse tipo de informação decresce à medida que crescem os estoques. E os algoritmos de cruzar informações são cada vez mais discriminadores e mais rápidos.

E não adianta o velho e confortável argumento de que “quem não deve não teme”, e que “um cidadão de bem não tem o que recear”.

Porque o fato é que, num futuro breve, havendo necessidade, será possível levantar em algumas horas uma quantidade espantosa de informação sobre qualquer um de nós. Ela já existe, basta saber puxar para fora. E puxar organizadamente. Ele gasta com que? Viaja para onde? Conversa com quem? Recebe dinheiro de onde? Pergunta o que ao Google? Passeia por onde no browser? Guarda o que no seu HD pessoal?

Na época da Revolução Francesa conhecida como o Terror o ódio pelos aristocratas era tão grande que muitas vezes bastava uma denúncia qualquer para mandar um cara (que era tão povo quanto os outros da sua rua) para a guilhotina: “Ele sempre foi amigo dos aristocratas!” dizia um vizinho ressentido, e lá ia a cabeça do cidadão para o cesto.

Qual a última pessoa (ou grupo) em cujas mãos você não quereria de jeito nenhum ver todos os seus emails, todos os seus telefonemas, toda sua vida financeira, tudo que você já viu num monitor, ou que já chamou com um clique?








terça-feira, 27 de setembro de 2016

4164) O artista múltiplo Jean Cocteau (27.9.2016)




Ninguém o cita muito hoje em dia, e não sei como ele é visto pelos jovens, se é como um dramaturgo de vanguarda, um poeta e desenhista gay, um cineasta surrealista...

Há meio século, Cocteau, para mim, era menos um escritor importante do que uma figura folclórica, como Salvador Dali. Os dois podiam até ser de fato grandes artistas, quando estavam trabalhando, mas a imprensa (pelo menos a imprensa brasileira, a única de que eu tinha referências aos quinze anos) os tratava como figuras meramente folclóricas.

Dali era um excêntrico. Cocteau era uma figura menos excêntrica do que ele. Tinha o lado pitoresco do artista em evidência, autor de espetáculos, livros ou projetos que causavam algum impacto e polêmica. Sempre rendia uma notinha, uma frase com legenda espirituosa.

Era também um desses artistas sempre meio em xeque por serem gays num tempo em que essa palavra nem era usada para isto. Ele era daquele faixa que demarca seu terreno com inteligência e verve. Era um poeta, mas era também um Desconstrutor Surrealista, muitas vezes um Rei do Paradoxo Aforístico, um convidado capaz de tornar uma noitada social inesquecível com meia dúzia de frases, como também foram Oscar Wilde ou G. K. Chesterton.

Cocteau era para mim o poeta e pintor francês cujos versos e linhas lembravam os de Garcia Lorca. Só deixou de ser quando vi pela primeira vez seu filme Orfeu. É um surrealismo mitológico que só Cocteau acertou a fazer, muito diferente do absurdo feroz de Buñuel, e com efeitos bem originais para produzir o sonho, o fantástico.

É o mito de Orfeu: a morte da esposa, a descida aos infernos, a solução negociada, a olhada para trás, a perda final. Cocteau reconta essa história na Paris de 1950, tendo como centro um Café des Poètes. Na sequência inicial do filme acontece uma briga nesse café, uma daquelas coreografias executadas com prazer pelos extras. (O cinema inventou esse conceito: a briga feliz.)

Quem nos mostrou esse filme foi o padre Massote, na Escola de Cinema de BH, onde ele e professores como Paulo Pereira e Hélio Gagliardi tinham grande admiração pelo diretor. Os truques de espelho, de água, de tela transparente, são todos convincentes. Sabe-se que Buñuel tinha pouca paciência com a técnica e a filmagem; Cocteau devia gostar muito de cinema, das soluções técnicas.

Cocteau é um nome distante hoje em dia, mas acabou de sair a tradução para o inglês de uma daquelas biografias-de-mil-páginas sobre ele, resenhada aqui:


Pouco tempo atrás percebi, lendo a correspondência de Julio Cortázar com seus amigos portenhos (Cartas a los Jonquières, 2010), que Cocteau foi uma de suas grandes influências. Cortázar diz aos amigos que irá ver pela primeira vez um show de Louis Armstrong (ele já mora em Paris; o ano é 1952) daí a poucos dias, e comenta:

“Imaginarás, creio, o que é isto para mim. Sei que Louis está velho, e naturalmente não espero dele o que me deu em seus discos durante tantos anos. Mas ele foi uma das grandes paixões da minha juventude, e vê-lo em cena me parece como uma homenagem, algo como o que senti nesse mesmo teatro quando vi Cocteau abraçado a Stravinsky depois de Oedipus Rex. Pouco a pouco vou encontrando em meu caminho os meus deuses de adolescência. É um sinal de morte e de velhice, mas que importa. Me faltam Duke Ellington, Colette, Earl Hines, Picasso. Talvez me seja dado vê-los um dia.”

Paixões de juventude, deuses de adolescência: talvez seja essa mentalidade meio de fandom que faz alguns críticos considerarem Cortázar, hoje, um autor imaturo. Mas essas cartas são registros de impressões endereçadas a amigos muito próximos, que dificilmente não entenderão alusões ou ironias propositais. Cortázar, nessa época com 38 anos, tinha o cacoete de falar de morte e de velhice, figura de linguagem endêmica em gente como ele.  

Em agosto de 1955 ele escrevia aos amigos:

“Ontem completei quarenta e um anos. Je viens d’avoir trente ans, dizia Jean, o da estrela, num belo poema que hás de recordar, e o dizia com tanta tristeza como eu.”

Só mesmo um virginiano para dizer isso. Em 1966, dentro dos cinquenta e dois, ele lembrava Cocteau num contexto mais brincalhão, ao rechaçar os elogios descabelados de alguns conhecidos após o sucesso de O Jogo da Amarelinha (1962):

“Voltando àquela nota de Arroyo: é divertido que ele divida o tempo literário em a.C. e d.C., o que é absurdo, mas vá lá. Suponho que minhas iniciais o ajudaram a organizar esse novo calendário, mas diga a Rocco, se é amigo de Arroyo, que eu sempre me senti mais próximo de Jean Cocteau do que de Jesus Cristo, no que diz respeito a iniciais.”

Cocteau desenhista tinha um pequeno detalhe de estilo que eu chamo ”desenho de guardanapo”, onde cada vez que a caneta se detém num ponto produz um pequeno borrão. Isso aparece nos letreiros de abertura do Orfeu, aqui:


Foi um desses artistas que mexem em tudo (cinema, desenho, poesia, teatro, pintura, etc.) e tudo que fazem é parecido, tem o carimbo de uma maneira única de ver e de dizer.










sábado, 24 de setembro de 2016

4163) "A Volta do Marido Pródigo" (24.9.2016)



(ilustração: Poty)

Nos 70 anos de publicação de Sagarana (1946) de Guimarães Rosa, comentei aqui em 16 de abril o primeiro conto do livro, “O Burrinho Pedrês”:


O segundo conto do livro, “A Volta do Marido Pródigo”, faz um sequenciamento interessante com ele.

Uma das coisas mais interessantes para quem publica livros de contos é o sequenciamento das histórias. Rosa mexeu muito no sequenciamento de Sagarana:


É uma atividade muito parecida com escolher as faixas de um disco de canções. A arte de enfileirar as canções como se fossem dominós. Cada elemento narrativo, cada episódio encaixa com o que vinha antes e abre uma porta para o que virá depois.

