segunda-feira, 10 de março de 2008

0200) A linguagem das coisas (11.11.2003)




(João Cabral, por Percy Deane)

Dar voz às coisas da Natureza sempre foi um dos passatempos favoritos dos poetas. A poesia lírica incentivou tanto o culto ao sentimento que as emoções do poeta muitas vezes transbordavam dele próprio e encharcavam o mundo à sua volta. O poeta atribuía às coisas sua própria voz, as alegrias ou desânimos que ele próprio sentia. Era um tal de céu chorando de tristeza, nuvens despedindo-se para não mais voltar, oceano rugindo de fúria, árvores envelhecendo com dignidade, flores dando bom-dia ao sol, estrelas enviando beijos aos apaixonados, lua recolhendo confidências, margens plácidas ouvindo brados retumbantes...

Era um cacoete da literatura antiga, e lembro que um dos primeiros críticos desse mundo antropomórfico foi o romancista Alain Robbe-Grillet, um dos teóricos e praticantes do “Nouveau Roman” francês. Observava ele que era mais simples dizer que uma montanha era “majestosa” do que descrever o ângulo de sua inclinação. Num mecanismo que tanto tem de automático quanto de preguiçoso, o escritor sai humanizando tudo à sua volta.

Na poética de João Cabral predomina um processo que, como dizia o matuto, é a mesma coisa, só que completamente diferente. Cabral pode ser considerado o maior linguista de nossa poesia, no sentido de que para ele a Natureza é feita de linguagens. Uma das revoluções produzidas pela poética de Cabral foi varrer do mapa as emoções gratuitas, que os líricos banalizaram a ponto de tornar insuportáveis, e preparar o nosso espírito para a Era da Linguagem.

Na natureza semiótica de Cabral, tudo é linguagem, tudo são signos. O mar e o canavial são a mesma coisa: estilos diferentes de versejar. Um coqueiral é um idioma. Cemitérios se distinguem uma dos outros por pormenores estilísticos. Dançarinas andaluzas são comparadas (a quem mais ocorreria essa comparação) a uma auto-combustão espontânea, a um telegrafista, à capa e contracapa de um livro. Mesmo quando descreve emoções humanas, o que o poeta procura nelas não é o rumorejar afetivo dos sentimentos, mas a linguagem dessa emoção, a forma que ela transmite aos gestos de quem a sente.

A frieza e o cerebralismo de Cabral são uma reação necessária a séculos de poesia emotiva da-boca-pra-fora. Uma lipoaspiração necessária, um raspar de excessos, até deixar a nu a realidade e suas formas como fonte original do que nos emociona. Nos seus famosos estudos em que compara as técnicas de pintores, poetas, toureiros, etc., Cabral usou o título notável “O Sim contra o Sim”. Cada artista tem sua dicção própria, única, que lhe dá existência e personalidade como artista; e por extensão cada elemento da realidade também tem sua sintaxe, sua gramática de modos-de-ser, não importa se é uma cabra ou avião. A metaforização da linguagem, feita por ele, é um passo à frente necessário em relação ao vento que chora, ao rio que murmura, aos passarinhos que fazem declarações de amor.





0199) O delírio quantitativo (9.11.2003)



Meu primeiro contato com o Livro Guiness dos Recordes foi na infância remota, quando apareceu em Campina Grande um ciclista anunciando que iria passar 24 horas (ou 48?) andando de bicicleta, sem parar para nada. Campina inteira amontoou-se na Praça da Bandeira, que ele circulou alguns milhares de vezes, sob chuva e sol, até completar o prazo anunciado. Eu era pequeno, e tenho a vaga lembrança de um sujeito com roupa amarela e preta, e um capacete diferente dos que usam os motoqueiros de hoje.

Foi um contato indireto: o Guiness não tinha nada com aquela história, mas foi um contato com o conceito de Limite aplicado às façanhas físicas em geral. Até que ponto é possível alguém fazer tal e tal coisa? Quando tempo pode um maluco aguentar sem comer, suspenso numa gaiola transparente sobre o Tâmisa? Quantos quilos alguém levanta? Quanto tempo alguém fica sem dormir? Quantos chopes toma? Quantas milhas corre? Quantos gols, ou pontos, ou cestas, ou xeque-mates, ou títulos, ou prêmios, alguém consegue? Cada atleta faz sua tentativa e dá sua resposta: “É tanto.” E, como cada Olimpíada nos mostra, a cada ano aparece gente dando respostas que adiantam esse limite um milimetrozinho mais.

Não pratico esportes, o que é um grave defeito. Vejo na TV, onde o esporte é reduzido a um exercício mental. Sou contemporâneo do milésimo gol de Pelé, dos 11 gols num jogo só de Dario Peito de Aço, da quebra da barreira dos 10 segundos nos 100 metros rasos, da nota 10 de Nadia Comaneci, da interminável luta de Sergei Bubka quebrando suas próprias marcas. O ser humano não tem limites. Imagino que nunca ninguém chegará a correr 100 metros rasos em um segundo, mas é um problema da Física, da Biologia. Se dependesse só do espírito humano, da obstinação humana, conseguiríamos.

O problema com o Guiness é que esse senso arrebatador, épico, do Limite atlético, fica meio absurdista aplicado a outra coisas. Um cara quer ser o cara que comeu mais hot-dogs sem fazer pausa; outro que ser o que barbeou mais fregueses; outro quer bater o recorde de dançar rumba, outro o de ficar numa banheira, outro o de latir imitando cachorro, outro o de jogar malabares com garrafas de vinho. Estou inventando isto tudo, mas quanto quer de aposta que já existem?

A façanha atlética gera subprodutos: melhores técnicas de treinamento, dietas, equipamentos aperfeiçoados, novos softwares de avaliação física. Mas o recorde de jogar tortas num manequim, dia e noite, só pode gerar lucros para uma confeitaria. O delírio quantitativo é uma das alucinações coletivas mais poderosas de nossa civilização. Talvez seja um mal necessário, ou uma deformação inevitável. E não me refiro a coisas de fundo ético e moral como a ambição financeira. O delírio quantitativo é uma droga pesada. Não tem outro fim além de si mesmo, e o cara sempre acha que da próxima vez pode ir um milimetrozinho mais longe.


0198) Projeções mentais (8.11.2003)

Um antigo provérbio diz: “cuidado com o que você deseja, porque vai se realizar”. Existe no Universo uma força capaz de captar nossas projeções mentais e materializá-las. Quando eu era pequeno fiquei impressionado com um livro chamado Nos Templos do Himalaia, de um tal de Van Der Naillen, onde um guru se concentrava diante do narrador e fazia aparecer no chão, onde os dois estavam sentados, uma pequena nuvem difusa, que ia se tornando mais nítida, até se materializar num prego de aço, novo, reluzente. O narrador ficava abismado com aquela “criação a partir do nada”, mas o guru negava: tudo que tinha feito fora agrupar ali, pela força mental, átomos dispersos pelo espaço, e dar-lhes a forma desejada.

Anos depois, li o conto de Jorge Luís Borges “Tlon, Uqbar, Orbis Tertius”, a história de um mundo inverso ao nosso. Se nós vivemos num mundo onde predominam as leis da matéria, os habitantes de Tlon vivem num mundo idealista, onde a Realidade é produzida pela mente. Uma pessoa perde um lápis; acha-o, mas não diz nada; outra pessoa, sem o saber, acha um segundo lápis idêntico, produzido pela sua expectativa de encontrar o primeiro. Borges diz que em certas regiões de Tlon fazem-se escavações avisando aos operários os objetos (imaginários) que poderão encontrar, e eles efetivamente os encontram.

Alan Vaughan, em Incredible Coincidence, conta um episódio curioso. Certa noite de 1966, um grupo de professores ingleses, reunido no apartamento de um deles, divertia-se imaginando a criação de um romance satírico sobre Londres no futuro, sufocada pela explosão demográfica. Um deles sugeriu que o Hyde Park fosse usado como abrigo para os sem-teto. Outro sugeriu que entre os sem-teto houvesse intelectuais como eles, desempregados. Outro propôs um personagem vindo de Viena, e outro sugeriu um nome de sonoridade húngara, difícil de pronunciar, como por exemplo (inventou ele, depois de algumas tentativas) “Horvath-Nadoloy”.

Passou-se. Dois dias depois, Pearl Binder, um deles, leu no jornal a notícia de que a polícia tinha encontrado um estrangeiro vagando sem rumo pelo Hyde Park, à noite; interrogado, disse que seu nome era Horvath-Nadoloy. Diz Binder: “Sentimos que tínhamos inventado esse vagabundo, e ao longo do processo de inventá-lo acabamos por trazê-lo à vida, e uma vida não muito agradável.” Pois é – nossa mente é capaz de produzir criaturas através da imaginação. Ainda não somos capazes de entender todas as sutilezas do processo, pois são escassas as experiências controladas em laboratório. Um dia, contudo, descobriremos as “condições ideais de temperatura e pressão” para que o fenômeno se produza. Quando desejamos algo com suficiente intensidade, quando sonhamos uma pessoa com toda nossa energia, essa pessoa passa a existir. Não valeria a pena sair pelo mundo afora à sua procura, agora que fomos capazes de trazê-la à vida?

