segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

1508) Simetrias Aleatórias (12.1.2008)




Quando você resolve colecionar coincidências e simetrias aleatórias (termo que acabei de inventar) elas parecem chover sobre sua cabeça. Todas as vezes que uma coisa assim me acontece acaba reforçando a minha idéia de que o nosso mundo é um videogame ou programa de simulação de um Super-Ultra-Mega-Computador Cósmico. 

Existem numa dimensão superior alguns Seres (não me refiro a divindades, mas a seres materiais e finitos como nós mesmos) que determinam o que nos vai acontecer, assim como nós determinamos a vida daquela familiazinha em “The Sims” e outros joguinhos simulatórios. 

E de vez em quando acontece com eles o mesmo que conosco: nos distraímos, ou o programa interpreta erradamente um comando nosso.

Fui a uma loja comprar um móvel para casa. Escolhi, sentei à mesa do vendedor, ele preparou a nota fiscal, passou meu cartão de crédito, assinei, etc. Quando fomos combinar a entrega, ele chamou um empregado que estava no fundo da loja e perguntou quando ele poderia vir entregar. 

No diálogo, percebi que o entregador era um cara moreno, magro, jovem, e que tinha o olho direito cego; a íris e a pupila cobertas por uma catarata ou algo parecido. Combinamos para a manhã do dia seguinte, e fui para casa.

No dia seguinte, toca o interfone e o porteiro me avisa que chegou um entregador. Mandei subir. Quem me apareceu à porta e fez a entrega foi outro cara, de macacão azul: um preto corpulento, de rosto redondo, barba, bem mais velho do que o outro. E com o olho direito igualmente cego!

Há duas maneiras de tratar com uma ocorrência assim. 

A primeira delas é considerar que existe um conjunto de algoritmos (sub-rotinas matemáticas que se encarregam de uma sucessão predeterminada de eventos, em ciclos que se repetem) programando o que ocorre em nossas vidas. 

Suponhamos que no programa que roda os fatos da minha vida estava registrado: “Compra de móvel – Entrega de mercadoria: empregado da loja, sem o olho direito”. Na memória do programa existem alguns protótipos que correspondem a essa descrição. No dia em que fiz a compra, o entregador que vi era o protótipo XB-14, mas por um descuido do programa quem de fato veio à minha casa foi o XB-15. 

É um descuido imperdoável, do ponto de vista dos nossos Controladores. Teria que ser o mesmo cara. Ou então um cara totalmente diferente, para que eu não viesse a perceber o quanto esses tipos são meras simulações de seres humanos, escolhidos, a partir de algumas características, num repertório da memória do programa.

A outra maneira de lidar com isso é fazer como os economistas fazem: propor um rótulo que descreve o fenômeno – “Simetria Aleatória”, por exemplo – e dar-se por satisfeito. Toda vez que voltar a acontecer esse evento inexplicável, o cientista não conta conversa: “Ora, é uma simples Simetria Aleatória, nada mais do que isto”. E assim explicamos o inexplicável, pelo poder que têm as palavras de dar nitidez ao invisível.






1507) A arte de numerar mulheres (11.1.2008)


(Tintoretto, Women playing music)

Pode-se dizer que falta realismo mágico no filme O amor nos tempos do cólera de Mike Newell, que parece muito com um filme de Mike Newell e parece pouco com um livro de Gabriel Garcia Márquez. O Realismo Mágico conheceu neste meio século as duas faces do sucesso excessivo: a adoração desmiolada e em seguida o menosprezo esnobe. Como qualquer outro movimento ou gênero ou estilo literário, ascendeu à glória impulsionado pela criatividade de uma dúzia de inventores, e depois desabou de volta ao chão arrastado pelo peso de milhares de imitadores que pegaram o bonde andando. Críticos literários que antipatizam com ele costumam, ao condená-lo, brandir como prova da promotoria os piores clichês praticados por quem ouviu o galo cantar mas nunca soube de que lado nascia o sol.

O elemento mais “realismo mágico” que encontrei no filme (e que certamente pertence ao livro) é a compulsiva catalogação, por Florentino Ariza, de todas as mulheres com quem fez sexo ao longo dos 51 anos que durou sua paixão impossível por Fermina Daza. Florentino descobre sem querer que existe uma maneira de manter-se fiel à amada que preferiu casar-se com outro: diluir as demais mulheres do mundo numa sucessão de aventuras inconseqüentes em que a prática compulsiva do sexo não deixa lugar para o amor. No único caso em que algo como uma paixão começa a brotar entre ele e uma de suas escolhidas, a faca de um marido ciumento encerra de maneira trágica o episódio.