“O Burrinho Pedrês” era uma história de idas e voltas; não é muito diferente, e que não se perca pelo nome, “A Volta do Marido Pródigo”, cuja malandragem já começa no título. Não é o filho, das escrituras sagradas, é o marido das cantorias profanas. O marido, no caso, é o malandro articulador, o malandro deixa-comigo, o malandro cuja lábia engambela quase todo mundo.

Lalino Salãthiel é um rei das armações, um costurador de situações como o João Grilo de Ariano Suassuna, mestre da conspiração festiva. Trabalha numa pedreira, ou mais conversa que trabalha, até se envolver na política local mediante apadrinhamento do Major Anacleto. “Capadócio”, como se dizia na época, vivia de violão em punho, socializando, amigo de todo mundo, alma da festa. Sedutor de mulheres e convencedor de homens.

A sequência inicial (o conto é dividido em nove segmentos numerados) o define: ele conta vantagens, cheio de empáfia e de semi-informações, enquanto os outros quebram pedra e lhe fazem perguntas incrédulas. (Menos os um-ou-dois de sempre, que ficam resmoendo meio de banda  e dizendo: “Mulatinho descarado! Vai em festa, dorme que-horas, quando chega, ainda é todo enfeitado e falastrão!”.)

Lalino é civilmente Eulálio de Souza Salãthiel, e a mulher (que talvez seja, na verdade, o centro desta história tão giratória) o chama de Laio. Lalino, mesmo farrista e boa-praça, fica execrado por muitos quando aparentemente vende a esposa, Rita, a um espanhol endinheirado. (Na verdade ele pediu o dinheiro emprestado para fugir da cidade e o espanhol, que vivia de olho comprido na morena, emprestou-lho numa piscadela.)

Laio faz um bom contraste com o Major Anacleto, que é popeiro, pegador de ar, e meio desorientado, precisando de pessoas ponderadas e cabeça-fria como o Tio Laudônio para assumir a pilotagem na turbulência, e escolher uma linha de ação.

A briga política local é feroz, cobra engolindo cobra, e o grupo deles faz frente ao dos Benignos, que estavam liderando a corrida até a chegada de Lalino Salãthiel.

Lalino tanto tem de João Grilo quanto do poeta de Ariano Suassuna na Farsa da Boa Preguiça, sua boemia sem maldade, sua indolência contemplativa nos momentos de pausa, mas ele é mesmo é “um corisco de esperto, inventador de trêtas”, como diz Seu Oscar, o filho do coronel.

Lalino é um sonhador, que gosta de olhar as figuras de um livro e imaginar “um étero-avião transplanetário”, e que comenta:

“Magina só: eu agora estava com vontade de cigarrar... Sem aluir daqui, sem nem abrir os olhos direito, eu esticava o braço, acendia o meu cigarro lá no sol... e depois ainda virava o sol de trás p’ra diante, p’ra fazer de-noite e a gente poder dormir...”

O animal totêmico do conto é o sapo, várias vezes referido nos diálogos e nas cantigas, além da famosa fábula da Festa no Céu, quando o sapo vê que vai ser arremessado de volta à terra e implora: “Só não me jogue na água, porque eu não sei nadar!”, e é lá que os seguranças da festa o jogam, e ele sai nadando, aliviado. É como se Lalino Salãthiel tivesse dito: “Só não me bote numa função onde eu precise ganhar todo mundo no papo.”

Lalino é um personagem-de-si-mesmo, uma persona pública e festiva, que se vira como pode, memorizando fotos de revistas para quando estiver se pabulando de suas andanças pelo Rio de Janeiro.  Um desses indivíduos de permanente otimismo, um ser humano que o tempo todo se sente “pomposamente, terrivelmente feliz.” Que tem uma sorte que nunca lhe falha, talvez porque ele produza nas pessoas uma impressão de empatia prazerosa; todos falam mal dele, todos criticam sua vagabundagem, mas ninguém resiste à sua presença.

A apresentação do personagem:

“Lalino Salãthiel vem bamboleando, sorridente. Blusa cáqui, com bolsinhos, lenço vermelho no pescoço, chapelão, polainas, e, no peito, um distintivo, não se sabe bem de que. Tira o chapelão: cabelos pretíssimos, com as ondas refulgindo de brilhantina borora.”

Um estilo telegráfico, uma imagem forte após a outra. Um estilo que Mário Palmério apanhou no ar e repôs em voo com a sua famosa abertura de Vila dos Confins, apresentando Xixi Piriá:

"Lá vem êle. E ganjento, pilantra: roupinha de brim amarelo, vincada a ferro; chapéu tombado de banda, lenço e caneta no bolsinho do jaquetão abotoado; relógio-de-pulso, pegador de monograma na gravata chumbadinha de vermelho."

Rosa não apareceu apenas com um repertório de novos discursos, ele foi desde seu primeiro livro um comentador bem-humorado do discurso alheio, embora, diplomata, procurasse estar sempre de-bem com todo mundo, quando possível. Ele ironizava a retórica burocrática e oficialesca que provavelmente era obrigado a usar em seu trabalho, e dentro de um conto de ambientação rural, interioranazinha, comparece um parágrafo assim:

“Major Anacleto relia – pela vigésima-terceira vez – um telegrama do Compadre Vieira, Prefeito do Município, com transcrições de um outro telegrama, do Secretário do Interior, por sua vez inspirado nas anotações que o Presidente do Estado fizera num anteprimeiro telegrama, de um Ministro conterrâneo. E a coisa viera vindo, do estilo dragocrático-mandológico-coactivo ao cabalístico-estatístico, daí para o messiânico-palimpséstico-parafrástico, depois para o cozinhativo-compadresco-recordante...”

O Major Anacleto tem um pouco daqueles sultões orientais já meio velhuscos e entediados, que se encolerizam com facilidade e cinco minutos depois já se esqueceram. Quando dá uma ordem e alguém lhe diz que aquilo já foi feito, ele reclama: ”Diabo! Vocês também não deixam nada para eu pensar!”. Não consegue acompanhar os malabarismos de estratégia de Laio, mas lhe diz: “Eu mesmo gosto de gente aluada, quando são assim alegres e têm resposta pra tudo.”

Este é um dos contos de Rosa mais políticos, mais claramente descritivos de peripécias políticas, mas é acima de tudo uma história de amor “por artes das linhas travessas da boa escrita divina”. Lalino está casado, felizão da vida, mas não lhe sai da cabeça a lenda das polacas do Rio de Janeiro, ele passa a morena no cobre e vai embora... mas acaba voltando. Ela tinha tudo para não querê-lo de volta, mas nem o autor resistiu ao papo-de-derrubar-avião do personagem, e a fez doida pelo condenado.

Num depoimento de JGR a João Condé, em 1946 (reproduzido em Remembramentos, Vilma Guimarães Rosa, Nova Fronteira, 1983) o autor dá uma geral nos contos do livro e, sobre este, afirma:

“II) – A VOLTA DO MARIDO PRÓDIGO – A menos ‘pensada’ das novelas do ‘Sagarana’, a única que foi pensada velozmente, na ponta do lápis. Também, quase não foi manipulada, em 1945”.













terça-feira, 20 de setembro de 2016

4162) Tropeções de escritor (20.9.2016)



("cadavre exquis" - www.letti.de)

O escritor Tim Powers contava que começou a ler um livro e a certa altura dois personagens entram no carro e pegam a estrada para outra cidade. Vão conversando e de repente o narrador diz: “Pedi licença a Fulano e fui na cozinha pegar duas cervejas.” E o leitor dá um pulo e diz: Peraí, os caras não estavam num carro?!

