sexta-feira, 7 de março de 2008
0085) A mula-sem-cabeça (29.6.2003)
Poucas criaturas me parecem tão fascinantes, na mitologia popular, quanto a nossa mula-sem-cabeça. Nunca vi uma, mas já me conformei com a minha impossibilidade de ver coisas que todo mundo já viu.
Tive uma infância urbana em Campina, morando em ruas tranquilas como a Padre Ibiapina, a Solon de Lucena, a Miguel Couto, a Castro Pinto (atrás do campo do Treze) e finalmente a Estilac Leal, no Alto Branco, que é o mais próximo que cheguei de uma zona rural.
Infelizmente, mulas-sem-cabeça nunca galoparam pelo Alto Branco, nem mesmo quando ali chegamos no longínquo ano de 1961, e aquilo era uma imensidão verde, com um pedaço de rua aqui, outro acolá.
Nessa minha infância órfã de prodígios de carne e osso, sobraram para mim os prodígios de tinta e papel. Todo mundo já sonhou com botija, menos eu; todo mundo conhece alguém que é lobisomem por ser o sétimo filho, menos eu; todo mundo já conversou com o fantasma de um antepassado, enquanto que eu mal consigo trocar duas palavras com os vizinhos reais com quem desço no elevador.
Não é de admirar que, de binóculo em punho a noite inteira, eu ficasse procurando mulas-sem-cabeça desde a Ladeira da Guabiraba até os matagais em volta do Seminário, as moitas da Lavanderia Pública e os barrancos em volta da subida para o Anel do Brejo. Nunca vi nenhuma. Se não fôssem mestre Cascudo e mestre Lobato, teria ficado no zero ate hoje.
O mais impressionante na mula-sem-cabeça é sua natureza contraditória. Numa das muitas obras-primas de Monteiro Lobato, O Saci, os netos se Dona Benta se espantam: “A mula-sem-cabeça que bota fogo pelas ventas?! Mas, se não tem cabeça, como pode ter ventas?”
Segundo Câmara Cascudo, para que a Mula seja desencantada basta que alguém arranque o freio de ferro que ela traz preso entre os dentes. Mas, se não tem cabeça, como tem dentes?
Estas contradições metafísicas fazem da mula-sem-cabeça, mais do que uma mera criatura sobrenatural, uma criatura fantástica. Não é apenas a sua existência física que parece impossível, mas é impossível sequer imaginá-la, como aqueles seres das gravuras de M. C. Escher – seres possuidores de duas características que, a ser verdadeira uma delas a outra é necessariamente falsa.
Por que um minotauro nos parece mais ameaçador do que um touro? Porque o touro é apenas um animal feroz, e o minotauro, além de feroz, fere o nosso senso comum, nos impõe a presença de uma impossibilidade zoológica.
Nesta ordem de raciocínio, a mula-sem-cabeça ameaça algo ainda mais precioso: a nossa convicção de que o mundo faz sentido. Mordendo o freio de ferro e pondo fogo pelas ventas, a mula-sem-cabeça não pertence ao domínio do lobisomem, do vampiro ou do centauro, e sim ao domínio da raiz quadrada de menos 1, do Teorema de Gödel (que eu teria muito prazer em demonstrar aqui, mas o espaço não dá) e de frases auto-contraditórias como: “Isto é uma mentira”.
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