sexta-feira, 24 de julho de 2020

4603) Seis desmemoriados (24.7.2020)




1
Bartolomeu Correia Juçá, 66 anos, foi encontrado vagando na Praça Nossa Senhora da Paz, no Rio de Janeiro, e levado a um asilo. Tinha um documento com esse nome e a data de nascimento, e só. Não lembrava quem era. Não estava no Google, nem na Previdência Social. Dizia apenas que de repente acordou e estava ali, não lembra de nada que lhe aconteceu antes. Assistentes sociais e jornalistas pesquisaram todas as pistas possíveis, e nada encontraram. Era como se o mundo também não lembrasse mais quem ele era.

2
Lazslo Sandoi, 38 anos, foi descoberto ao chamar a atenção dos guardas e dos guias do Rijksmuseum, de Amsterdam, porque todos os dias entrava ali, sempre trajando a mesma roupa, e se postava na sala das “casas de bonecas”, onde ficava olhando para elas e chorando. Abordado, não soube dizer quem era nem o que fazia ali. Quando as notícias e fotos saíram nos jornais, alguém o identificou: era húngaro, representante comercial, tinha ido à Holanda a trabalho, e até aquele episódio nunca tinha sofrido nenhum problema neurológico ou emocional. Levaram-no de volta ao seu país, sob terríveis crises de nervos, apaziguadas apenas quando os médicos lhe forneceram copiosas fotografias das casas de bonecas que desencadearam o processo.

3
A Menina do Patriarca, 10 anos aproximadamente. Encontrada na Praça do Patriarca (São Paulo), sem documentos, aparentemente em estado de choque. Roupas novas, de boa qualidade. Saúde perfeita. Dentes bem tratados. Não dava mostras de entender o que lhe perguntavam. Foi mostrada em todos os telejornais. Foi conduzida a um abrigo. Não aparentava problema mentais e eventualmente conseguiu executar por iniciativa própria tarefas como dobrar roupas e lençóis, folhear revistas (não dava indicações de saber ler, mas manuseava as páginas com evidente familiaridade). Não demonstrava iniciativa para alimentar-se, ir ao banheiro. Está assim há dezenove anos. Nunca falou uma palavra sequer.

4
Charles Aronne, 47 anos, industrial, residente em Toulouse. Depois de um AVC, perdeu a capacidade retentiva da memória e vive recluso em casa, onde passa os dias, os meses e o anos maravilhando-se todos os dias com a beleza e a solicitude de sua esposa Marianne, de seus filhos Michel e Sophie, e de todos os amigos que se revezam diariamente contando-lhe quem é, o que já fez, do que gosta, em que acredita. Uma ou duas vezes por ano equipes de TV francesa e estrangeira vão entrevistá-lo: as entrevistas, vistas uma após a outra, parecem ter sido concedidas por diferentes pessoas, pois em cada época Aronne dá mostras de estar compondo uma identidade para si próprio a partir das conversas mais recentes que teve com as pessoas que lhe são próximas. Teve que reaprender a assinar o próprio nome, para poder firmar os documentos que os sócios trazem à sua casa.

5
Patrício Morais de Lautério, 49 anos, funcionário público, Belém do Pará. Aposentou-se por invalidez depois de ataques de amnésia que prejudicavam sobremaneira seu trabalho na repartição, e seus contatos com a família. Atualmente mora em casa, rodeado por parentes. Depois de vários dias em que está aparentemente normal, ele acorda sem saber quem é, mas acometido de um curiosidade intensa sobre os objetos em volta. Pergunta à família para que serve o travesseiro, o chinelo, a janela, a gaiola com pássaro, o prédio em frente. Pergunta a cada pessoa quem é, o que faz, do que gosta, que comidas prefere, que tipo de música escuta, qual sua cor favorita, que livro levaria para uma ilha deserta.  Não dá mostras de reconhecer a família, mas é gentil com todos. Isso dura um dia inteiro, até o próximo sono, do qual desperta normal e com um pouco de enxaqueca. Depois de mais de um ano de exames, os médico constataram que esses ataques ocorrem exatamente de 39 em 39 dias, mas além disso nenhum outro dado científico foi comprovado.

6
Lenny Grady, 40 anos, bluesman de Nashville, perdeu completamente a memória num acidente de carro aos 36 anos, mas foi cuidado com desvelo pela esposa Geraldine e pela filha Suzanne, até conseguir um relativo grau de autonomia. Perdeu a capacidade de falar e de lembrar as informações mais elementares, e durante meses permaneceu em casa, vagaroso, meio cambaleante, afável, sorridente, distraído, mas capaz de manter o próprio asseio e de se alimentar sozinho. Certo dia, um amigo o visitou levando o violão e nesse momento ele pareceu despertar parcialmente, pediu o instrumento e começou a cantar, meio hesitante, com a voz “enferrujada”, mas improvisando versos com relativa fluência para alguém naquele estado. “Nunca esquecerei aquele momento,” disse Suzanne, “quando ele dedilhou as cordas e me agradeceu pelo hamburger que eu lhe servira uma hora antes, dizendo apenas que estava muito apimentado, e estava mesmo, aquilo foi como um raio de luz numa noite escura, e desde esse dia tudo que ele quer dizer ele diz cantando... Só não lembra de nenhuma das músicas que fez.”