Erro de continuidade não existe só no cinema. Existe um certo surrealismo nesses cortes bruscos motivados por inexperiência, carraspanas, doença na família, ou mero esquecimento mesmo. Um autor de pulp fiction, por exemplo, tinha que fazer “x” páginas por dia e geralmente fazia sem ter tempo (ou saco) para reler o que tinha feito na véspera. Pegava de onde tinha deixado.

A falta de cerimônia deles para com a arte literária beirava a de Nelson Rodrigues, que, reza a lenda, aproveitava os remansos do tempo na redação do jornal onde garimpava o leite das crianças, e ficava na máquina batucando os folhetins com que garantia o café dos adultos, e que assinava como “Suzana Flag”(Meu Destino É Pecar, Escravas do Amor, etc).

Eram novelões intrincados, ora com alguma rudeza naturalista, ora melodrama puro, tango argentino puro. Cada romance era como três ou quatro peças rodriguianas interagindo umas com as outras.

Daí que em certos momentos Nelson enchia o saco, vestia o paletó e descia para almoçar ou para tomar uma. Os colegas corriam para a máquina, liam, sentavam ali e continuavam a história por mais duas ou três páginas até alguém anunciar o retorno dele, e aí todos voltavam a suas mesas. Nelson tirava o paletó, pendurava o paletó no encosto, puxava a cadeira, sentava, erguia o prendedor de metal de sobre a folha de papel e relia as últimas cinco linhas. Repunha o prendedor, e daí seguia em frente.

Isso é uma típica brincadeira de redação ou de escritório, ambientes propensos a esse tipo de gracejo. Imagino por minha conta que esse detalhe, mesmo que fosse revelado a Nelson, não mudaria nada. Ele daria de ombros, enfastiado. Que importava se havia um texto intruso incrustado no DNA de sua criatura? Autoria? Que importava a autoria?  Fossem perguntar a Suzana Flag.

Eu diria que em outro contexto isso seria uma brincadeira surrealista de meta-parceria em cabra-cega. Aquela brincadeira de escrever uma frase e dobrar o papel deixando um pedacinho para ser lido e continuado pelo próximo, que faz o mesmo e passa adiante. São os tais “cadáveres delicados” que André Breton, Luis Buñuel, Paul Éluard e os demais surrealistas praticavam, com textos e desenhos coletivos feitos às cegas.

Nelson Rodrigues, mesmo sob o próprio nome, e no que tem de melhor, sempre foi um imperfeccionista, produzindo sem parar, confiando mais no impacto da verdade central de tudo aquilo do que em qualquer filigrana estilística.

Era escritor de redação de jornal, com formação de almanaque, de palavras cruzadas, de coluna de variedades, curiosidades, faits-divers (como também o foram Georges Perec, Raymond Queneau, Mario Quintana). O redator navalha, que com uma só frase degola uma dúvida e encerra uma questão.

Essa era a escola de Nelson, um fazedor de frases impecável. Teatro + jornal = literatura. A tirada brilhante das grandes cenas do melodrama, e a concisão desconcertante do criador de manchetes.

Talvez alguma coisa de sua obra envelheça, mas não acho que serão os diálogos. Talvez os enredos. Não era um grande concatenador de manobras complicadas. Suas intrigas eram intrigas suburbanas; mesmo no romance eram teatrais; mesmo no teatro tinham algo de radiofônico. Pessoas falando, falando, jogando tudo pra fora. 

E as tramas dele eram entendíveis por quem é capaz de entender uma página policial, uma novela hispânica, um folhetim francês. Mas seu negócio não era a “trama”. Eram as situações bizarras, patéticas, brutais, constrangedoras em que ele jogava seus personagens como quem joga gente aos leões. Seus enredos não parecem um silogismo ou uma equação, e sim uma girândola de fogos de artifício.

Lembro às vezes a história, acho que contada por Frank Gruber, de um escritor de pulp fiction que deu uma festa para uma multidão de amigos em seu apartamento em Manhattan, anos 1940. Enquanto os convidados bebiam e dançavam, o dono da casa, num recanto, datilografava a toda velocidade as últimas vinte páginas de um conto que precisava pôr no Correio no dia seguinte. À meia-noite ele deu o conto por terminado e foi beber e dançar com os outros.

Nessas lendas urbanas literárias, a profissão de escritor parece mais romântica do que é, mas o crítico e o leitor: pensam: como ficaria uma história escrita assim? Para alguns, não faz diferença. Tem gente que escreve num café de calçada, num beliche de caserna, num trem lotado. Tem escritor que nem se altera, pode estar num clube, num grito de carnaval, escrevendo num caderno sob a chuva de confetes, e o texto sai com som de mosteiro.

Penso assim: pessoas como esses escritores pulp reliam o que tinham feito? Pegavam da última frase, como Nelson Rodrigues? Mantinham controle de continuidade em algum bloco-de-notas com nomes, datas, direções mencionadas no texto? Ou era tudo de oitiva?  Isaac Asimov orgulhava-se de só pegar num conto para revisar quando ele era recusado por todas as revistas disponíveis no momento. Eu acho isso uma heresia pior do que não ir ao médico.

O texto que Asimov mandava era seu primeiro rascunho, que já era praticamente o texto final. O Doutor não gostava de reescrever, tinha (ao que se diz) uma memória espantosamente retentiva, e defendia sua teoria estilística da “prosa da vidraça” (transparente, mostrando tudo, sem chamar a atenção para si)  contra a “prosa do vitral”, a prosa ornada, que não importa do que fale, está mostrando antes de tudo a si própria.

Se você não é Asimov, como é o meu caso, o jeito é revisar. Você “perdiganha” um tempo imenso relendo pela décima vez um trecho que já foi reescrito nove, mas por isso mesmo, prestenção. 

Será que Nelson percebeu e cortou as intervenções dos seus companheiros de jornal? E como seriam? Será que eles esculhambavam muito, ou procuravam repetir os nomes dos personagens, continuar, mesmo avacalhando, o que estava escrito ali? Cem anos depois, algum professor de literatura vai envelhecer tentando em vão entender que cortes bruscos de enredo e de tom eram aqueles que de vez em quando sobressaltavam o livro.

De qualquer modo, brincadeira surrealista ou não, é uma interferência na obra feita à revelia do autor da obra. Comparo com aquela tradução de Os Lusíadas para o inglês onde o tradutor britânico cortou várias estrofes consideradas impróprias, mas em compensação inseriu trezentos versos com a descrição de uma batalha marítima que não existe no original. (Aqui:









segunda-feira, 19 de setembro de 2016

4161) "Mickey One" (19.9.2016)



Mickey One de Arthur Penn (1965) é um desses filmes obscuros que só servem de referência para mim, porque ninguém nunca viu. Tirando minha turma do Cineclube de Campina Grande, conheço poucas pessoas que viram o filme. Lembro que Jean-Claude Bernardet foi um dos poucos que disseram lembrar e gostar dele. Citei esse filme num conto da Espinha dorsal da memória.  

A crítica da época comparou a Kafka esta história de um artista de stand-up comedy, que cai em desgraça junto à Máfia e começa a fugir de tudo e de todos, porque não sabe exatamente quem está tentando matá-lo. No auge do sucesso nas boates de Detroit, Mickey (Warren Beatty) foge dos palcos, viaja de carona, desaba noutra cidade, trabalha como servente, mora numa pensão sórdida.