0197) A união dos contrários (7.11.2003)




(ilustração: Bernard Lietaer, em The Future of Money)

O símbolo oriental do Yin-Yang, que resume o pensamento Taoísta, é um círculo cortado verticalmente por uma linha em forma de S, que o divide em duas formas de tamanho igual e posição invertida, como duas gotas dágua encaixadas uma à outra.

Uma dessas gotas é branca, a outra é preta; na parte mais volumosa da gota branca há um pequeno círculo preto, e na parte correspondente da gota preta há um círculo branco. São formas simétricas, e cada uma traz dentro de si a semente do seu oposto.

Faz lembrar aquele velho preceito do Materialismo Dialético de meus tempos de estudante, de que em qualquer luta de opostos cada um deles traz em si a semente do seu contrário, a qual em determinadas condições pode ganhar força, ampliar-se, fazê-lo “virar a casaca” (era esse o termo). Algo parecido com o que referi na coluna “Os campos magnéticos” (15 de outubro).

Em seu poema “Os Dois Vigários”, Carlos Drummond compara as vidas de Padre Júlio (devasso, fornicador, desbocado) e Padre Olímpio (humilde, angustiado, auto-flagelante). Quanto mais um se entrega à devassidão e à blasfêmia, mais o outro se penitencia: “um pecava, outro pagava”. Numa noite, dois raios matam os dois vigários, que são enterrados juntos:

(...) iguaizinhos se tornaram:
onde o vício, onde a virtude,
ninguém mais o demarcava.
Enterrados lado a lado
irmanados confundidos
juliolímpio em terra neutra
uma flor nasce monótona
que não se sabe até hoje
(cinquenta anos se passaram)
se é de compaixão divina
ou divina indiferença.

Fim de papo.

Teria Drummond lido o conto “Os Teólogos” de Jorge Luís Borges (no livro O Aleph)? Nele, dois teólogos medievais cultivam uma longa rivalidade. Aureliano, o brilhante e famoso, inveja o talento de João de Panonia, o modesto e obscuro. Defendem a mesma igreja, as mesmas idéias; combatem as mesmas heresias; mas o tempo inteiro parecem dois repentistas rivais tentando superar um ao outro enquanto debatem sobre um tema aparentemente neutro.

Uma indiscrição involuntária de Aureliano leva João a morrer na fogueira; nesse dia, os dois se vêem pessoalmente pela única vez. Anos depois, um raio incendeia a cabana de Aureliano, que morre também entre as chamas. No céu (diz Borges), “Aureliano soube que, para a insondável divindade, ele e João de Panonia (o ortodoxo e o herege, o aborrecedor e o aborrecido, o acusador e a vítima) formavam uma só pessoa.”

Podemos ignorar a limpidez destas alegorias? O poema de Drummond vem (em Lição de Coisas) ao lado do poema “O padre e a moça”, onde amor e pecado se justificam mutuamente, “quando o homem é apenas homem / por si mesmo limitado, / em si mesmo refletido”. Cada um de nós é essa síntese de contrários; é, no verso primoroso de Olavo Bilac, “um demônio que ruge e um deus que chora”.

Todas estas obras são esforços para que possamos olhar de frente a Criatura Bifronte que forjamos à nossa imagem e semelhança, e admitir que para nós, também, Deus e o Diabo formam uma só pessoa.






0196) O fim do Marco Marciano (6.11.2003)














Quem se dá o trabalho de ler esta coluna provavelmente conhece algumas das minhas músicas gravadas por aí. Uma das minhas preferidas é “O Marco Marciano”, uma parceria com Lenine gravada por ele no CD O dia em que faremos contato (BMG, 1997). A letra é uma tentativa de reproduzir em clima de ficção científica a tradição dos “Marcos e Obras” dos poetas de cordel nordestinos. Os Marcos são fortalezas inexpugnáveis inventadas pelos poetas, usando todos os recursos descritivos ao seu dispor. Eles imaginam castelos cercados por fossos intransponíveis onde nadam piranhas e jacarés ferozes; muralhas de pedra e de aço; torreões munidos com canhões gigantescos; milhares de soldados armados até os dentes, prontos para resistir a qualquer invasão.

Os mais famosos Marcos estão transcritos no livro Marcos e Obras, de Átila Almeida e José Alves Sobrinho, em co-edição da Universidade Federal da Paraíba (Campus II) e Universidade Regional do Nordeste, de 1981. É um livro de valor inestimável, por transcrever (com ortografia original) os textos de 14 destes poemas, folhetos raríssimos que só umas poucas bibliotecas brasileiras possuem. O mais antigo é de 1907, o mais recente de 1947.

Inspirado nestes textos, o meu Marco em parceria com Lenine tem como ponto de partida as misteriosas imagens captadas em 1976 pela nave norte-americana Viking 1, ao sobrevoar e fotografar a superfície de Marte, pesquisando possíveis locais de aterrissagem para a futura Viking 2. Fotos feitas na região marciana conhecida como Cydonia causaram sensação, quando divulgadas pela Nasa. As fotos mostram uma colina ou elevação natural que, com iluminação lateral fazendo um jogo de sombra e luz, lembra um rosto humano. Pior ainda: lembra o rosto dos macacos do filme O Planeta dos Macacos!

As fotos ficaram famosas no mundo inteiro, e era de fato tentador imaginar naquela região um “Vale dos Reis” marciano: nas formações rochosas em volta o pessoal mais animado começou a ver “praças”, “pirâmides”, “rodovias”... Acusaram a Nasa de estar escondendo fotos ainda mais reveladoras – o que me parece um contra-senso. Se a Nasa, notoriamente com falta de verbas, descobrisse sinais de uma civilização marciana extinta, teria todos os motivos para tornar essa descoberta pública e convencer o Congresso a liberar mais uns bilhõezinhos. Fotos feitas em 2001, contudo, fizeram os marcianólogos abaixar a crista. Com câmaras de mais resolução, e melhor tratamento de software, as novas fotos mostram que a aparência humana do “rosto” era ilusão de ótica. Quem quiser tirar a prova pode dar uma olhada em:

http://www.msss.com/mars_images/moc/extended_may2001/face/index.html.

A discussão cessou, ninguém fala mais no “Rosto em Marte”. (É claro que eu tomei as devidas providências para interferir nas câmaras. Não ia deixar os americanos fazerem com meu Marco o que fizeram com o Afeganistão e o Iraque.)

0195) A cruz de Descartes (5.11.2003)




A cruz é o símbolo da Cristandade. (Fico às vezes imaginando como seria a iconografia cristã se Cristo tivesse morrido na forca) É também o símbolo da grande contribuição do filósofo René Descartes para a matemática: o famoso “eixo cartesiano”. 

O leitor deve ter uma razoável lembrança dos seus anos de ginásio. O eixo cartesiano é aquela cruz onde a linha horizontal representa os valores da incógnita “x” e a linha vertical os valores de “y”, ou seja, o valor da função proposta. 

Se a gente diz que x + 2 = y, por exemplo, para cada valor que a gente atribuir a X o valor de Y mudará de acordo.

Descartes teve a intuição de representar isso visualmente através de linhas onde seriam marcados esse valores, como numa régua. 

Descobriu também que o gráfico da função linear (sem quadrados) é uma reta; quando o X está elevado ao quadrado, o gráfico é uma curva. 

Pode parecer difícil, mas é algo de uma simplicidade e de uma beleza estonteantes. E muito útil também. Toda a computação gráfica que usamos hoje, desde os comerciais de TV até Matrix Reloaded, baseia-se nesta possibilidade de batizar numericamente todos os pontos de um espaço, atribuir-lhes características, e planejar seus deslocamentos.

Mas é curioso que uma tal descoberta tenha surgido a partir da Cruz, que não é somente o instrumento de suplício usado pelos romanos. Ela é também um símbolo místico de união entre o humano e o divino. 

O traço horizontal da Cruz, que lembra o horizonte, é o símbolo do mundo visível, material. 

O traço vertical, que se eleva às alturas e desce às profundezas, significa a existência de um mundo espiritual. 

O centro da Cruz (que corresponde ao que chamamos “o zero cartesiano”) é onde está o corpo de Cristo, simbolizando em si a fusão entre o humano e o divino.

Descartes tinha a saúde frágil; desde a infância acostumou-se a passar a manhã inteira na cama, pensando. Foi soldado, cortesão, aventureiro. Viajou a Europa inteira, sofreu perseguições religiosas e políticas, foi acusado de herege e de fazer parte do Colégio Invisível dos Rosacruzes, cujos manifestos filosóficos causavam reboliço na Europa do século 17. 

Acabou indo morar na Suécia, convidado a dar aulas de filosofia à Rainha Cristina (aquela interpretada por Greta Garbo num dos seus melhores filmes). Forçado a acordar às 5 da manhã no inverno, morreu pouco depois, aos 54 anos.

