sexta-feira, 7 de março de 2008
0057) O indutor emocional (28.5.2003)
(ilustração: Michael Cheval)
Uma das coisas mais irritantes do cinema e da TV de hoje é a música que ensina ao espectador o que está acontecendo. Em toda cena romântica ou melodramática se eleva aquele trinado insuportável de violinos, explicando ao público: “É amor!...” Tenho a impressão de que quando um aspirante a diretor é contratado por um estúdio, a primeira coisa que lhe entregam é calhamaço intitulado “Manual do Indutor Emocional”. Ali existe um cardápio completo dos arranjos, orquestrações e harmonias para serem usados nas cenas de perseguição, suspense, romance, nostalgia, humor, alegria infantil...
Nesses estúdios, o filme ou novela obedece a uma teoria pavloviana de reflexos condicionados. Se o espectador é submetido desde que nasceu a uma lavagem cerebral em termos de trilha sonora, por que não levar isso adiante, em vez de ficar tentando descobrir uma maneira nova de dizer as coisas? Se queremos explicar à anta sentada na poltrona que a cena tem uma função cômica (porque geralmente os diálogos não são engraçados, e os atores menos ainda) não tem problema: basta botar uns dedilhados de banjo ao fundo, ou um cavaquinho brejeiro acompanhado de pandeiro e afruchê. Pronto: o Indutor Emocional avaliza a comicidade que a cena deveria ter e não tem. (Se tem, não precisava da música, não é mesmo?)
Novela tem tanto diálogo que o ouvido da dona-de-casa fica meio embotado de tanto blá-blá-blá. Quando é preciso fazer com que ela saia desse torpor e preste atenção a uma frase, sem a qual a cena seguinte não vai fazer o menor sentido, não há problema. O “Manual do Indutor” explica, à pag. 365: “Para fazer o público perceber a importância de um diálogo, basta usar um floreiozinho musical logo em seguida.” Pronto. No capítulo de “Corações Febris”, Elisângela Maldonado está tomando chá com sua amiga Selma d´Alencastro, e comenta, molhando uma torrada: “Ah, ontem encontrei com seu marido numa joalheria, na cidade... Ele estava comprando um par de brincos ma-ra-vi-lho-so!...” Como o diretor acha que a espectadora é burrinha e não percebe a malícia oculta nesta frase, basta uma passada de dedos no piano – trrlan... – e um close no rosto da vítima.
Pode-se argumentar que isto são efeitos de linguagem, um código compartilhado pelo diretor e pelo público, para que as intenções de um sejam entendidas pelo outro. Está correto. Mas é ao mesmo tempo um código reiterativo, onde o sentido está fixado de antemão e cada coisa tem apenas um significado. Por isso que a linguagem da novela e do “cinemão” está cada vez mais próxima da linguagem do comercial de TV, do spot publicitário – que é o melhor exemplo de uma refinadíssima linguagem pavloviana, de mão única, onde é preciso impor um único sentido, uma única interpretação. O Indutor Emocional nos diz o que sentir, nos obriga a sentir uma emoção vinda de cima para baixo. Um dia, sem ele, seremos incapazes de sentir seja o que for.
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