Sua transformação parece a daquele personagem de Philip K. Dick que num dia é o apresentador de TV mais famoso do país e no outro acorda atordoado numa pensão barata, num mundo onde não tem documentos e onde sua existência é negada em todos os registros.

O começo dos anos 1960 jogou uma curiosa saraivada de influências no cinema norte-americano.

Vi num programa de TV a cabo que a parceria entre Warren Beatty e o diretor Arthur Penn surgiu (estou contando de memória, pode não ser precisamente isto) porque Beatty, sempre antenado, tinha visto os filmes policiais existencialistas de Louis Malle (Ascensor para o Cadafalso, 1958), Jean-Luc Godard (Acossado, 1959), François Truffaut (Atirem no pianista, 1960) e outros. Achara aquilo o máximo e queria fazer um equivalente.

Mickey One, a primeira tentativa, não produziu muito impacto mas resultou num filme plasticamente belo e com uma narrativa bem pessoal. Eles conseguiram contar, por exemplo, com o fotógrafo Ghislain Cloquet, que faz um belo trabalho em preto e branco. (Cloquet fotografou numerosos trabalhos de Alain Resnais e Robert Bresson).

A intenção parece ter sido a de capturar um pouco desses filmes, onde sobre uma ambientação de policial “B” norte-americano alguém projetava o absurdismo do ”estrangeiro” de Camus, dos destinos trágicos previsíveis de antemão.

Policial e jazz norte-americano. Angústia existencial e notas de rodapé francesas.

Mickey One, visualmente, tem sequências extremamente bem editadas em termos de movimento e descrição dramática. Várias cenas meio stanislawskianas que parecem bate-bocas meio escritos e meio improvisados entre os atores.

Era uma tendência teatralizante da época, e Beatty, já um galã em ascensão, queria visivelmente seguir na trilha de James Dean, Marlon Brando e Paul Newman: o herói sedutor mas torturado por uma ânsia inexplicável que as personagens femininas, obedecendo aos roteiristas, achavam charmoso.

Vi o filme em 1967 em Campina Grande, e votei nele como melhor filme do ano. Vi alguma repercussão nos jornais do Nordeste, mas nada que deixasse marcas mais fundas.

E como diria o poeta João Barafunda, tão recitado por meu pai: “Todos depressa, desde aquele instante / esqueceram-se dela. Menos eu.”  Quando dois anos depois Beatty e Penn jogaram sua segunda cartada, com Bonnie e Clyde - Uma rajada de balas (1967), todo mundo se esqueceu de Mickey One. Menos eu.

Revi o filme agora e parece Jim Jarmusch, roman noir em P&B, com boas doses de Louis Malle.  Na época falávamos (porque era isso que os críticos profissionais falavam) da influência de Kafka e de Orson Welles, com O Processo (1962), que é certamente outro referencial de Penn. E de Metropolis – em alguma sequência de facho de luz na escuridão ou de balé visual de estruturas mecânicas.

Na época acho que as referências da gente puxavam para esse lado gótico, expressionista, sei lá o quê. Vivíamos escarafunchando a história do cinemão antigo, e os parâmetros ficavam sendo aqueles. Mas hoje vejo o quanto esse policial existencialista norte-americano é um esforço consciente para ser meio francês.

O filme tem cenas noturnas meio incoerentes e delirantes, sem som ambiente, apenas com um solo de jazz; é um detalhe que Penn pega do Ascensor de Malle, e onde o francês usava Miles Davis ele usa Stan Getz.

Mickey tem várias cenas em que ele fala e fala para um interlocutor que não emite uma sílaba. É a maldição do standup.  A maldição de Riobaldo e do sobrinho do Iauaretê: alguém que não consegue parar de falar, alguém que não consegue parar de dizer em voz alta algo que ainda não sabe o que vai ser.

Alguém que aceita com um certo susto e uma certa humildade servir de conduto ao jorro de uma mensagem falada. E o jorro passa através deles, e não adianta perguntar se compreendem o que estão dizendo, mas é bem possível que um ou outro saiba.

Mickey fala, pergunta, responde-se, questiona-se. Troca de tom e de personagem quando vê que não está funcionando. É, como Beatty provavelmente é, um ator 24-horas-7-dias.

O melhor filme daquele ano? Olhe, filmes mais galardoados do que ele já envelheceram pior aos meus olhos.

Arthur Penn é admiradíssimo por pessoas que não têm a menor idéia de sua existência. Talvez fiquem surpresas em saber que são de um mesmo cineasta filmes tão dissímiles e tão assistíveis quanto Bonnie & Clyde (com Beatty e Faye Dunaway), O milagre de Anne Sullivan (com Anne Bancroft e Patty Duke), Pequeno Grande Homem (com Dustin Hoffmann), Alice`s Restaurant (com Arlo Guthrie), Night Moves (com Gene Hackman), Caçada Humana (com Marlon Brando). 






sexta-feira, 16 de setembro de 2016

4160) José Laurentino,1943-2016 (16.9.2016)



(foto de Leonardo Silva)

Algum tempo atrás, remexendo aqui numas gavetas, achei um papel dobrado. Era um daqueles papéis onde a gente anota alguma coisa e guarda no bolso de trás, e durante semanas ou meses o papel sai pulando de calça em calça até o sujeito estranhar e ter que olhar o que é aquilo.

Era um papel rabiscado com caneta Bic, uns riscos, uns cálculos, e estas linhas, com a minha letra:

Amigo Zé Laurentino
estive em nossa cidade,
quando ouvi tocar o sino
da igreja da saudade.

Era uma carta que eu comecei a escrever depois de uma das minhas passadas por Campina Grande. Isso aí era o tipo do verso que Zezinho ouvia e dava um riso meio de banda e dizia, vige, que coisa bonita. Poesia de cantadores tem muito dessas imagens meio singelas, que uns acham naïf. Versos que podiam ser de ciranda ou de coco, porque são versos para serem cantados. E é por isso que o poeta faz retinir o sino, porque a melodia pesa pelo menos tanto quanto a retórica.

O projeto de carta ficou por aí mesmo, mas reencontrei Zezinho meses atrás na cerimônia de entrega dos títulos de cidadãos paraibanos a Ivanildo Vila Nova, Santanna o Cantador e Os 3 do Nordeste.  Zezinho tinha perdido a vista por um tempo, mas depois descobriu-se que era algo que podia ser operado, e depois de algum tempo fora do ar ele recuperou a visão em grande parte, o que deve ter sido uma grande alegria.

Tenho lembrado muito da época dos festivais de cantadores em Campina, em função de textos que estou escrevendo ou revisando.

Zé Laurentino pertencia à Associação dos Poetas e Repentistas Nordestinos, atuante em Campina, nessa época tendo à frente José Gonçalves e Ivanildo. E mais Santino Luiz, João Marinho, e outros, mas todos violeiros, e somente Zezinho era o que se chama de poeta matuto.

Os seus grandes sucessos naquela época eram “Matuto no Futebol”, "Esmola Pra São José", "O Mal se Paga com o Bem", “Eu, a Cama e Nobelina”. O linguajar da poesia matuta engana quem pensa que o poeta fala daquele jeito. É uma fala estilizada, uma fala-máscara, que o poeta usa para dar colorido ao seu “número” no palco. Quem escreve versos daquele jeito dificilmente fala daquele jeito.

Não gosto da poesia matuta quando ela envereda por aquela estética de festa junina, onde é obrigatório mostrar um matuto de chapéu esfiapado, sem os dentes da frente, e que anda como um macaco. Não gosto quando ridicularizam o matuto. Gosto quando o matuto (como os humoristas judeus) manga de si mesmo, e, mangando de si mesmo, demonstra ter uma compreensão de si mesmo e do Outro mais profunda que a compreensão do Outro.

