(Ilustração: Luís Jardim)
A obra de Guimarães Rosa, onde são tão frequentes os
vaqueiros, os jagunços, os duelos, os combates equestres, roça de vez em quando
por um imaginário de bravura pessoal e de violência que nos acostumamos a
assimilar a partir do filme norte-americano de faroeste.
O nono conto de Primeiras
Estórias (1962) é “Fatalidade”, um pequeno episódio faroesteiro. Ele não
destoa de outros, que já comentei aqui, do mesmo volume: “Famigerado”, “Os
irmãos Dagobé”... É aquela narrativa de poucas conversas e muitos exames de
parte a parte, entre indivíduos durões de verdade, não os falastrões de saloon. Indivíduos que sabem usar uma arma,
que só usam quando é preciso, e usam apenas uma vez.
São contos que derivam, direta ou indiretamente, das
memórias sertanejas do autor, e em muitos deles, como neste aqui, há um
narrador na 1ª. pessoa que veicula os acontecimentos para o leitor. O verdadeiro
protagonista de “Fatalidade” é um tal de Meu Amigo. O Eu que narra a estória é
um ser irrelevante. Caberia fazer-se uma antologiazinha só desses contos
roseanos onde o narrador-Eu quase não faz nada senão assistir, escutar,
testemunhar, tão ignorado e invisível quanto uma câmera cinematográfica.
Os parágrafos iniciais do conto lembram muito o início do
Grande Sertão: Veredas:
(...) Na data e hora, estava-se em seu fundo de quintal, exercitando ao
alvo, com carabinas e revólveres, revezadamente. Meu Amigo, a bom seguro que,
no mundo, ninguém, jamais, atirou quanto ele tão bem – no agudo da pontaria e
rapidez em sacar arma; gastava nisso, por dia, caixas de balas.
(“Fatalidade”)
Parece até o discurso do Riobaldo aposentado que abre o
romance famoso:
Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus
esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu
acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade.
(GS:V)
Esse personagem tem muita coisa compatível com Riobaldo
Tatarana:
Meu Amigo sendo de vasto saber e pensar, poeta, professor, ex-sargento
de cavalaria e delegado de polícia.
(“Fatalidade”)
Por outro lado, ele lembra também outro personagem do
romance, o meditativo e sábio “Compadre Meu Quelemém”. O Compadre é um
personagem curioso do Grande Sertão,
pois pelo que me lembro ele não surge em cena nem uma vez sequer, é sempre
referido indiretamente por Riobaldo, que o considera um sábio, espírita da
doutrina de “Cardéque”. Ele é um desses filósofos de rincão remoto, com
leituras poucas e essenciais, e muita meditação. Quelemém certamente foi
batizado como “Clemente”. Compadre Meu “Que Lê Mente”.
O Meu Amigo deste conto pertence à mesma estirpe samurai,
de altas filosofias e derramamentos de sangue precisos e necessários. Ele
decreta: “A vida de um ser humano, entre
outros seres humanos, é impossível. O que vemos, é apenas milagre; salvo melhor
raciocínio.” Ele comenta: “Só quem entendia tudo eram os gregos. A vida tem poucas
possibilidades”. Mais adiante finaliza: “Esta
nossa terra é inabitada.”
O caso que se dá é que um homenzinho pequeno e tímido vem
se aconselhar com o samurai sertanejo. É casado e pacífico, e sua esposa está
sendo assediada por um valentão, Herculinão Socó, e toda vez que se mudam de
vilarejo o catrapuz reaparece, assediando a moça. O queixoso, que se chama pelo
apelido de Zé Centeralfe, vem pedir a Meu Amigo uma solução, de preferência ao
abrigo da lei:
(...) Viajamos para cá e ele, nos rastros, lastimando a gente. É pêta.
Não me perdeu de vistas. Adonde vou, o homem me atravessa... Tenho de tomar
sentido, para não entestar com ele. (...) Terá o jus disso, o que passa das
marcas? É réu? É para se citar? É um homem de trapaças, eu sei. Aqui é cidade,
diz-se que um pode puxar pelos seus direitos. Sou pobre, no particular. Mas eu
quero é a lei...
(“Fatalidade”)
Constrói-se assim uma situação que na minha terra só se
resolve de um jeito. Alguém precisa remover Herculinão Socó do mapa-múndi. Meu
Amigo não dá muitas respostas, mas durante a a lamúria do queixoso se levanta,
ajeita a posição de uma carabina oblíqua na parede. Volta a sentar, o tempo
todo olhando para as armas penduradas em amostra, e para Zé Centeralfe. Depois
de muitos olhares, este entende o recado, pede licença e sai.
O narrador e Meu Amigo o seguem.
Eis senão quando, trazido pela pena providencial do
Roteirista do Mundo, surge no matagal o vulto de Herculinão. Um pré-cheiro de
pólvora inunda o ar. Há um tiro-tiro rápido,
...e o falecido Herculinão, trapuz, já arriado lá, já com algo entre os
próprios e infra-humanos olhos, lá nele – tapando o olho-da-rua. Não há como o
curso de uma bala, e – como és bela e fugaz, vida!
(“Fatalidade”)
Eles constatam, no entanto, que Herculinão fora derrubado
por dois tiros. A segunda bala o pegou no coração.
Uma situação dramática que evoca o duelo clássico de O Homem Que Matou o Facínora (“The Man
Who Shot Liberty Valance”, 1962) de John Ford. Neste filme, o pacato e hesitante
Ranse Stoddard (James Stewart) precisa da ajuda do calejado e ético pistoleiro
Tom Doniphon (John Wayne) para abater o herculinão local, Liberty Valance (Lee
Marvin).
Quando Stoddard e Valance se confrontam no meio da rua e
sacam as armas, é Doniphon que, escondido, abate o bandoleiro, deixando que
Stoddard, no meio da confusão, seja dado como o herói, iniciando aí uma
carreira política que só trará benefícios para a cidade. É ele quem vira “o
homem que matou o facínora”.
Durante algum tempo matutei se haveria alguma influência
do filme de Ford sobre o conto de Rosa. Parecia que não, porque a grande
maioria dos contos de Primeiras Estórias
teve publicação prévia, principalmente no jornal O Globo, ao longo de 1961, portanto antes do filme, que foi lançado
nos EUA em abril de 1962. (Não pude apurar a data de exibição do filme no
Brasil.)
Não é o caso, porém, de “Fatalidade”, que não é
mencionado nessa lista de publicações (v. Em
Memória de Guimarães Rosa, José Olympio, 1968, pags. 208-210). Haveria,
portanto, uma estreita janela temporal para que Rosa, sabendo do argumento do
filme pela imprensa ou por outras vias, compusesse sua estória a ponto de ser
incluída no livro, pois a primeira edição de Primeiras Estórias foi impressa em agosto de 1962.
Não custa lembrar que o filme de John Ford se baseia num
conto homônimo de Dorothy M. Johnson, publicado nos EUA em 1953.
Bem; isso são passatempos de nerd. O que importa no conto, mais do que influências ou
inspirações, é sua mecânica sutil, sua ética rude, seu reconhecimento tácito de
que com certas qualidades de brutalismo não há conversa possível. Herculinão
merece morrer. (Contra-argumento possível, e bem fundamentado: Augusto Matraga
era também um acaba-samba da mesma má qualidade, mas bastou uma surra bem
aplicada para encaminhá-lo para o Céu, mesmo a porrete.)