Teria Descartes percebido que seu “eixo”, gene inicial de toda a Geometria Analítica, permitia afirmar que para cada valor que atribuímos a X, o Homem, teremos uma função de Y, que é Deus? Que com isto ele fundia a matéria e o espírito, o mundo humano e o mundo divino? 

Seu sucesso em fundir geometria e álgebra nos possibilita não só descrever matematicamente uma imagem, mas criar uma imagem com recursos puramente matemáticos. A Imagem e o Número, o corpo e a alma, o profano e o sagrado encontraram-se num ponto-zero, e esse ponto chamou-se René Descartes.






0194) Mário de Andrade vai ao paraíso (4.11.2003)




Se Mário de Andrade fosse vivo, estaria feliz como pinto no lixo. Com aquele entusiasmo meio adolescente que tinha, ele estaria em plena campanha Brasil afora, subindo em bancos de praça ou cadeiras de engraxate, e bradando: “Brasileiros! Chegou a hora de fotografar a alma do Brasil! Escutem o rumor profundo dos terreiros! Joguem nas águas do Jequitinhonha as folhas de partitura, as canetas-tinteiro, as máquinas lambe-lambe! O século 21 trouxe a lâmpada mágica da etnografia amadora! Viva a inclusão digital! Viva a câmara portátil, o celular-com-gravador, o scanner, o CD a meio-real, e o bilhão de prateleiras vazias nos sótãos da Internet, pedindo serem preenchidas pela memória cultural brasileira! Apertem o botão, porque o Brasil já está cantando há 500 anos! E viva a rapaziada!”

O brado de “viva a rapaziada” é de Oswald, mas não faz muita diferença, porque isso tudo é só viagem mesmo: os Andrade estão mortos e enterrados, mas não devemos perder de vista o enorme heroísmo de mestre Mário, turista aprendiz de pesquisador, que bateu pernas por esse Brasilzão afora, canetinha em punho, copiando letras, transcrevendo melodias e registrando coreografias de cocos, congadas, marujadas, fandangos, tambores-de-crioula, catopês, cabocolinhos, maculelês, maracatus, canmtorias, cirandas e aboios. Um trabalho hercúleo para aquele o sujeito magro, alto, tímido, míope, com sotaque paulistano, totalmente estranho àquele ambiente, mas conseguindo, a poder de simpatia e respeito, extrair depoimentos, cânticos, exemplos e memórias daqueles poetas e músicos cujos netos estão hoje de cabelos brancos.

Tudo que Mário registrou à mão é possível registrar hoje com “a mais avançada das mais avançadas das tecnologias”. A grande importância do milagre digital não é a perfeição técnica que se pode alcançar: é a acessibilidade econômica de seus prodígios, o nivelamento-por-baixo das despesas necessárias para montar uma equipe de gravação de um homem só. E o Brasil está respondendo ao apelo de Mário. Por todo lado me chegam notícias de jornalistas que, mesmo para produzir uma matéria escrita, levam sua camarazinha e registram imagem, voz e discurso oral do velho mestre-sala, da velha mãe-de-santo, dos tocadores de rabeca ou batedores de bombo perdidos lá nas brenhas onde a caneta nunca chegou e onde hoje a câmara chega pela primeira vez. São professores universitários, são músicos pesquisadores, são estudantes que vão direto ao assunto, são pessoas que, com uma camarazinha, um gravadorzinho, estão registrando neste início de século 21 o apagar das luzes de uma cultura que até hoje viveu isolada atrás dos muros do Brasil oficial.

Com um décimo do esforço de Mário podemos fazer hoje dez vezes mais do que ele fêz. Podemos mostrar ao mundo que a Música Invisível Brasileira é uma contribuição que só nós podemos dar à humanidade. Mãos à obra, galera. Fotografemos esta nuvem, antes que ela vá chover no mar.

0194) Escrito nas estrelas (2.11.2003)





Certa vez, quando eu participava do “Encontro Para a Nova Consciência”, em Campina, me perguntaram o que eu achava da Astrologia. Respondi: “Astrologia é a ciência de ganhar dinheiro dando conselhos aos astros e estrelas da televisão.” Esta singela definição provocou algumas chuvas e trovoadas, mas não abalou a amizade que mantenho com vários astrólogos. Eles sabem que eu sou cético mesmo, e que não abro nem prum trem. Se eu duvido até do que dizem os astrônomos, por que iria acreditar nos astrólogos? Não obstante, cada um acredita no que lhe convém, e as coisas em que acreditamos são tão relativas quanto a importância dos times de futebol por que torcemos.

Mesmo assim, um dos meus passatempos favoritos é bancar o advogado do diabo, e quando estou tomando chope no meio de uma turma e alguém diz que não acredita em Astrologia, eu faço cara de inocente e pergunto: “Qual é teu signo?” Geralmente a pessoa responde em cima da bucha. Faço cara de desinformado e pergunto quais são as características do signo, e a resposta é sempre do tipo: “Bom, eles dizem que o geminiano é dividido em polos opostos, que é capaz de atitudes extremas e contraditórias...” Ou seja, ele não acredita, mas se tiver uma prova oral ele passa com louvor. Por que isto? Porque a Astrologia está entranhada em nossa cultura, se infiltra por todas as brechas, aparece no rádio, no jornal, na TV, nas revistas, nas livrarias. Não há quem fuja.

A premissa básica da Astrologia é, para mim, completamente furada: a de que a posição dos planetas e estrelas no céu, no momento do nascimento, cria uma rede interligada de forças cósmicas que influencia nosso temperamento. Não é apenas “o signo”, único critério adotado nos horóscopos de jornal (que os próprios astrólogos reconhecem ser furados): é o ascendente, é a posição da Lua, de Marte, é o “Saturno da 5ª casa”, e assim por diante. Uma álgebra com uma dúzia de incógnitas, e talvez venha daí a atração que faz muita gente acreditar nela. Existe uma aparência de ordem naquela beleza toda, existem tabelas astronômicas que informam ou predizem a posição dos astros. A composição de mapas astrológicos é uma forma de arte autônoma, que mistura partes iguais de geometria, simbologia icônica, projeções matemáticas e intuição psicológica. É algo tão bonito que o camarada acaba acreditando que é verdadeiro.

O que eu acredito é que existem tipos recorrentes de pessoas. Não sei dar nome a esses tipos, mas frequentemente penso: “Ah, já sei, Fulano é igualzinho a Beltrano e Sicrano: age de tal e tal maneira.” Os adeptos do candomblé atribuem esses tipos à influência de orixás específicos. C. G. Jung criou uma tabela de “tipos psicológicos” baseado em suas sessões de análise. Atribuir a existência deles à harmonia gravitacional dos astros não é, para mim, uma atitude científica, mas uma atitude poética. Se não é científico, então não tem base factual; mas se é poético é verdadeiro. Tá bom assim?

0192) Pulp Fiction (1.11.2003)




Um dos estudos que mais me fascinam é o da chamada Pulp Fiction, a literatura de revistas baratas que floresceu nos EUA entre as décadas de 1920-1950. Esnobada por uma parte da crítica e da historiografia literárias, essa literatura vem sendo reavaliada nas última décadas. Não que os críticos de hoje tenham descoberto nela as mesmas qualidades que se vêem na obra de Faulkner, Hemingway ou Henry James. Essas qualidades não estão lá. Mas há outras qualidades que podem ser vistas em retrospecto, qualidades que explicam o enorme sucesso popular que essas revistas tiveram, e o fascínio que ainda exercem.

O termo “pulp” vem do papel usado naquelas revistas: pepel feito da “polpa” da madeira, um papel barato, amarelado, facilmente degradável devido a sua alta acidez. As revistas que possuo, dos anos 1920-30, estão todas amareladas, cheias de manchas escuras, as bordas quebradiças, esfarelando-se. Talvez cheguem a completar um século antes de se desmancharem; em todo caso, durarão mais do que eu. Eram revistas com enormes quantidades de texto, em duas colunas, tipo miúdo. Publicavam contos, mas às vezes continham o equivalente a um pequeno romance. Tinham ilustrações em preto-e-branco no interior, mas suas capas, em cores vivas, pintadas a óleo, eram muitas vezes notáveis.

Nos EUA havia “pulp magazines” de todos os gêneros: policial, western, aventuras, terror, romance, aviação, boxe, guerra... No Brasil tivemos um mercado restrito para este tipo de publicação. Nos anos 30, por exemplo, a Editora Globo de Porto Alegre publicava “A Novela”, pulp magazines com cerca de 190 páginas, e que publicavam obras como “O chinês misterioso” de J. S. Fletcher, “O capitão Kaiman” de Karl May ou “O filho do forçado” de Alexandre Dumas. Os pulp magazines mais bem sucedidos entre nós foram os de contos policiais da Rio Gráfica Editora nos anos 1940-1960: “X-9”, “Suspense”, “Meia-Noite”, “Detetive”, por cuja editoria passaram nomes como Nelson Rodrigues e David Nasser.