Florentino anota à mão, numa caderneta, cada um desses casos amorosos, fazendo uma breve avaliação técnica. A frieza, ou melhor, a monotonia dessa contabilidade demonstra o distanciamento que consegue manter, e que lhe permite, na velhice, dizer a Fermina: “Fiquei virgem à sua espera”, e permite a ela dizer-lhe, com um muxoxo: “Mentiroso”, sabendo que é mentira, e ao mesmo tempo sabendo que no fundo é verdade.

A compulsão burocrática de Florentino lembra o personagem de Guimarães Rosa em “O Recado do Morro”, o Coletor, que vive pela cidadezinha cobrindo os muros e as paredes com números que, no seu juízo de doido, correspondem às suas posses: “Ia alinhando números tão desacabados de compridos, que pessoa nenhuma não era capaz de tabuar: seus ouros, suas casas, suas terras, suas boiadas no invernar, sua cavalaria de ótimas eguadas, seus contos-de-réis em numerário, cada lançamento daqueles era feito uma correição de formiguinhas pretas enfileiradas. Aquele homem tinha uma felicidade enorme.”

A loucura lúcida de Florentino poderia ter dado o tom do filme, mas não é o caso. Talvez quem pudesse filmar melhor esse filme fosse outro maluco como o Peter Greenaway de Afogando em Números. Seria menos obediente ao original, e talvez mais parecido com ele. Fixação numérica e paixão amorosa parecem não ter muita coisa em comum – mas quando as vemos transformar-se na razão de viver de um doido manso, parecem ser as únicas coisas que realmente importam na vida.

1506) A Whiter Shade of Pale (10.1.2008)





Canções de melodia arrebatadora, arranjo hipnótico e letra enigmática são, como dizia o poeta, “uma alegria para sempre”, um prazer que nunca se esgota. Uma pergunta viva que jamais conseguimos guilhotinar com uma resposta. 

Falei há algumas semanas do “Hotel California” dos Eagles, e hoje andei me lembrando de “A Whiter Shade of Pale”, que o grupo inglês Procol Harum fez tocar nas rádios do mundo inteiro em 1967.

Com um contraponto implacável de um órgão Hammond, no estilo de uma composição de Bach, esta canção fascinou os ouvintes e foi regravada mais de 600 vezes desde então. Influenciou minha geração inteira. 

Vejo pegadas de sua progressão harmônica na canção “Você se Lembra” de Geraldo Azevedo (com letra de Fausto Nilo e Pippo Spera), que aliás faz na segunda parte uma bela fusão com a melodia de “As tears go by”. 

E seu título, “Uma Tonalidade Mais Clara do Pálido”, é parafraseado por Zé Ramalho em “Avohai”: “... de fato existe um tom mais leve na palidez desse pessoal”. Tem certas letras que são assim – ninguém entende, e ninguém esquece.

Era uma das canções favoritas de Lennon e McCartney; foi incluída por Martin Scorsese em seu episódio de “Contos de Nova York”. No Brasil, ouvi-a pela primeira vez no inesquecível curta-metragem “Telejornal”, de Oswaldo Caldeira.

Ouçam aqui:

https://www.youtube.com/watch?v=9SQAdwdTSTM

Sua música gruda no ouvido, envolve e arrasta consigo o ouvinte, como as espirais incessantes do “Bolero” de Ravel. E a letra nos atordoa com suas imagens surrealistas do “salão que vibra e o teto que voa pelos ares”, das “dezesseis vestais virgens”, do cara que pede um drinque e o garçon traz uma bandeja cheia, e a mulher cujo rosto fantasmagórico acaba ganhando um tom mais claro de pálido.

No saite http://www.procolharum.com/awsoplyrics.htm há links para numerosas teorias que buscam explicar os versos da canção. Teorias que sugerem o uso de LSD, uma metáfora da disfunção erétil, ou a hipótese de que toda a letra se passa no Titanic. 

A versão que mais me interessou (http://www.procolharum.com/awsop_burns.htm) é uma comparação da letra da música com a parte final do poema “Tam O’Shanter – A Tale” de Robert Burns, escrito em 1791, sobre um farrista que numa noite de bebedeira vai parar numa velha igreja abandonada onde presencia um sabá de feiticeiras. Segundo o autor do texto, que se assina “Dark Horse”, o letrista Keith Reid teria usado o método “cortar e colar” no poema de Burns, aproveitando frases inteiras e palavras isoladas, e modernizando o contexto. A comparação verso-a-verso dá o que pensar.

A música voltou aos jornais recentemente, quando o organista Matthew Fisher exigiu participação nos direitos autorais – oficialmente, os compositores são o vocalista Gary Brooker e o letrista habitual da banda, Keith Reid. 

Dada a importância do órgão como fio que costura toda a melodia, há uma certa justiça na reivindicação de Fisher, embora seja muito difusa a região em que se misturam “arranjo” e “composição”.



