domingo, 31 de outubro de 2010

2388) A história de Sidney Rosenblum (31.10.2010)




Não conheci meu pai, que morreu quando eu tinha meses de nascido. Minha mãe vendeu a casa em Los Angeles e, como queria ficar perto de minha avó, se transferiu para Lansing, onde eu cresci, até me formar na Michigan State University. 

Quando casei, fui ensinar em Nova York, e foi ali que o advento da cultura digital trouxe meu pai de volta. 

Ele tinha sido ator de teatro na Califórnia, e trabalhara de forma intermitente no cinema. Minha mãe falava pouco sobre ele. Desde cedo entendi que guardara mágoa pelas suas bebedeiras, suas infidelidades, e queria esquecê-lo. Sempre me disse que ele trabalhava fazendo pequenas pontas, em cenas de multidão, e que sua carreira a sério tinha sido no teatro. 

O teatro é mais uma parte da vida do que da Arte, e, como a vida, nada deixa atrás de si. Algumas vezes lamentei que a arte de meu pai (“era um ator vigoroso, tinha presença”, concedia minha mãe) tivesse se perdido para sempre. Então surgiram na minha vida o DVD e o Internet Movie DataBase.

Dediquei-me a pesquisar fichas técnicas e a obter cópias dos filmes em que meu pai trabalhou. Foram dezenas. Foi no máximo um coadjuvante, mas em muitos filmes tinha uma ou outra cena forte, com boas falas. Um taxista, um porteiro conversador, uma testemunha num julgamento, um mafioso, um soldado na guerra... 

Vasculhei milhares de jornais da época; nunca um crítico citou o seu nome. Mas dediquei-me a colecionar tudo que ele tinha feito, e por fim tive a idéia de montar uma edição conjunta de todas as suas cenas, ajudado por meus alunos da universidade. 

Tenho agora em DVD uma colagem que cobre, até onde estou informado, tudo que as câmaras registraram de meu pai.

Hoje em dia, uso isto como um manual de meditação. Quando estou deprimido, vou direto para 02:35:10, a cena da tempestade em The Sea Wolves. A água banha o convés, o veleiro se agita, o timoneiro grita: “Vamos sobreviver a este inferno!”. Corta para um marujo barbudo (ele), que, agarrado ao mastro, grita de volta, por entre o fragor dos trovões: “Inferno? Nunca me diverti tanto!”. 

Quando estou muito autoconfiante, vou para 01:45:30, a cena em que Abraham Lincoln reúne seu conselho em Brothers in Arms. O presidente tem uma longa fala, cheia de alívio pela vitória na guerra, e vira-se, perguntando: “Concorda, senador Robinson?”. Meu pai, de pincenez, chinó e gravata de laço, diz: “As vitórias são como o vento, Sr. Presidente. Deixam uma sensação agradável quando passam por nós e vão embora”.

Outras vezes faço um acesso aleatório, deixo a escolha ao acaso. 

Como agora mesmo, quando apertei “Play” e o vi a cena da tumba do faraó em The Sands of Time. Um dos mercenários ergue um archote, iluminando uma cripta selada e pergunta: “E então, Buckley? Devemos abrir esta também?”. Mal vemos o seu rosto nas sombras, mas a voz inconfundível responde: “Não vai dar tempo. O que recolhemos já é riqueza bastante. Vamos embora”.


(Este conto está incluído no livro Histórias Para Lembrar Dormindo, Editora Casa da Palavra, Rio de Janeiro, 2013)