As principais contribuições da Pulp Fiction para a literatura foram na ficção científica, no romance policial e na história de terror. Florescendo numa estufa ao abrigo das regras acadêmicas, a literatura que brotou ali beneficiou-se de um imenso feedback entre escriotores e leitores, e do fato de que esses escritores não aspiravam à glória literária, e sim à sobrevivência, o que os fazia produzir quantidades industriais de texto. Suas obras não valem como o produto refinado de mentes individuais ao longo de uma longa reelaboração: valem como o raio-X psicanalítico de uma civilização inteira, jogado em-bruto na página, numa verdadeira escrita automática que mistura partes iguais de realismo cru, simbolismo freudiano, pesadelo urbano, fantasias eróticas, delírio tecnológico. São a realização maciça, em centenas de revistas para dezenas de milhões de leitores, dos “contos do grotesco e do arabesco” imaginados por Edgar Allan Poe.

0191) Cordel na sala de aula (31.10.2003)




Caros leitores, espero que não me censurem por fazer neste discreto espaço a publicidade de minhas atividades profissionais. Na próxima semana estarei em João Pessoa participando do Fenart, numa mesa-redonda sobre Cultura Popular na terça (dia 4), e realizando uma oficina sobre Cordel de quarta a sexta-feira (dias 5 a 7), sempre à tarde. A Oficina, parece-me, será aberta ao público em geral, mas se dirige principalmente a professores do nível fundamental e médio. Seu título é: “Cordel: como escrever, como ensinar”. Mais informações com a Funesc, no Espaço Cultural.

Ministrei esta oficina nos últimos anos em São Paulo, por iniciativa de Antonio Nóbrega, meu parceiro em canções e peças teatrais. A idéia de Nóbrega, com seu Teatro Brincante, é ministrar oficinas sobre cultura popular brasileira para professores que lidam com crianças e adolescentes em São Paulo. Como estes professores geralmente são paulistas, têm dificuldade em abordar o folclore, a arte nordestina em geral. Daí, o teatro faz oficinas diferentes a cada mês. Por exemplo: em março os alunos estudam Frevo, em abril estudam Artesanato em Barro, em maio estudam Bumba-meu-boi, em junho estudam Mamulengos, etc.

Num desses meses, estudam poesia popular nordestina: o Romanceiro e a Literatura de Cordel. Noções elementares de métrica e rima (que muitos poetas profissionais, acreditem, às vezes ignoram), história do romanceiro ibérico trazido pelos colonizadores, e noções práticas da arte da poesia. Alguém já saiu desta Oficina (ou de qualquer outra) diplomado como poeta? Duvido. O objetivo é transmitir as regras do cordel, as noções básicas de como escrevê-lo, e alguns truques postos em prática por quem joga esse jogo há vários anos.

Mais do que formar poetas, oficinas deste tipo (que hoje acontecem em muitos pontos do Brasil) querem ajudar o professor a transmitir para crianças e adolescentes o gosto descompromissado pela poesia, pela expressão verbal, pela brincadeira com rimas e com ritmos, pela possibilidade de se expressar através da “linguagem enriquecida” que é a poesia. Não estou muito a par do que as escolas de hoje ensinam sobre poesia. Quando eu tinha 12 anos tinha que decorar o que era écloga, ditirambo, arcadismo. Foi em casa que aprendi a contar sílabas, a escolher uma rima, aprendi a fazer quadrinhas e pés-quebrados, e aprendi que poesia não tem receita. Existe o verso livre, o metro livre; e existem formas fixas, com regras claras. O cordel é uma destas. Afora isto, temos todo o direito de escrever o que nos dá na telha. O cordel nordestino nasceu porque um bando de nordestinos humildes, sem títulos acadêmicos, muitas vezes autodidatas que jamais sentaram num banco de escola, sentiram-se no dever de aprender a fórmula, e no direito de escrever o que lhes dava na telha. Que esse dever e esse direito sejam restaurados para os meninos nordestinos de hoje, é o mínimo que podemos desejar.

0190) O mundo e o computador (30.10.2003)




Por que motivo tantas pessoas, geralmente homens, se viciam em computador? Eis um mistério que outras tantas pessoas, geralmente mulheres, se esforçam em vão para desvendar. Tenho um amigo que acabou um noivado por causa do computador. Ele acordou às 8 da manhã de um sábado, e ligou o PC, porque precisava pegar algo na Internet para resolver um problema de vírus. Às 10 a noiva ligou: “Não esqueça que hoje tem o casamento do meu irmão.” Ele: “Pode deixar.” Ao meio-dia ela ligou de novo: “Me pega às 4, o casamento é às 5.” Ele: “Tá combinado.” Às 2 da tarde, ela voltou a ligar: “É melhor eu pegar você. Passo aí às 4.” Ele: “Tudo bem.” Ela ligou do celular às 4:30: “Estou aqui em baixo.” Ele mandou subir. Ela subiu, abriu a porta com sua chave, e o encontrou sentado diante do computador, de cueca, em jejum, a barba por fazer, os dentes por escovar. Quando ela começou a chorar e esbravejar, ele disse: “Mas, por que você não avisou que o casamento era hoje?”

Mania? Psicose? Não sei, só sei que muitas amigas já choraram metaforicamente no meu ombro suas lamentações pelo fato do marido passar as madrugadas pulando de saite em saite, ou esperando horas pela chegada de um arquivo que, uma vez instalado, revela ser apenas um protetor-de-tela com espaçonaves atirando umas nas outras. Não adianta dizer que muitos saites são utilíssimos: têm textos difíceis de conseguir, letras de rock progressivo, teses de doutorado de universidades escocesas, estatísticas sobre alpinismo ou Fórmula-1, mini-câmaras mostrando como está o trânsito naquele momento na Quinta Avenida. Se fosse só isto, estava explicado; mas tem gente que passa a noite testando programas, instalando fontes, otimizando o disco rígido.

Acho que o que mais nos seduz num computador é o fato de sabermos que, ao contrário do Universo, tudo nele foi colocado com um propósito. Nada num computador se deve ao Acaso; pode até se dever a um erro ou à burrice de quem programou, mas foi posto ali por alguém. Quando examinamos a fundo um mistério qualquer da natureza, nosso trabalho não é o de um detetive que tenta reconstituir o raciocínio do “autor do crime”. A Natureza é um crime sem autor. O Universo não tem propósito: ele simplesmente aconteceu. Num computador, não. Quando a gente tem dificuldade de executar um programa, ou de instalar um jogo, ou de anexar um arquivo a um email, a dificuldade é nossa, mas a coisa funciona. Foi feita para funcionar. Se a gente insistir, acaba descobrindo.

Esta humilde esperança teleológica é o queijo que nos atrai à ratoeira cintilante onde, uma vez presos, vemos se esvaírem as horas, os dias, os noivados. Um computador é um labirinto, mas se encontrarmos o caminho certo, chegaremos onde queremos. Já o mundo, ou o coração feminino, nada nos garantem. Ah, se as noivas, ou o Universo, nos dessem esta mesma certeza: a de que a resposta existe, e que tantas noites de perguntas não foram em vão.

0189) Essa história de lambada (29.10.2003)

Existe uma música que vem se impondo há anos como forró, mas que é uma derivação da lambada. Uns a chamam “forró avestruz com leite”, porque não tem a menor semelhança melódica, rítmica, instrumental ou poética com o forró, que defino a partir das obras de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, João do Vale, Antonio Barros e Marinês. Todo mundo é livre para fazer forró. Eu mesmo já compus vários. E é claro que cada artista mistura a esse forró tradicional seus elementos próprios. O forró feito por Totonho ou Geraldo Azevedo não pode ser o que é feito pelo Trio Nordestino. Tem outros elementos.

O problema é quando começam a chamar de forró uma música que não tem a mais remota ligação com ele, a não ser o fato de que é feita no Nordeste, por músicos nordestinos, e aqui ou acolá aparece uma sanfona. Esse falso forró não passa de uma adaptação da lambada, que por sua vez é uma adaptação do “zouk”, um tipo de música dançante muito tocado nas colônias francesas do Caribe (Martinica, Guadalupe, etc.). Nela, misturam-se passos das danças de salão tradicionais, com ênfase na rodadinha que faz subir o saiote, mostrando a calcinha da dama.

No verão de 1988 o cinesta Olivier Lorsac foi fazer um documentário em Porto Seguro. O ambiente, a música, a sensualidade das pessoas, tudo isto lhe deu a idéia de criar um produto que pudesse ser vendido no mundo todo. Ele chamou o produtor musical Jean Karakos, e os dois bolaram uma estratégia. Primeiro, formaram um grupo, o Kaoma, com músicos franceses e uma vocalista brasileira. Pensaram em lançar logo um disco, mas não se apressaram. Em vez de visar o verão europeu de 1988, organizaram-se para que tudo estourasse no verão seguinte, meados de 1989. Neste ínterim, a banda foi compondo e ensaiando, e eles vieram ao Brasil para comprar os direitos de execução de todos os artistas com repertório do gênero: Beto Barbosa, José Orlando, Banda Mel, etc. Foram assinados contratos com o refrigerante francês Orangina e com a rede de televisão TF 1. No verão de 89, o mundo inteiro viu o casal de dançarinos (o menino preto e a menina loura) dançando ao som de “Chorando se foi, quem um dia já me fêz chorar...”, uma bela canção em tom menor.