1505) Alberto Cunha Melo (9.1.2008)


O ano de 2007 levou consigo muita gente no mundo das artes – talvez Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni tenham sido os nomes de maior repercussão internacional. Uma perda que me tocou de perto foi a do poeta Alberto Cunha Melo, que não sei se tenho o direito de chamar de amigo, porque nos encontramos apenas uma meia dúzia de vezes nos anos 1980, quando ele era (com Jaci Bezerra) um dos capitães das Edições Pirata, de Recife, onde publiquei meu primeiro livro de poemas em 1980. Nascido em Jaboatão em 1942, Alberto viveu a vida inteira (creio) no Recife. Era um grande admirador da poesia popular, e tenho aqui comigo seus fininhos mas preciosos livros sobre Job Patriota e Lourival Batista.

Como diz ele no poema “Alguma Pressa na Calçada”, “as pessoas se descobrem / muito tarde: / só se vêem / e se falam / (mesmo) / quando já passaram”. Mais peso do que as amizades pessoais tem, às vezes, a leitura calada e constante do que é escrito por alguém que apenas cumprimentamos à distância. Seu livro Noticiário (1979) me fez companhia em muitas viagens e mudanças, e não acho que seja pretensão de minha parte perceber sua influência sobre a dicção de numerosos textos de meu segundo livro (Sai do meio que lá vem o filósofo, 1982). Alberto fazia uma poesia madura e corajosa que olhava o Brasil como ele é. “Mas, às vezes, despertamos / para salvar / aqueles que se afogam / nas águas do nosso despertar” (“Nos Escombros da Comunidade”).

Os poemas curtos desse livro têm uma ternura e uma crueldade que lembram os melhores poemas de Brecht: “É assim que um homem / começa a sobrar na terra. / Justamente quando começa / a dispersar em suspiros / sua grande explosão” (“Neo-Romantismo à Nordestina”). São poemas que vão de cinco ou seis linhas até quinze ou vinte, sem forma fixa, mantendo um ritmo coloquial, coeso, que não exclui uma surpresa verbal a cada verso, uma imagem insólita, uma comparação dolorosa e verdadeira. Como quando ele diz (em “Operação Fênix: Relatório”) que “as crianças sempre encontram / muita coisa para brincar / depois dos bombardeios”. Ou quando, em “Aos Poetas Patriotas”, ironiza o trabalho burocrata dizendo: “estive sempre em salas / onde o tempo e as mãos / eram mais vigiados / do que o céu pelos camponeses”. Ou quando diz em “Help aos Periféricos”: “Londres pedia socorro / aos que nela buscavam / refugiar-se”.

Alberto morreu em outubro passado, de complicações surgidas após um transplante de fígado. Muito material seu pode ser encontrado em seu saite: http://www.albertocmelo.com/. Dele guardo os versos de “Oração Pelo Poema – XXVI”: ““A cem quilômetros por hora, / solto a direção do automóvel / para escrever alguma coisa / mais urgente que minha vida. / (...) Ó meu Deus, eu quero escrever / a minha vida, não teu Céu. / Eu estou só e enlouquecido / como as ovelhas mais longínquas. / Dá pelo menos a esperança / de terminar o doloroso / poema. Dá isso a teu filho, / caído, e coberto de sal”.

1504) “O Amor nos Tempos do Cólera” (8.1.2008)



Não li o romance de Gabriel Garcia Márquez em que se baseou este filme de Mike Newell, em cartaz na Paraíba. Talvez esta lacuna me dê um pouco de imparcialidade para julgar o filme, pois não estarei influenciado pela paixão que me desperta a prosa do colombiano. Numa entrevista à TV, Márquez já afirmou que o mais importante de seu texto é a voz narrativa e o ritmo encantatório que ela impõe ao leitor. Ele admite que muitas coisas ditas ou contadas por essa voz que cria seus livros são irrelevantes ou contraditórias, mas estão ali porque mantêm o ritmo, mantêm hipnotizado o leitor. “Bastaria uma palavra errada”, diz ele, “e todo o encantamento se quebraria, o leitor deixaria de acreditar no que lê”.

Sua prosa – inclusive os poucos trechos que já li do “Amor nos Tempos do Cólera” – consegue essa proeza de atingir um máximo de ritmo e melodia (inclusive pela escolha cuidadosa dos verbos, dos objetos de cena, do riquíssimo contexto cultural por trás de um simples quarto ou uma simples vestimenta), e um máximo de história contada. Porque a história (os enredos de GGM são sempre inusitados) poderia em tese ser contada por quaisquer outras palavras, mas ele consegue contá-las com aquela prosa emblemática, sensorial, cheia de carnaduras visuais inesquecíveis.

