quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

3066) As três cruzes (26.12.2012)




(Max Bertolini)


Na manhã seguinte, Zoroeu acordou cedo, tomou um pouco de leite coalhado e desceu a ladeira.  A tempestade deixara a terra empapada, as barrancas derruídas, as pinguelas difíceis de transpor, mas as poucas horas de sol tinham bastado para tornar transitável o caminho.  Ele rodeou o mercado, já repleto àquela hora, contornou a pequena muralha que protegia o acesso ao monte.  Nas ruínas de uma guarita homens narravam coisas em altas vozes.  Ao  escalar o monte ele cruzou com dois soldados romanos que desciam, fatigados, queixando-se de terem dormido mal. Chegando no alto, viu que os corpos haviam sido levados, e que poderia começar a remoção. À promessa de algumas moedas, dois homens corpulentos o ajudaram a extrair do chão as cruzes e, depois de alguma negociação, concordaram em arrastá-las até a sua tenda. Desceram o monte, refazendo o trajeto, e ao chegarem as depositaram sobre o chão. Zoroeu lhes ofereceu água e vinho, que eles aceitaram e beberam limpando o suor. Um deles fez um resumo desinteressado das execuções da véspera, e depois de receberem o pagamento os dois foram embora.

Zoroeu examinou primeiro as cruzes menores, ambas em bom estado. Limpou as manchas de sangue seco, extraiu pedaços de cravos ainda enfiados na madeira (às vezes, para os que desprendiam os cadáveres, era mais simples dilacerar a mão do que extrair o cravo). Desencaixou as peças, após cortar as cordas que ajudavam a fixá-las no cruzamento.  A madeira era desgastada, velha, mas boa; somente o braço horizontal de uma delas estava corroído por cupins e quase podre.  Ele arrastou as quatro traves para os fundos e as alinhou a outras que estavam ali desde a semana anterior. Só então voltou e se concentrou na cruz principal, a que tinha chamado sua atenção na véspera.

Quando inseriu uma alavanca no encaixe central e começou a separar as duas traves, ele se deteve. Pela primeira vez olhou com atenção a madeira. Ao contrário das duas outras cruzes, não viu sinais de sangue, embora a madeira continuasse úmida pela chuva. Procurou nas extremidades da trave menor os sinais de pregos: nada. Procurou na trave maior, à altura de onde deviam ter ficado os pés: nada. Nenhum sangue, nenhuma perfuração. A madeira estava intacta. Como se nenhum cravo tivesse sido pregado ali, como se nenhum corpo tivesse ficado ali dependurado, como se nenhuma morte, nenhum sangue tivesse acontecido. Ele ficou de joelhos no chão, apalpando aquela madeira pura, intocada, virgem de contato humano. Não compreendia, mas o que seus olhos e suas mãos lhe informavam era verdade. Ele se sentiu mudo diante de um mistério que parecia pronto para acontecer mais uma vez.