A lambada é uma picaretagem? É um golpe? É um crime? É um assalto cultural? Não, nada disso: é comércio puro e simples, é o que acontece quando alguém tem a percepção correta de que um produto “vai vender como água” – percepção sutil, tão intuitiva e refinada quanto a inspiração artística. A lambada foi uma jogada de marketing que enriqueceu alguns de seus participantes (a vocalista, e co-autora de “Llorando se fué” confessa ter cedido seus direitos por uma merrequinha). O problema é a quantidade de jogadas semelhantes que inspirou em empresários que, não podendo usar o termo “lambada”, para não pagar direitos aos donos, usam o termo “forró”, cujo dono é o Povo. O problema é que o Povo não pode tirar escritura do que é seu.

0188) Avestruz com Leite (28.10.2003)



Tenho uns amigos que, apesar de gostarem muito de mim, estão considerando a possibilidade de fazer uma vaquinha e pagar um pistoleiro para dar cabo da minha inofensiva pessoa, pela minha mania de falar mal do forró falsificado que anda se espalhando no mundo feito uma impingem. Dizem que eu sou retrógrado, conservador e arcaico, que só admito como legítimo o forró pé-de-serra, e que nego a possibilidade de evolução de uma música que continua viva, atuante, e amada pelo Povo. “Você pode detestar um tipo de música,” dizem, “mas deixe o Povo gostar.”

Ora, quem sou eu pra mandar no Povo? Eu não mando nem na minha casa! Por outro lado, o coração do Povo é grande, o Povo ama tudo que toca no rádio. O Povo ama toda música que escuta, porque o Povo tem um coração puro como o de Garrincha. Garrincha era irresponsável, cachaceiro, raparigueiro, mas era um dos sujeitos mais puros e mais honestos que já passaram por este país: ele amava só o futebol, a dança da bola, e para ele todo o resto era secundário. Por essa pureza ele acabou como acabou, e por essa pureza (que começa por achar que todo mundo é tão puro quanto a gente) o Povo brasileiro vai acabar onde vai acabar.

O chamado forró Avestruz Com Leite é uma música charmosa, alegre, saltitante, excelente para os que têm jeito (não é meu caso) de pegar a “cavaleira” pela cintura e botá-la para fazer piruetas salão afora, só tocando no chão de vez em quando pra se lembrar que ele existe. Essa dança tem nome: chama-se lambada, e foi uma invenção de dois franceses (Lorsac e Karakos), em 1989. O sucesso internacional disso fêz surgir uma porção de grupos que, não podendo usar o termo “lambada” (que os franceses, sabiamente europeus, registraram) optaram por “forró”. O resto é história.

Não tenho nada contra essa música – mas não é forró. Se a chamassem de “partido alto” ou de “blues”, eu também protestaria. Não podemos permitir que empresários e publicistas passem por cima de uma história musical inteira, e comecem a chamar Jesus genésio. Isto não é conservadorismo: é impedir estelionatos culturais, é impedir que um cara rico venda seu produto usando o rótulo do concorrente mais pobre, ou passe um cheque seu usando a assinatura de quem tem, de fato, saldo no Banco da MPB.

Não sou contra “forró eletrônico”. Aliás, alguns dos artistas que mais gosto fazem justamente forró eletrônico: estão aí Mestre Ambrósio, DJ Dolores, Cabruêra, Silvério Pessoa, Cascabulho. No trabalho de todos estão presentes células melódicas, rítmicas, estruturais, instrumentais, sonoras e poéticas do forró. Não é forró pé-de-serra. É uma música criada por músicos que amam a música, que ouvem Gonzaga e Jackson mas não querem imitá-los. É o forró de hoje, e se Deus quiser será o forró do futuro próximo. A lambada, como música, tem seu espaço, seu momento, seu público. Nada contra. Mas se deixarem, esse pessoal acaba invadindo a Argentina e dizendo: “Isto aqui chama-se tango”.

0187) Ato de misericórdia (26.10.2003)



Venho andando pela rua e um cara me aborda. Diz que é do Paraná. Está desempregado, foi expulso da pensão por falta de pagamento, não dorme há três dias, me pergunta o que fazer. 

É um cara de seus quarenta e poucos anos, meio careca, bem vestido (ou pelo menos com uma roupa equivalente à minha), fala com correção. 

Diz que é professor mas está procurando emprego de garçom. Eu, que já fui professor, meto a mão no bolso e entrego dez reais ao sujeito com votos de boa sorte.

Quando giro nos calcanhares e vou embora, vem a raiva. Sou mesmo um otário! O primeiro malandro que me pára na rua leva dez reais com meia-conversa! Deixei de comprar um livro de Rubem Fonseca agora mesmo, na Feirinha do Livro, que era dez reais. Aí vem o conversador e leva “dezinho” assim, sem mais nem menos. 

Espanto para longe essa idéia, mas quando abro a janela da mente para que vá embora, uma outra se insinua, solerte. Acabo de cometer um terrível erro. O cara é sequestrador. Quando nos despedimos, não apertamos as mãos, eu não disse meu nome, e ele o dele? Claro que me deu um nome falso; eu, idiota como sou, poderia ter dito Felisberto ou Venceslau, mas não, dei de graça a informação que ele vai usar para, seguindo-me até o prédio em que moro, convencer o porteiro a deixá-lo entrar dizendo que é meu amigo. (E de quebra pedindo mais 10 reais ao coitado do João). 

Quando eu abrir a porta (quem disse que eu olho pelo olho mágico?), ele vai me render com um 38, pedir 1 milhão de dólares, um colete à prova de balas e um helicóptero.

Tudo isso dura o tempo que eu levo para passar na primeira banca; basta ver uma capa de revista ou manchete de jornal que minha cabeça (que tem a péssima mania de pensar o tempo todo) mude de assunto e passe a pesar os prós-e-contras da Alca ou a teoria aerodinâmica da modelo na moda. 

Mas de noite, diante do teclado, pensando qual foi o fato principal do dia, me vem este à memória. Admito que sou mesmo besta. Qualquer papo me comove. Nunca fui pobre, nunca passei necessidade, mas já me vi muitas vezes em cidade estranha, sem ter onde dormir, sem conhecer ninguém, com dinheiro contado no bolso. Aqui mesmo no Rio, no meu tempo de estudante, já dormi mais de uma vez sentado num banco da Rodoviária, por ser o lugar que eu mais conhecia na cidade inteira. Por que não ajudarei o cara?

Ninguém é tão bonzinho que não seja interesseiro. Cada vez que nossa mão direita pratica uma boa ação, nosso olho esquerdo espreita o dia futuro em que receberemos de volta, com juros, essa poupança esperançosa. 

O cantador João Furiba conta em suas memórias como certa noite em Petrópolis, sem dinheiro no bolso e debaixo de chuva, viu um carro parar e o motorista oferecer-lhe uma carona. Era um sujeito a quem ele tinha emprestado um dinheiro muitos anos antes, e que surgiu naquela noite fria, como quem sai de dentro da cartola do Destino. Então pronto. Se aconteceu com João Furiba, por que não aconteceria comigo?





0186) O poeta principiante (25.10.2003)



(ilustração: Katerina Kamprani)

Vivo cercado de poetas principiantes. Não há menosprezo nesta palavra. Tudo no mundo tem que principiar; então, que os poetas comecem a poetar desde cedo, porque escrever poesia é como dançar gafieira, requer longa prática e treino constante. Existe uma coisa que às vezes é chamada, um tanto pomposamente, “o fazer poético”, e que é um conjunto de técnicas. Tudo tem uma técnica. Dançar gafieira tem uma técnica, mas saber a técnica não adianta, se você não tem jeito para a coisa.

Um erro típico do poeta principiante é querer publicar tudo que escreve. O cara pega os primeiros 50 poemas que escreveu na vida, passa a limpo e manda para uma editora. Isto equivale a um músico mandar para uma gravadora suas aulas de violão, na esperança de que alguém queira pagar para ouvi-lo aprendendo a fazer o tom de Dó Maior. Os primeiros exercícios são penosos, são constrangedores, e mesmo quando os resultados são bons, é melhor guardá-los, e continuar escrevendo. Primeiros poemas são sempre regurgitações de poemas alheios, são reciclagem de clichês, são reflexos de grandes versos que lemos e nunca mais saíram de nossa memória, ficaram ali, moendo, moendo, contaminando tudo que tentamos colocar em palavras.

Os poetas surrealistas dos anos 1920 diziam que para chegar um dia a produzir grandes poemas é preciso “limpar a estrebaria intelectual”, jogar para fora todos os detritos verbais que absorvemos nas leituras, nas conversações do dia-a-dia, no cinema, no rádio... O tempo inteiro estamos registrando frases, piadas, versos, palavras novas, trechos de canções, gírias, jargão profissional. Nosso vocabulário e nosso senso de sintaxe são formatados ao longo desse bombardeio que dura a vida toda. Não temos controle sobre o que lemos e ouvimos. O momento de ter controle sobre essa bagunça é o momento de escrever.