Patativa do Assaré tinha um português melhor do que o meu. A voz matuta era opção dramatúrgica para deixar claro o avatar que estava incorporando.

José Laurentino era um poeta de ironia discreta, olho bom para detalhes, riqueza de rimas que pareciam cair do céu para fechar uma estrofe com perfeição. Seus versos que provocavam maiores gargalhadas eram quando ele descreva o beradêro que se mete a jogar de "quipa" e vai defender um pênalti:

Me dero um calção listrado
e um pá de jueieira
também um pá de chuteira,
uma camisa de gola
e eu gritei arra diabo
eu já peguei touro brabo
e segurei pelo rabo
porque não pego uma bola?

E quando eu fui pegá a bola
me atrapaei meu patrão
passou pru entre meus braço
bateu numa região
que foi batendo eu caindo
espulinhando no chão. 


Esse tipo de humor, pra mim, tem alguma coisa de comédia do cinema mudo, alguma coisa de cordel, de comédia de picadeiro de circo.

E a grande graça, pra mim, está nesse verbo “espolinhar”, que é muito típico do interior do Nordeste. Uma palavra rara mas familiar, com uma sugestão visual (“espolinhar”, para mim, é cair no chão e ficar agitando as pernas, dando chutes no ar.)  

Augusto dos Anjos usa a palavra, em “A Meretriz”:

Nesse espolinhamento repugnante
o esqueleto irritado da bacante
estrala... Lembra o ruído harto azorrague
a vergastar ásperos dorsos grossos.

A palavra rara que todo mundo conhece. O mesmo que vemos tantas vezes no teatro de Lurdes Ramalho, de Ariano Suassuna, onde a todo instante brilha um diamante-bruto vocabular incrustado na pedra do idioma comum.

No poema de “Nobelina”, o narrador faz um elogio à sinfonia musical produzida por uma cama com o colchão em movimento, e depois fala de seu noivado com Nobelina. Um dia ele a flagra recebendo a arrastada-de-asa de um carioca, numa festa, e profere a sentença memorável:

Dei uma cordinha a ela
porque mulher é assim:
quando tá com a corda toda
mostra se é boa ou ruim.

Após a notícia do falecimento de José Laurentino, nesta quinta-feira, vi nas redes sociais a citação de um verso feito por ele quando do falecimento de Manoel Monteiro, o cordelista muito atuante em Campina, poucos anos atrás. Zezinho teria dito:

Manoel, por ti eu sinto 
uma saudade sem fim.
Se aí no céu encontrares 
um barzinho, um botequim, 
peça a Deus para que guarde 
um lugarzinho pra mim.









quinta-feira, 15 de setembro de 2016

4159) O detetive investigado (15.9.2016)



Não é muito comum um gênero artístico ser criado por uma só pessoa, num curto espaço de tempo.

Podemos dizer que Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira criaram o baião nos anos 1940 no Rio de Janeiro, e que Edgar Allan Poe inventou o romance detetivesco moderno em 1841 quando publicou “The Murders of the Rue Morgue”.

Borges lembra, numa conferência famosa, que a literatura policial produziu não somente um novo tipo de história (voltada para a elucidação de um crime inexplicável) . Produziu um novo tipo de leitor. Um leitor que, sabendo que vai haver uma solução, quer chegar a ela antes do detetive. Um leitor mais desconfiado, mais atento, mais pronto para duvidar do autor.

Num grande llivro policial sendo lido por um grande leitor não passa uma corrente de ar que não deixe alguma dúvida e desconfiança quanto à razão de sua passagem justamente ali, naquele local, entre aquelas pessoas... Tudo é suspeito, tudo é duvidoso. Antes do romance policial, é possível que de fato ninguém lesse um romance com esse tipo de prevenção, com essa atenção extra ao jogo, à competição implícita.

Pierre Bayard é um psicanalista e escritor francês. Com algumas obras poucas, mas firmemente argumentadas, ele está criando um novo gênero: o romance crítico de detetive (“detective criticism”).

É um livro em formato de ensaio onde o autor, insatisfeito com o culpado apontado pelo detetive numa obra clássica, reinterpreta a história, recontando as peripécias, mostrando sua própria versão e apontando um novo culpado.

Bayard fez isso nas suas desconstruções metalinguísticas de duas obras célebres (e dois dos meus clássicos preferidos): O Assassinato de Roger Ackroyd (1926) de Agatha Christie e O Cão dos Baskervilles (1902) de Conan Doyle. Bayard também tem pelo menos um livro publicado no Brasil: Como falar dos livros que não lemos? (Objetiva, 2008), mas não posso falar sobre este porque não o li.

Na primeira das suas reescrituras (Qui a tué Roger Ackroyd?, 1998) Bayard faz um detalhado resumo do romance de Agatha Christie e reexamina ponto por ponto os fatos que conduziram ao crime, as suspeitas infundadas, os detalhes que não batiam. Ele mostra a solução apresentada por Hercule Poirot, mas mostra que a solução não se sustenta.

O passo seguinte para Bayard é pegar todos os elementos criados e arranjados por Agatha Christie e inventar baseado neles uma versão ainda melhor que a de Agatha Christie.

E ele o faz.  Sua teoria é tão verossímil quanto a de Lady Agatha, e o assassino que ele aponta é de repente uma hipótese ainda mais interessante. (Falei sobre o livro aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2010/04/1917-quem-matou-roger-ackroyd-152009.html).  

A segunda reescritura de Bayard intitulou-se L’Affaire du Chien des Baskervilles (2008) e neste caso li a tradução norte-americana de Charlotte Mandell, Sherlock Holmes was Wrong (New York, Bloomsbury, 2008).

Aqui, Bayard refaz a história do cão fantasma que cruzava a charneca e assombrava uma família de ricos proprietários.  E ele desmonta, tijolo por tijolo, todas as explicações que um Holmes meio lacônico fornece a Watson no final do livro. Nada do que imaginamos ter visto aconteceu de fato. Quer dizer--- sim, os fatos são aqueles. Mas eles podem ser interpretados de outro modo.

Não sei se é um novo gênero literário ou um novo gênero de crítica literária, mas eu gosto.

Diz Bayard, no segundo livro:

“A crítica detetivesca (“detective criticism”) extrai todas as consequências do fato de que muitos elementos que nos foram apresentados no texto como verdades estabelecidas são na verdade, quando observados com atenção, apenas relatos de testemunhas oculares.”

É possível manter os fatos básicos os mesmos, mas aproveitar os espaços em branco e criar outra narrativa que os justifique. Os mesmíssimos fatos podem ser satisfatoriamente cobertos pelas mais variadas explicações, como Chesterton exemplificou em “A honra de Israel Gow” (1911), um dos melhores contos da série do Padre Brown (que incluí no meu Contos Fantásticos no Labirinto de Borges, 2005).

Essa luta pela hegemonia de uma explicação está na medula mesma da literatura de detetive. Há um crime. Às vezes o assassino quer impor uma leitura: aquilo foi acidente, morte natural, suicídio. O detetive impõe outra leitura que não só explica como o crime foi praticado, mas também quem o praticou. Às vezes, antes dessa solução definitiva. a polícia ou a imprensa fornecem outras hipóteses que o detetive precisa questionar, pois sabe que não batem com suas próprias observações.