Na tela do cinema, esse brilhantismo estilístico se desfaz nas mãos de diretores que, talvez amarrados ao dever de fidelidade ao argumento original, conseguem mantê-lo, mas sem produzir uma voz narrativa que transfixe o espectador, obrigue-o a prender a respiração a cada mudança de cena, desoriente-o e seduza-o pelas imagens, a tal ponto que ele nem perceba a história que está assimilando. Esta adaptação de Mike Newell tem numerosas qualidades, mas são todas as qualidades daquilo que em crítica de cinema chamamos de “artesanato competente”. O filme é bem feito, inclusive nas colaborações a cargo de dois brasileiros, o fotógrafo Affonso Beato e o autor da trilha sonora, Antonio Pinto (filho de Ziraldo). Fernanda Montenegro faz com firmeza um papel secundário, e o elenco em geral é bom. Mas todos os triunfos do filme têm um gosto de gol de pênalte.

São muitas as adaptações de romances latino-americanos, por diretores europeus ou dos EUA, que têm esse mesmíssimo perfil. Nota-se que o cineasta ama a obra original, procura ser-lhe fiel, mas parece o tempo inteiro estar lidando com algo que, escrito em outro idioma, recusa-se obstinadamente a deixar-se traduzir. Falta doidice a esses filmes, a doidice e imprevisibilidade dos personagens de GGM. O filme é belo e agradável, mas nós não conseguimos ver a história de Florentino (e seu amor impossível pela mesma mulher, durante 51 anos) do ponto de vista desse sonhador. Vemo-la por um ponto de vista como o do seu rival, o médico: frio, correto, impassível, suavemente autoritário, e ao mesmo tempo totalmente cego para o que se passa à sua volta.

1503) O peixe e a pescaria (6.1.2008)


(ilustração: Julie Paschkis)

Todo mundo conhece aquela frase: “Se um homem está com fome, melhor do que dar-lhe um peixe é ensinar-lhe a pescaria”. Claro que depende das circunstâncias – se o sujeito está desfalecendo de fome e mal pode se mover, dar-lhe um prato de comida pode ser mais importante, num primeiro momento, do que oferecer-lhe um emprego. Esse processo reproduz mais ou menos o que fazemos com nossos filhos. Assim que nascem começamos a dar-lhes tudo: alimentação, cuidados médicos, carinho, educação. Aos poucos, vão adquirindo habilidades, responsabilidades, desenvoltura. Até que chega o dia em que consideramos que eles já sabem pescar, e os abraçamos, dizendo: “Vai, meu filho! Vai, minha filha! Voa alto, porque tuas asas já estão prontas e fortes!” (Problema é que essa cena tão bonita nunca acontece – são eles que decidem por conta própria cair fora, e somos os últimos a ficar sabendo).

Isto me vem à mente quando, por inusitado que pareça, estou vendo certas manifestações artísticas de qualidade constrangedoramente ruim. São os versos tatibitates da poetisa jovem, são os vídeos caóticos do aprendiz de cineasta, são as músicas banais do recém-compositor de MPB, são as peças de teatro estudantis que não passam de uma sucessão de clichês recitados com voz pomposa e postura rígida. O que devemos fazer diante disso? Encorajar? Criticar? Mandar mudar de vocação?

Talvez nessas horas a gente deva distinguir entre duas atitudes. Devemos perguntar: “Essa pessoa está me oferecendo um peixe que pescou. O que é importante, o peixe ou a pescaria?” Quando o jovem artista está ainda procurando seu caminho, devemos deixar de lado a qualidade do peixe, porque não é ele que conta. O peixe pode ir para o lixo, se não prestar, como é para o lixo que vão nossos rascunhos insatisfatórios, nossas cenas mal filmadas, e assim por diante. O produto é o que menos importa, porque ali se trata de um processo de aprendizado, de uma pescaria onde só conta a educação do pescador.

O problema é quando esses trabalhos já se dão dentro de um contexto profissional ou oficial, num contexto em que se pressupõe que o sujeito já é capaz de produzir obras ou trabalhos ao nível dos que constituem o que uns chamam O Mercado, mas que podemos chamar (atenuando o aspecto mercantilista da coisa) de A Cena Cultural – o ambiente em que obras são exibidas a sério e apreciadas pra valer. Aqui, parte-se do princípio de que o pescador já está pronto, e o que passa a ter importância é a qualidade do peixe que ele fornece. Um filme exibido num cinema, um romance enviado a uma editora profissional, uma peça que reserva pauta num teatro, um show que cobra ingressos – tudo isto deixa subentendido que seus autores não estão mais aprendendo a pescar. A benevolência que poderíamos ter para com suas limitações ou seus erros se dilui no momento em que eles nos tentam, literalmente, vender seu peixe.