A literatura pode ser uma só, mas suas portas são legião.
Todo caminho na sua Babel é único: só pode ser concebido e trilhado por aquela
pessoa. É sempre bom tentar entender como o escritor trabalhava, fisicamente,
porque isso pode ter alguma influência sobre seu modo de produção. Sempre presto atenção à opinião dos autores
que trabalharam durante as primeiras décadas da datilografia, no final do século
19 e começo do 20.
Datilografar, para mim, é um prazer, hoje, no meu
confortável desktop de teclado amplo e macio, cheio de recursos. Como é ou era para os outros? H. P. Lovecraft talvez tivesse um estilo
menos ornamental e pomposo se o enfrentamento físico com o ato da escrita lhe
fosse menos trabalhoso. Numa carta de
1926 para August Derleth, ele diz: “Tenho tanto horror à tarefa de datilografar
que não vou fazer isso sem antes ler tudo em voz alta para dois ou três bons
avaliadores, e saber se vale a pena ser preservado ou não.”
Lovecraft era um compulsivo escrevedor de cartas, tanto à
mão quanto à máquina. Também em 1926, escrevendo para Wilfred Blanch Talman,
ele comentava: “O papel de formato longo que estou usando me foi dado pelo
nosso companheiro e fã George Kirk, que você deverá conhecer em breve, o qual
insistiu em me dar depois que não teve mais utilidade comercial para ele. Se minha correspondência não fosse tão
devastadoramente gigantesca, eu diria que o estoque de que disponho agora
duraria para o restante de uma vida mediana.”
O papel podia ser muito, mas a energia era escassa.
Lovecraft precisava fazer uma primeira versão à mão, corrigi-la, e depois
datilografá-la, fazendo novos adendos e correções ao longo da versão passada a
limpo, como a maioria dos autores. De
vez em quando conseguia alguém que fizesse isso para ele, mas a penúria
financeira o impedia de contratar datilógrafos profissionais. E o cansaço o impedia de fazer as sucessivas
revisões que nós, hoje, fazemos com um pé nas costas. Ironicamente, ele próprio faturava alguma grana, para completar o
orçamento, com tarefas pagas de revisão de textos alheios, o que provavelmente
o deixava, depois de um dia de trabalho, sem o menor saco para revisar seus
próprios textos. (Pelo menos é o que aconteceria comigo, nessas
circunstâncias.)