É típico de poetas principiantes querer preservar a dimensão biográfica dos próprios poemas: momentos de sua vida pessoal, ou etapas do seu aprendizado poético. Vai daí, os poemas dos primeiros livros de um poeta geralmente vêm todos datados, alguns com requinte de detalhe: “14 de outubro de 2003, 16:30, praia de Copacabana.” Eu já fiz isso, todo mundo já fêz isso, mas hoje eu acho que tais particularizações não interessam ao leitor. O poema deve ir “a seco”para a página. O link biográfico deve ficar para o biógrafo, se um dia houver.

A maioria das pessoas começa a escrever poesias para desabafar sentimentos ou registrar estados de espírito. São poucos, por exemplo, os que começam a escrever poesias para contar histórias, ou para descrever lugares e ambientes. A poesia é considerada uma forma de olhar para dentro, de se auto examinar; e o poeta principiante recorre a ela quando está (para usar a linguagem de hoje) emocionalmente fragilizado. Quando se sente seguro de si, lúcido, mente acesa, o poeta principiante acha que não precisa escrever. Ele troca de roupa e vai beber com os amigos.


0185) A dublagem (24.10.2003)

Já vi várias vezes, no cinema e na TV, o trabalho de dubladores profissionais, e tiro o chapéu para essa rapaziada. Num certo sentido, é mais difícil ser dublador do que ser ator. O Ator, quando dá suas falas no filme, está vestido a caráter, está contracenando de verdade com outros atores, está mergulhado na ilusão momentânea da cena. O Dublador não: está com o texto na estantezinha à esquerda, um cronômetro digital à direita, uma tela à frente e fones nos ouvidos. É muito mais frio, mais entrecortado. Dois atores que berram um para o outro durante uma luta de espadas ofegam porque estão ofegando mesmo; já os dubladores têm que recriar não só a intenção emocional da voz, mas também a falta de fôlego. E assim por diante.

A dublagem brasileira pode até não ser a melhor do mundo, mas já vi trabalhos muito bons. E no entanto... por que motivo a gente tem (eu pelo menos tenho) uma certa rejeição aos filmes dublados? Por que motivo a gente sente que existe ali alguma coisa de falso, alguma coisa faltando, alguma coisa que não bate com o que era para ser?

Os cinéfilos mais puristas queixam-se da ausência da voz de seus atores preferidos. Jorge Luís Borges (em Discusión) comenta as criaturas híbridas da mitologia (a Quimera, etc.) e depois diz: “Hollywood acaba de enriquecer este inútil museu teratológico; por obra de um artifício maligno chamado dublagem, propõe monstros que combinam as ilustres feições de Greta Garbo com a voz de Aldonza Lorenzo.” Concordo que a voz da sueca toca um diapasão oculto que a das suas dubladoras nem sonha; mas não é só isso.

O que de fato nos incomoda, ao ouvir frases em português coloquial emergindo dos lábios de Sean Connery, Harrison Ford ou quem quer que seja, é percebermos que um ator não é uma criatura una e indivisível, alguém que surge por inteiro e desaparece por inteiro. Um ator é uma combinação de camadas áudio-visuais (feições, movimentos, voz, etc.) que podem ser separadas entre si, mantendo-se umas, modificando-se outras. Percebemos que aquilo foi mexido; houve uma interferência no processo que produz em nós a ilusão pela qual pagamos. E, se houve esse nível de interferência, quem nos garante que não há outro? Quem nos garante que aquela que vemos na tela é mesmo Isabela Rosselini, e não uma sósia? (Admito que um mundo onde existam sósias de Isabela Rosselini não tem muito do que se queixar) Quem nos garante que não é computação gráfica?

O grau de interferência possível na imagem e no som do cinema aumenta exponencialmente a cada década. Os filmes dublados não são a primeira, nem os colorizados (já vi Casablanca em cores, A colina dos homens perdidos em cores) a pior das interferências que estão por vir. Quem impõe seu uso é a indústria, mas a Arte deveria encampá-las, como o fêz há um século. Talvez o que nos incomoda na dublagem é nunca termos visto um só exemplo em que a voz de um ator tenha sido substituída para que disto resultasse um efeito estético.

0184) O estrangeiro (23.10.2003)

Existe um certo heroísmo no indivíduo que deixa para trás um mundo ao qual pertencia, e se transfere para um mundo completamente diferente. O migrante, principalmente o migrante involuntário, é sempre o herói de um poema épico. Pena que desse poema existam apenas meia dúzia de versões orais, que circulam ao longo das gerações de uma família até se esvaírem no esquecimento. Muitas vezes, netos e bisnetos mantêm registros cuidadosos das aventuras e desventuras de seus antepassados, um pouco por orgulho e afeto, e para ter certeza de que aquilo tudo não foi em vão.

Os que fogem da terra natal por causa de uma seca, de uma guerra, de uma perseguição racial ou política, sabem muitas vezes que estão num caminho sem volta. Vão para o outro lado do mundo; chegam ali ainda jovens, estudam, trabalham, casam com alguém local, criam ali suas famílias, envelhecem, ficam pensativos. Uns voltam a visitar, de vez em quando, o seu antigo mundo. Outros recusam-se a pensar nele, a falar sobre ele. Outros encolhem os ombros, indiferentes. Outros criam ficções sobre aqueles tempos remotos e acabam por acreditar nelas. Cada um tem seu modo de lidar com a existência desse mundo extra em seu passado.

Estou misturando numa só panela retirantes, exilados, refugiados políticos; não importa. Todos eles são o Estrangeiro, o sujeito que veio de fora, o indivíduo vindo de um lugar que não conhecemos, e com um passado de que é a única testemunha. No mundo que escolhe para viver, o Estrangeiro pode vir a ter uma aura de mistério, à qual alguns podem reagir com desconfiança, outros com curiosidade. Em linguagem dramatúrgica, diz-se às vezes que um personagem “tem um passado”. Todo mundo tem um passado, mas nesses casos particulares subentende-se algo que está oculto nesse passado mas que irá ser revelado ao longo da narrativa. Nos antigos folhetins, volta e meia aparece um personagem “recém-chegado das colônias, onde passara os últimos vinte anos...” Um passado assim é um baú trancado, não se sabe o que pode conter. No momento do aperreio, o dramaturgo abrirá esse baú para tirar dali uma solução de enredo.

Grupos de migrantes costumam agregar-se, criar rituais, formar pequenas comunidades artificiais onde tanto podem desenvolver um apoio mútuo quanto a neurose coletiva. Alguns livros de Julio Cortazar, como O jogo da amarelinha ou Livro de Manuel reproduzem de forma notável a vida de intelectuais argentinos morando em Paris. A falta de ajustamento ao novo mundo pode levar a pesadelos como os do protagonista de O Inquilino de Roman Polanski ou a tragédia como a de O homem do prego de Sidney Lumet. Por mais que tente se misturar, o estrangeiro vê as coisas de um modo diferente, sente diferente, reage diferente. Cedo ou tarde, alguma coisa acaba por trair a existência daquele passado, daquele outro mundo onde só ele sabe o que aconteceu, e cuja simples existência nos inquieta.

0183) A pegadinha de Jorge Luís Borges (22.10.2003)




(Borges no Labirinto de Creta - foto do "Atlas" de Borges & Maria Kodama)

Dois anos antes de Orson Welles inventar sua invasão de marcianos hostis, Borges começou a inventar um dos seus gêneros preferidos de conto, a resenha de um livro que não existe, quando criticou o imaginário “A aproximação a Almotásim”, em 1936.

Este discreto truque literário desnorteou por algum tempo os críticos distraídos, que levavam Borges a sério e saíam a procurar o livro comentado. Hoje, a obra de Borges está bem divulgada, e seus imitadores são milhares. O “ensaio aparentemente a sério sobre uma obra que não existe”, se não virou clichê, talvez tenha virado um gênero literário.

Em seu texto, Borges analisa um romance policial de um advogado de Bombaim, Mir Bahadur Ali, intitulado “A aproximação a Almotásim”; cita críticos, escritores e editoras familiares aos leitores da época.

Mais do que isto: Borges usa todo o repertório convencional de recursos de um resenhador. Descreve com vislumbres tentadores o desencadear do início da trama, para depois dizer: “Assim acaba o segundo capítulo da obra. Impossível traçar as péripécias dos dezenove restantes”. Borges compara duas edições do livro, ironiza as ilustrações, lamenta as mudanças, finge voltar atrás e reler trechos.

A certa altura, ao comentar a hipotética segunda edição, diz distraidamente: “Tenho-a à vista; não consegui obter a primeira, que pressinto muito superior. Autoriza-me a isto um apêndice, que resume a diferença fundamental entre a versão primitiva de 1932 e a de 1934.”