Borges, que no auge da sua escrita meditava constantemente sobre o gênero policial, imagina em “Exame da Obra de Herbert Quain” (1941) o autor de um livro policial que dá pistas enigmáticas sobre um crime e no fim diz a solução, mas, antes de se encerrar o livro, ele faz um comentário ambíguo que leva o leitor a reconsiderar, reler, reintepretar episódios do livro que até então ele via pela ótica do detetive. E só então entender o que de fato acontecera. Diz Borges: “O leitor desse livro singular é mais perspicaz que o detetive”.

O leitor-detetive Pierre Bayard mostra ser mais esperto que Hercule Poirot e Sherlock Holmes.

Sei que os respectivos fãs tentarão lavar a honra dos seus ídolos, mas acreditem, sou fã também. Quanto a Bayard, o simples fato de ter tido e executado a idéia merece uma medalha.  Não cabe comparar seu projeto com o de Lady Agatha e Sir Arthur. Estavam tentando criar tipos de obra completamente diferentes. É outra a relação com o leitor.

Bayard tem precursores ilustres nessa tentativa. Embora não chegue a propor uma nova teoria, como faz o francês, Robert L. Styx também reduz um argumento de Conan Doyle a pó (e logo num dos seus contos mais famosos) em seu conto-ensaio “Os 7 erros na Liga dos Cabeça Vermelha”, que reproduzi e comentei aqui, no meu blog sobre Raymond Chandler: http://caminhandocomphilipmarlowe.blogspot.com.br/2014/10/0009-memoria-do-leitor-2.html









segunda-feira, 12 de setembro de 2016

4158) A dieta de Um Autor Por Mês (12.9.2016)



Dizem os dietantes que as dietas unicistas são muito eficazes. Uma semana comendo só arroz. Ou então só manga num dia, só goiaba no segundo, só mamão no terceiro.

Bolei uma dieta literária, uma espécie de oficina de auto-ajuda em self-service. Durante doze meses, o Penitente tem que passar cada período de 30 dias lendo unicamente obras de um mesmo autor. Na quantidade que quiser, mas sem misturar com nenhum outro.

O objetivo é fazer uma faxina linguística e mental para se reaproximar da literatura (prosa e poesia) de outra direção.

Por exemplo: faria bem a um leitor culto, interessado em expandir seus horizontes, dedicar seu mês de janeiro exclusivamente à leitura de Gertrude Stein. Digo isso porque não li quase nada dela. Stein foi quem disse famosamente que “uma rosa é uma rosa é uma rosa”, e ela costuma escavacar suas coisas perto do “grau zero da linguagem”. Por isso mesmo, fiquei com medo de levar uma varredura desse nível em meu sistema operacional. Mas acho que os textos enganosamente simples e enganosamente repetitivos dela são um bom detergente mental. Bancando uma aposta eu encarava!

Fevereiro seria dedicado a outro que escreve quase assim: Samuel Beckett, cujos textos em prosa são um monólogo monótono e monocórdio monopolizando monomanias monoteístas. Beckett foi amigo de James Joyce, mas seus escritos são mais próximos da prosa de Stein do que da do outro irlandês. Os seus Textos Para Nada e os vários romances são exemplos dessa linguagem. Para alguns leitores, ele “taxia mas não decola”, ou seja, cria situações fascinantes mas não conta uma história. Injustiça. Beckett dá até umas decoladas. Sua obra mais famosa encerraria fevereiro: Esperando Godot, talvez a obra mais legível, mais lúdica e mais esperançosa de Beckett.

Depois desse spa, o leitor pode se recuperar aos poucos lendo ao longo de março a obra de Paulo Leminski. Uma semana para seus “hai-quases” e poeminhas-piada. Depois os artigos literários, depois os poemas mais longos de Polonaises. (Lembrem-se: todo poema de verdade precisa ser lido três vezes – uma de manhã, outra de tarde e outra de noite. Menos que isto não vale.) Em seguida, pode ler as biografias, a de Cruz e Sousa e principalmente a de Bashô, primoroso raio-X poético. E encerrar tudo com o Catatau, uma festa-de-Babette para quem acabou de sair dum spa.

Abril pode prolongar esse estado de euforia verbal com a leitura de Guimarães Rosa. Ler Grande Sertão: Veredas em um mês seria como ver a floresta amazônica brotar diante dos próprios olhos em stop-motion. Esqueçam a pirâmide. Sugiro ler os obeliscos isolados que são os demais livros. Os contos de Tutaméia, por exemplo, têm todos uma angulosidade verbal muito semelhante, e se enfraquecem mutuamente quando lidos em série. Melhor alterná-los com as noveletas de Sagarana e Corpo de Baile e com os contos longos de Primeiras Estórias.

Maio seria dedicado a João Cabral de Melo Neto, que depois de Rosa é uma boa maneira de ir reduzindo a marcha, tirando o pé. Rosa é barroco, exuberante, mesmo quando compacta histórias inteiras em duas páginas. João Cabral tem uma linguagem de aspecto severo e monástico, mas ele mostra a riqueza que a dicção severa pode ter. O mês começaria com os poemas cênicos (Morte e Vida Severina, o Auto do Padre), depois os poemas mais longos e narrativos onde a linguagem é mais amiga do usuário, como O Cão Sem Plumas, percorreria outros títulos a gosto do freguês, mas acabaria na Educação pela Pedra.

Junho daria ao Penitente leitor a chance de ler George Perec, por mero efeito de continuidade. Falei que a poesia de Cabral é severa; as teorias da OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle), grupo de que Perec fez parte, chegam a ser masoquistas, de tantas condições que impõem à prosa. Em obras como W, ou a memória de infância, Um homem que dorme, As coisas e A Vida modo de usar, um esqueleto rígido de estruturas verbais dignas de Cabral é recoberto com fabulação da pop-filosofia perequiana, uma prosa tão rigorosa quanto a poesia do pernambucano, mas saturada de faits-divers, memorabilia, cultura oral, alusões livrescas, peripécias pulp-fiction.

Julho seria o momento de ler Garcia Márquez, onde o arcabouço estrutural é menos explícito, mas existe a mesma escritura de ferro regendo os enredos. A linguagem, a estilística, predominou no primeiro semestre; no segundo, o leitor irá mergulhando nos autores onde predomina a maneira de tratar a matéria narrada. Julho pode começar com Cem anos de solidão ou O Outono do Patriarca, ou outro romance preferido do leitor. Depois, ele pode visitar os contos, e encerrar com o livro de memórias Viver para contar. Quando ele então perceberá que seus conceitos de ficção e memória são agora indistinguíveis um do outro.

Este último critério pode aliás ser posto à prova em agosto, quando Márquez for substituído por Philip K. Dick.  Justapor Dick a Márquez ajuda a diluir as fronteiras de gêneros como ficção científica e realismo mágico. A obra de PKD é vasta, mas um mês em que alguém lesse pela primeira vez na vida Ubik, Do Androids Dream..., O Homem do Castelo Alto, Os Três Estigmas de Palmer Eldritch, Time Out of Joint, A Maze of Death e mais algum outro seria sem dúvida um mês inesquecível. E o leitor perceberia que seus conceitos do que é real e do que é fantástico já terão sofrido uma atualização para a versão 2.0.

Setembro poderia ser dedicado à leitura de Fernando Pessoa, mas, mantendo a fidelidade ao espírito da dieta, os heterônimos teriam que ser lidos em sequência, sem misturar, começando pelo próprio Fernando de Mensagem, passando em seguida para Ricardo Reis, Alberto Caeiro, o Bernardo Soares do crepuscular Livro do Desassossego e concluindo com a explosão futurista (em todos os sentidos) de Álvaro de Campos. O objetivo disto é fazer com que os conceitos do leitor sobre o que é o “Eu” sofram uma atualização para o século 21.