Todo texto que lemos vem dentro de uma moldura de convenções. Qualquer texto em qualquer veículo (livro didático, romance, revista, tablóide popular, enciclopédia, etc.) é interpretado em função do contexto em que aparece. A publicação original de “Almotásim” foi num livro de ensaios, História da Eternidade. Logo após o famoso ensaio onde Borges examina e compara as diferentes traduções das Mil e Uma Noites, aparecem duas “notas” do autor: o texto sobre “Almotásim” e “A arte de injuriar”, onde Borges compara insultos e sarcasmos famosos da literatura e da História.

Nada no contexto poderia indicar que “Almotásim” era um texto fictício. Somente em 1941, quando apareceu na coletânea O jardim dos caminhos que se bifurcam, veio ao lado de outros textos do mesmo tipo, onde personagens reais aparecem manuseando e citando livros fictícios.

Em “A arte de injuriar”, Borges diz que quem profere um insulto ou pratica uma burla deve fazê-lo sabendo que tudo que disser poderá ser usado contra si, e que é possível disfarçar uma ofensa evidente num texto que possa ter também uma interpretação neutra ou elogiosa. Diz que as técnicas satíricas onde se ridiculariza um autor e os falsos elogios que a disfarçam “não são atividades incompatíveis, mas são tão diversas que ninguém as conjugou até agora.” É o que ele faz em seu ensaios imaginários, onde é ao mesmo tempo um autor inventando histórias e um crítico demolindo-as.





0182) A pegadinha de Orson Welles (21.10.2003)




Em 30 de outubro de 1938, grande parte da população dos EUA acreditou piamente que seu país estava sendo invadido por marcianos hostis, decididos a exterminar a raça humana. 

Foi o famoso episódio da “Guerra dos Mundos” encenado por Orson Welles num programa de rádio em Nova York, o “Mercury Theatre”, que ia ao ar todo domingo à noite. Durante cerca de uma hora, os atores encenavam uma história, muitas vezes adaptações de obras literárias. Para o programa de Halloween dessa noite, Orson mandou ao ar uma adaptação de um livro de ficção científica de seu quase-xará H. G. Wells.

Os marcianos do livro de Wells saem passando o rodo no exército americano e invadindo cidades, até que começam a morrer de um em um, derrotados pelas bactérias terrestres, diante das quais são mais inofensivos do que um índio que nunca teve contato com brancos. 

A história hoje é clichê, mas era novidade quando o livro saiu: em 1898, época de descobertas científicas e astronômicas que colocaram na boca do povo a possibilidade de existência de vida em outros planetas. 

Quarenta anos depois, quando Orson Welles fêz seu rádio-teatro, invasores alienígenas já eram moeda corrente no imaginário popular. O mundo era um delírio militarista, a II Guerra estava na porta, e todo mundo acreditou. Houve pânico, corre-corre, multidões nas ruas, frenética atividade os bombeiros e da polícia por todo o país. 

Ninguém morreu, mas o país não falou noutra coisa durante algum tempo. Orson Welles, com 24 anos, virou o menino-prodígio de Hollywood e três anos depois faria o Cidadão Kane.

O truque foi apresentar a “Guerra dos Mundos” como se fosse um noticiário radiofônico. A abertura do programa avisava que era uma encenação, mas a partir daí tudo reproduzia um típico noticiário da emissora. Era como a gente ver hoje, na CNN, imagens de “Breaking News” de uma invasão alienígena, produzida em estúdio, mas mandada ao ar como se fosse real. Todo mundo acreditou. 

Esta é uma interessante quebra de tabu linguístico: fazer um texto de ficção e apresentá-lo como uma informação real.

O roteirista do programa de Welles era Howard Koch, que escrevia toda semana um roteiro de 60 páginas adaptando histórias indicadas por Orson. Koch também acabou em Hollywood, onde foi co-roteirista em Casablanca

Em seu livro The Panic Broadcast, ele diz que pouco tempo depois de Welles uma rádio peruana traduziu o roteiro para o espanhol e repetiu a “pegadinha” em Lima. Houve pânico, mas quando depois foi revelada a verdade, a população depredou e incendiou a rádio. 

As pessoas não apenas se irritam, quando percebem que foram feitas de bobas, mas sentem um abalozinho mental quando percebem que leram erradamente um conjunto de informações que à primeira vista era familiar. Quando percebem que foram induzidas propositalmente a essa leitura errada, que foram manipuladas, a reação é imprevisível.





0181) A lenda de Zé Limeira (19.10.2003)

Metade do mundo ouviu falar em Zé Limeira, o poeta do absurdo. Até nos círculos extra-cantoria, de pessoas completamente leigas sobre o assunto, o nome dele é o mais conhecido. Mesmo aquele pessoal distante, que ouviu o galo cantar mas não sabe onde, lembra vagamente, quando se fala no assunto “cantadores do Nordeste”, da figura desse poeta maluco que dizia coisas sem pé nem cabeça. Talvez ele e o Cego Aderaldo sejam os personagens mais conhecidos do público em geral, dessa turma para quem os nomes de Pinto do Monteiro ou Romano do Teixeira nada dizem.

Que Zé Limeira existiu, é fora de qualquer dúvida. Como personagem, no entanto, ele brotou no livro de Orlando Tejo, Zé Limeira, o Poeta do Absurdo, que já circula pelo Brasil há uns bom 30 anos. O livro de Tejo, que tem capítulos brilhantes descrevendo cantoria-de-feira, cantoria-de-cabaré, traz uma quantidade imensa de versos improvisados por Limeira e seus parceiros. A quantidade é muito grande, para uma época em que era mais difícil conseguir um gravador do que um gerador-de-luz. Surgiu então a lenda de que muitos daqueles versos atribuídos a Limeira seriam invenção do próprio Tejo e de seus comparsas do Café São Braz em Campina e do Ponto de Cem Réis em João Pessoa. Contra esta versão, pesava o fato inconteste de que Limeira existiu de fato, são dezenas as testemunhas de suas cantorias e da maioria dos seus versos.

Fonte histórica à parte, a peça de José Bezerra O mundo louco do poeta Zé Limeira ajudou a encorpar o mito do poeta junto a um público jovem, de classe média, sem muita aproximação com a cantoria. Artigos publicados em jornais e revistas culturais do Rio e de São Paulo foram cristalizando a imagem do negão de lenço vermelho no pescoço, que só andava a pé, inventava palavras sem pé nem cabeça, misturava sem a menor cerimônia personagens da política brasileira e da Bíblia, e morreu durante uma cantoria porque ousou cantar a balada da “Pavoa Devoradora”.

Ocorreu com Zé Limeira uma coisa que vemos ocorrer o tempo inteiro diante dos nossos olhos. Um indivíduo encarna durante sua vida um tipo, um personagem. Quando ele morre, toda história que possa ser atribuída a esse personagem passa a ser atribuída a ele. É de conhecimento geral que grande parte dos crimes atribuídos a Lampião não foram cometidos por ele. No mundo pouco nítido da tradição oral, onde se superpõem versões conflitantes, incompletas, fantasiosas, equivocadas, um personagem acaba agregando a si próprio numerosos episódios alheios. Depois da morte, então, nem se fala. “Só pode ter sido coisa de Fulano!” afirma alguém. E como num passe de mágica o crime anônimo é atribuído a um bandido famoso, o milagre é creditado a Frei Damião, a frase espirituosa a Oto Lara Resende, o verso maluco a Zé Limeira. Os personagens que encarnam viram ímãs, atraindo para si tudo que corresponde àquele perfil. “Só pode ser coisa de Zé Limeira!”. E a obra póstuma do nego vai crescendo.

0180) O fotógrafo cego (18.10.2003)


(foto: Evgen Bavcar)


O documentário Janelas da alma, de Walter Carvalho e João Jardim, documenta diferentes aspectos da visão humana, através de depoimentos de pessoas como o escritor José Saramago, o cineasta Wim Wenders, o música Hermeto Paschoal e outros. 

Como os dois diretores do filme são míopes em grau extremo, o filme é uma reflexão sobre o ato de ver, feita por dois sujeitos que vêem com dificuldade e somente com o auxílio de próteses ópticas, mais conhecidas como os famosos fundo-de-garrafa. 

O depoimento que mais me marcou foi o do fotógrafo esloveno Evgen Bavcar (pronuncia-se E-u-guen Ba-u-char). Um fotógrafo cego, já pensou? Bavcar, nascido em 1946, mora em Paris, e é doutor em filosofia, estética e história pela Sorbonne. 

À primeira vista, parece ser apenas uma excentricidade a mais numa indústria cultural que já nos deu pintores que não pintam, cantores que não cantam, etc. Bavcar diz coisas muito interessantes sobre sua atividade, tanto no filme quanto na extensa entrevista publicada há pouco pela revista Coyote, de Londrina.

Ele diz, por exemplo, que para fazer uma série de fotos de uma mulher correndo à distância sobre um relvado precisou amarrar ao tornozelo da modelo uma minúscula sineta, para poder acompanhá-la com a câmara. 