Em outubro, ainda eletrificado pelo verso voltaico e galvânico de Campos, o leitor pode por fim entender melhor a obra de Augusto dos Anjos, e desta vez, dada a complexidade inédita do material, pode-se omitir o conjunto de sua obra poética, concentrando-se o leitor apenas no Eu e Outras Poesias na seleção canônica de Órris Soares. Isto ajudará o leitor na árdua tarefa de atualizar seus conceitos sobre cosmopolitismo e provincianismo, num momento crucial (agora) em que o primeiro está ameaçado de desaparecer pela proliferação exponencial de exemplares do segundo em suas versões metropolitanas.

Pensei muito no mês de novembro, e acho que o leitor merece uma “limpa”, como a gente diz na Paraíba: uma faxina geral nas tralhas do consciente e da memória verbal. Sabe aquelas problemas de matemática em que a página parece uma partitura sinfônica, e a gente sai cortando, simplificando, até encontrar um equivalente límpido e minimalista para aquilo tudo? Ítalo Calvino é uma resposta, começando pelo seu indispensável Seis Propostas Para o Novo Milênio, percorrendo com gosto suas fabulações da trilogia do Visconde/Barão/Cavaleiro, a aventura tarológica do Castelo dos Destinos Cruzados, o límpido labirinto do Se Um Viajante Numa Noite de Inverno, e culminando com as Fábulas Italianas, onde o autor desce às fontes de si mesmo.

Dezembro é sempre um mês movimentado. Festas, trabalho, férias, viagens, família... Não há tempo para ler demais, e os ciclos de morte e ressurreição do planeta nos induzem à contemplação meditativa. Terminemos o ano, pois, relendo a obra de Emily Dickinson, uma poesia que nos seus volteios acaba tocando várias das literaturas discutidas nos meses anteriores. Depois desses autores tão biografados, televisados, premiados, fotografados, autores que escreviam sob as luzes da ribalta, por assim dizer, vamos ler uma poetisa do lusco-fusco, do intimismo. Uma poética um tanto clássica e espartilhada, de um lado, e muito anticonvencional e idiossincrática por outro. E uma poetisa que, se estendesse a mão, tocaria a de Gertrude Stein fechando o ciclo.

Nota Final: Sim, sei que os autores preferidos de vocês ficaram de fora, mas vejam que muitíssimos deles substituiriam o titular de um dos meses acima sem que a sequência educacional fosse rompida. Façam suas próprias listas. A única obrigação é explicar “por quê”.








sábado, 10 de setembro de 2016

4157) O mistério do 11 de setembro (10.9.2016)




(foto: Richard Drew / Associated Press)

Quando aconteceu o atentado às Torres Gêmeas, eu fiquei pregado à TV durante um dia inteiro, porque justamente na véspera um pequeno problema de hardware me deixara sem acesso à Internet. (Fiquei irritado porque 11 de setembro era a data marcada para o lançamento do álbum Love and Theft de Bob Dylan, e eu queria ver os clips de lançamento.)

Na época eu fazia freelancer para a Editora Guanabara, que estava para lançar um Atlas Histórico ligado à Enciclopédia Delta; e minha editora Liana Pérola Schipper me encomendou uma matéria longa, especial, sobre o assunto. Nos dias seguintes, resolvido o problema de conexão, eu praticamente não fiz outra coisa senão ler e capturar textos e imagens a respeito da catástrofe do WTC.

(Digressão: acho que isto é uma resposta neurótica comum, em mim pelo menos, diante de um fato esmagador e terrível. O processo de juntar e organizar informações sobre o fato de certa forma nos protege do perigo de pensar sobre ele. É uma fase intensa mas passageira.)

Quando o indivíduo é leitor de romance policial e de ficção científica, não há como não ser um cultor, em certa medida, das Teorias da Conspiração.

A literatura policial nos ensina que não há um limite visível para a cobiça humana por dinheiro, nem para as maldades que seres humanos são capazes de fazer para ter mais Poder. A ficção científica expande esse conceito para o Universo como um todo.

Li na época uma entrevista com um dirigente da CIA em que, depois de explicar mais ou menos (ainda se estava em plena investigação) como os terroristas tinham sido treinados para usar os aviões e tudo o mais, ele disse:

“O que me deixa mais acabrunhado é pensar que nós (a CIA) não teríamos ousado pensar num plano como este, e, se pensássemos, não teríamos acreditado que era possível.”

Modéstia do rapaz. Eu atribuo à CIA (e se não foi a CIA foi alguma outra agência da “sopa de letrinhas” de que falava John Michael Hayes, o roteirista de Intriga Internacional) um plano ainda mais mirabolante do que o de meia dúzia de jihadistas sequestrando o cockpit de três ou quatro aviões.  (Digo 3 ou 4 porque até hoje não vi o famigerado “avião” que teria sido jogado no Pentágono.)

Este link (http://www.europhysicsnews.org/articles/epn/pdf/2016/04/epn2016474p21.pdf) conduz a uma matéria do saite Europhysics News sobre o atentado, intitulada: “15 Years Later: On The Physics Of High-Rise Buildings Collapses”, de Steven Jones, Robert Korol, Anthony Szamboti e Ted Walter.

O cerne da questão é: como se explica que as duas Torres, que tinham estrutura de metal, tenham desmoronado daquela forma, se todos os testes provam que a temperatura daquele fogo seria insuficiente para fazer ceder o metal? E mais ainda: como se explica que o WC7, o terceiro prédio a desmoronar naquele dia, tenha aluído praticamente todo ao mesmo tempo, horas depois do choque dos aviões?

Já escrevi a respeito, aqui:



Em matéria de história mal contada, o World Trade Center nunca vai deixar de assombrar nossas noites mal dormidas. Mal contada – não por escassez de explicações, mas pelo excesso. A melhor maneira de esconder uma informação não é proibindo que seja divulgada, é disfarçando-a no meio de uma selva de informações irrelevantes e parecidas. (Aprendi isto com Agatha Christie.)

Poucos acontecimentos do novo século podem se comparar ao impacto da queda das Torres. Mesmo a Guerra do Iraque e a do Afeganistão, que se seguiram, foram guerras convencionais, iguais a qualquer outra guerra.  O atentado do 11 de setembro teve acima de tudo o impacto do ineditismo, do nunca-acontecido, do fato que estourou-a-costura da nossa imaginação.

Talvez um dia seja confirmado que a queda das Torres não se deveu à ação de terroristas islâmicos, e foi na verdade uma gigantesca queima-de-arquivo de empresas privadas e do Governo que estavam metidas em enrascadas mil, além de uma excelente oportunidade de sofrer um ataque estrangeiro que obriga a um revide imediato, como em Pearl Harbor.

Há muitas teorias de que na II Guerra os EUA precisavam de um pretexto para entrar numa guerra que a população via com distanciamento, e adotaram uma atitude passiva-agressiva, pedindo ao Japão: “Me dê motivo”.  Os japoneses, em sua euforia expansionista, caíram na armadilha e bombardearam o porto.

Se confirmarem um dia que os próprios EUA derrubaram as Torres, este fato será tão relevante e tão impactante quanto a queda das Torres, quinze anos atrás.

E será uma revelação crucial sobre a natureza de nossa civilização: uma civilização em que qualquer história gigantescamente absurda pode ser impingida como verdade à população, durante uma quantidade de tempo finita (mas suficiente para os objetivos estratégicos imediatos).






quarta-feira, 7 de setembro de 2016

4156) "Liturgia do Fim"(7.9.2016)




Não existe “literatura nordestina” se por este rótulo entendermos um corpo literário homogêneo, ou pelo menos composto apenas de obras parecidas umas com as outras. Como se todos nós tivéssemos que pedir uma bênção obrigatória à seca, ao cangaço, ao sertão, à cantoria de viola, em cada livro publicado. Tivéssemos que usar um algum crachá verbal de nordestino, para que os postos de acesso nos identifiquem sem fazer muito esforço. (“Como assim, ficção científica? Tem ficção científica no Nordeste? O foguete é feito de rapadura?”)

Vai daí que eu vejo com orgulho e alívio histórias feitas por nordestinos e que fogem a esse samba-de-uma-nota-só, que já comparei com os antigos e célebres desfiles de “misses em trajes típicos”. Se deixar, a literatura (a pintura, o rock, qualquer coisa) vira justamente isso. Um desfile de gente esteticamente idealizada trajando clichês de fácil leitura.

O romance Liturgia do Fim (São Paulo, Tordesilhas, 2016) de Marília Arnaud se passa como numa elipse com dois focos. Um deles, o mais pesado e mais atrator, é a fazenda de Perdição, num sertão remoto do Brasil. O outro é a capital, descrita porém jamais nomeada. É nordestino? É, apenas porque não precisa ser.

Marília escolhe uma chave narrativa já escolhida, também com sucesso, por José Nêumanne em O Silêncio do Delator e Débora Ferraz em Enquanto Deus Não Está Olhando, ambos já comentados aqui no blog. A chave narrativa é limar os nomes próprios: de cidades, de logradouros, de pontos de referência, de bares, de bairros, de ruas.

O romance acontece num meio geográfico e físico onde nada parece ter nome, mas que o autor(a) visualiza com precisão. Omitindo, sempre que pode, os nomes próprios, nem por isso ele faz a história mergulhar num limbo de indiferença cenográfica. O leitor sente a cidade sem precisar usar a citação fácil do simples nome. Nestes dois livros que citei, eu só notei a ausência dos nomes próprios lá pela página 50 ou 100, porque julgava estar vendo tudo. Claro. Tudo acontecia em ambientes que me eram familiares.

Era aquela proposta de Flaubert para Maupassant: “Você precisa ser capaz de descrever o físico e a psicologia de Fulano de Tal, garçon do bar que a gente frequenta, de tal modo que, apenas descrevendo-o, sem nomeá-lo, qualquer um da nossa turma possa exclamar de repente: Oxente, isso aí é Fulano!”

Perdição; é o nome da localização imaginária da tragédia meio grega de Marília Arnaud, um nome mais do que verossímil num Estado que tem cidades chamadas Solidão, Desterro, Misericórdia. A capital, onde o narrador vai estudar e construir família depois que vem do sertão, não recebe nome, mas é vista assim:

“De uma balaustrada na parte alta da cidade avistavam-se um rio e um porto desguarnecido de barcos, igrejas com seus cruzeiros quinhentistas ornados de gárgulas, o pátio interno de um mosteiro com seu jardim de fontes e bancos de pedra, uma lagoa cingida por palmeiras-imperiais que varriam um céu de nenhuma nuvem. Em algum lugar o mar me aguardava.”

Ninguém que conheça a velha Parahyba pode confundir isto com qualquer outra coisa. E quem não a conhece, não importa: é capaz de compor um cenário coerente com essas instruções verbais.

E é desse jeito que o que há de nordestino brota, com descrições da natureza feitas com a riquezas de nomes e espécies e tipos “da fauna e da flora”.  A profusão de imagens neste livro lembra alguns livros de Osman Lins, um prosador de registro elevado e com uma atenção barroca à Natureza; ou aquelas páginas catalográficas de Guimarães Rosa em Corpo de Baile.

Os nomes das coisas têm uma poesia em si. Uma página aberta rigorosamente ao acaso:

“Por todos os lados se viam mangueiras, bananeiras, canafístulas, jaqueiras, goiabeiras, angicos, oliveiras, paus-d’alhos, umbuzeiros, umburanas, limoeiros, laranjeiras, abacateiros, um amontoado de folhagem ensopada de luz, um emaranhado de ramos, brotos e galhos, um esbanjamento de copas floridas, de inflorescências em cachos, espigas, umbelas, botões em ânsia de desabrocho, e nas encostas ondulavam ao vento as esponjinhas das caliandras, os talos das damas-da noite e dos cipós-de-leite, as pétalas das vassourinhas, chananas e velames, um delicado pasto de néctar e pólen à espera dos afagos das abelhas”.

São os trechos férteis do sertão, ou de qualquer lonjura remota da Paraíba.

Inácio, o narrador, afirma ter levado dez horas de viagem de Perdição até a capital, num ônibus pinga-pinga. E quando uma Natureza de nomes tão familiares é literariamente compactada e posta em movimento, com o passar da história a gente percebe o quanto tudo isso existe de fato, num lugar onde alguns só imaginam haver o ermo e a desolação.

Essa natureza áspera mas exuberante é trespassada pela tragédia humana das pessoas. Neste aspecto, temos por um lado a crônica terrível da tragédia do patriarcado rústico, situação que evoca Raduan Nassar, numa reiteração de fatalidades.

O peso moral do cristianismo, somado a um certo puritanismo que não consegue conviver com a exceção à regra. Um puritanismo tiranizado pelo homem e administrado pela mulher.

Religião é uma coisa que exerce um peso terrível sobre quem acredita nela. E acreditar nela sem ser capaz de ter sentimentos bons, como ocorre com tantos, deve ser pior ainda. Ou então quem acredita duvidando, porque nenhuma resposta encerra a questão, nenhuma promessa é totalmente cumprida.

Não exagero vendo certos traços da tragédia pessoal de Augusto dos Anjos na de Inácio, já que ele cita o poeta mais de uma vez. Sua história é uma reiteração do drama inicial de “A Árvore da Serra”: “Não mate a árvore, pai, para que eu viva.”  Vejo rastros do Eu também na letra inicial dos nomes de um grupo crucial de personagens, mas deve ser viagem minha.

Se o romance de Marília Arnaud pertence a algum gênero, não é um gênero definido por superficialidades paisagísticas, mas por um conflito muito mais primal e mais remoto. São, por exemplo, as histórias sobre O Confronto Final Com o Pai Terrível.  Certo tipo de pai parece tornar isso inevitável: o velho Karamázov, o velho Lear, o velho Kafka.

O romance tem algo de façanha ao conseguir sustentar um discurso tenso, poético, elevado, do começo ao fim, sem abrir mão do regional, mas um regional amplo, com muitas camadas de vocabulário e de elocução. Seu arcabouço é uma verbalização entrelaçada com esmero. A fazenda como Éden violentado, a cidade como cárcere e rotina, tudo isso se entretece numa narrativa ao estilo do reino do vai-e-volta, saltando para o presente, o passado remoto, o passado esquecido.

A tragédia que impulsionou a história (e para a qual a história se reencaminha o tempo inteiro, acompanhando o percurso de volta do narrador) é mais velha do que a Bíblia, não é nordestina nem outra coisa. É um atrator convulso, uma agonia que não dorme, e que faz um personagem como Inácio desperdiçar toda a vida que a cidade lhe oferece, porque restou aquele nó doloroso no passado que não permite que ele se concentre em coisa nenhuma.