“Eu clicava na direção do som, fotografava o som,” explica ele. Essa frase me ficou na cabeça, porque é uma descrição muito acurada do que existe na criação artística, principalmente na literatura, que ao lado da música é a mais intuitiva de todas, e aquela em que mais se trabalha às cegas. Na literatura, procuramos organizar palavras sugerindo coisas que não estão ali. Criamos estímulos verbais, séries de instruções que geram na mente do leitor uma imagem virtual aproximada à descrição que fiz; algumas pessoas têm mais imaginação visual que outras, ou um repertório de imagens mais variado. Decerto nunca haverá uma imagem igual à outra. E tudo foi criado com palavras, no escuro.

Um poeta francês disse certa vez que “on ne cherche pas, on trouve” (“a gente não procura: a gente acha”). Essa sensação de que a poesia é uma coisa que cai do céu sem ter sido conscientemente procurada vale, sem dúvida, para alguns tipos de poesia, não para todos; mas vale. A poesia é de certa forma uma arte de atirar no que se vê, na esperança de acertar no que não se vê. 

Ou, no caso de Bavcar, uma tentativa de fotografar um som na esperança de captar uma imagem. O fotógrafo cego não é muito diferente do artista plástico doido (Bispo do Rosário). Ele e o seu público têm posições diferentes, e mutuamente irredutíveis, em relação às obras que produzem. Bispo estava salvando do fim do mundo aqueles objetos; nós, que achamos que o mundo não vai acabar, os vemos como obras de arte e nada mais. 

Bavcar cita uma frase de Jacques Lacan: “o amor é dar uma coisa que não se possui a alguém que não quer receber”. Talvez a arte seja um desses desencontros de linguagem onde ninguém se entende mas todos saem ganhando.






0179) Os americanizados (17.10.2003)

Sou capaz de apostar que se entrarmos numa favela em qualquer metrópole brasileira, de São Paulo a Recife, de Belo Horizonte a Porto Alegre, vamos encontrar um garoto preto, subnutrido, descalço, mastigando um picolé de morango e usando uma camiseta suja onde está escrito: “Columbia University”. Num bairro mais adiante, se pararmos para tomar um refrigerante diante do grupo escolar ou do Ciep local, vamos ver sair da aula um outro garoto, branco, ou preto, ou mulato, mas mais limpo, mais arrumado, livros embaixo do braço, vestindo o inevitável bermudão e usando uma camiseta onde está escrito: “Chicago Bulls”. À noite, se entrarmos num apartamento da Zona Sul, talvez encontremos um terceiro rapaz que poderia ser irmão mais velho dos outros dois, ouvindo um CD e vestindo uma camisa com o nome de uma banda como “Wallflowers” ou “Linkin Park”.

O primeiro menino não tem a menor idéia do que seja a Universidade de Columbia. Veste aquela camisa porque foi a única que alguém lhe deu. O segundo sabe quem são os Chicago Bulls: é o maior time de basquete do mundo, o time de Michael Jordan. (Não é mais, mas é a mesma coisa do Santos de Pelé, continua existindo) O terceiro provavelmente não apenas sabe que banda é aquela como tem os discos, conhece os integrantes, canta as músicas. São estágios sucessivos no que o pessoal chama “a americanização” da juventude brasileira. O curioso é que uns acham essa americanização a primeira trombeta do Apocalipse; para outros ela é um grito de vitória, mistura de “independência ou morte” com “abre-te sésamo”.

Quando alguém veste uma camisa onde está escrito um nome que não conhece, ele está abrindo uma janela em si mesmo. Está entrando num lugar desconhecido, tomando posição num ritual cuja finalidade ignora, bebendo num copo sem saber o que tem dentro. Vestir uma dessas camisas esfregar uma lâmpada mágica sem saber o que vai brotar dali, se é um gênio que concede três desejos ou um dragão de fogo que carboniza o descuidado. Não importa. A curiosidade é maior do que a cautela. Ele sabe que existe um mundo lá fora, além do seu entendimento, e que esse mundo se exprime através de palavras em inglês. Ele até poderia dizer: “Não, obrigado, não quero, só me interessa o que já conheço, só me interessa o que já é o meu mundo.” Mas ele diz: “Eu queria saber o que é isso. Eu queria experimentar. Me mostre.”

Abrir o próprio espírito e deixar que seja invadido pela imensidão do mundo é o gesto mais desprendido, mais indefeso e de mais grandeza que um ser humano pode ter, e esse gesto de quase inconcebível coragem é mais praticado por jovens do que por homens e mulheres maduros. A única recompensa justa para essa coragem seria dar-lhes a escolher não apenas camisetas norte-americanas, mas que pudessem escolher também camisetas (e mitologias) chilenas, húngaras, espanholas, mexicanas, indianas, argentinas, portuguesas, irlandesas, russas, palestinas, judias. O mundo é grande.

0178) O livro e a criança (16.10.2003)






("Crackers in Bed", de Norman Rockwell)




Como incutir o hábito de ler numa criança? Pense num problema da maior gravidade! Um pouco ritual de ritual às vezes funciona. Fazer a criança tomar banho, vestir o pijama, e passar meia hora lendo antes de ir dormir; desligar a TV; ter uma poltrona e uma luz específica; tudo isto é interessante, cria uma expectativa, cria um clima propiciatório, e criança geralmente gosta disso (desde que não esteja sendo obrigada).

O problema é que algumas crianças acabam levando a leitura tão a sério que se distanciam dela. O livro passa a ser uma coisa especial, para ser manuseada em ocasiões especiais. E a leitura vira às vezes uma atividade decifratória que não pode deixar lacunas. Já vi (em casa inclusive) inúmeros exemplos de criança que empanca num livro por causa de uma palavra, e dali não passa. “Paaai... o que é begônia?” “Acho que é uma flor.” “De que jeito? De que cor?” “Não tenho a mínima idéia.” Impossibilitada de assimilar a begônia, a criança tem a leitura travada. Como seguir adiante, deixando para trás esta importantíssima pergunta não respondida? Vai o livro para o tapete, e a criança para a televisão.

Minha lei é: menos respeito! Devemos aprender a dar de ombros. Não entendeu, paciência, pula e segue em frente. É assim que eu leio, até hoje inclusive. As palavras sempre voltam, e cada vez que voltam trazem consigo uma pistazinha a mais sobre si próprias. Ainda hoje me lembro dos livros de ficção científica em que vi pela primeira vez palavras como “esporos”, “catalisador”, “mutante”. Deduzi pelo contexto, aos poucos, mas fui em frente.

Não entendeu um capítulo? Pula para o próximo. Deveríamos ter com os livros a mesma relação descontraída que temos com as telenovelas, onde mesmo tendo perdido uma dúzia de capítulos logo sabemos o bastante para seguir em frente. Caetano Veloso comparou certa vez a diferença de comportamento, nos cinemas, entre o público francês e o americano. O francês, concentrado e reverente, parece estar na Ópera; o americano, rindo e comendo pipoca, parece estar no Circo. Acho que um pouco de cada atitude, no momento certo, também ajuda a gente ao longo das idas-e-vindas que a leitura de qualquer livro implica.

Gosto de ler riscando, sublinhando, anotando. Amigos bibliófilos um dia me alertaram que desse jeito posso estar desvalorizando em definitivo uma edição rara. Depois disso, deixo minhas primeiras edições na estante, mas compro uma edição atual do mesmo livro, para poder passar-lhe a caneta sem dó nem piedade. Um livro é um objeto de trabalho, algo para ser tratado sem muita cerimônia. Como as crianças são depredadoras por natureza, não podemos dar rédea livre, mas é sempre bom explicar-lhes que livro é um brinquedo para se brincar com os olhos. Deve-se entrar neles por todos os lados, frequentá-los a qualquer hora, abri-los sem esperar nenhum milagre mas pronto para recebê-lo caso ele aconteça. Sé é livro de verdade, acaba acontecendo.

0177) Os campos magnéticos (15.10.2003)




Imagine uma pequena barra de ferro imantada. A extremidade “A” é o polo positivo, e a extremidade “B” é o polo negativo. Entre as duas, espalham-se as linhas de força do campo magnético, invisíveis a olho nu, mas cuja presença pode ser percebida se colocarmos a barra embaixo de uma folha de papel e sobre a folha espalharmos uma limalha de ferro bem fininha. 

O pozinho metálico irá se organizar ao longo dessas linhas, formando um desenho que a maioria de nós viu nos livros de Ciências do 1º Grau.

Uma experiência interessante é serrar essa barra de ferro ao meio. Nosso primeiro impulso é pensar que isso resultará em duas barras menores, com os polos positivo e negativo ainda situados nas extremidades A e B, e as novas extremidades obtidas no meio sem nenhum polo específico. 

Nada disso. No momento em que a barra é dividida em duas, o campo magnético também se divide em dois campos menores. Mágica pura. 

É como se rasgássemos ao meio uma nota de 1 real e, em vez de duas metades incompletas, nos víssemos segurando duas notas inteiras de 1 real, com metade do tamanho da nota anterior. E, rasgando cada uma destas, nos víssemos com quatro notas inteiras, cada uma com um quarto do tamanho da nota original.

Os campos magnéticos tendem a se recompor em torno do objeto físico que os sustenta, e isto é uma lei interessante que pode ser transposta, “mutatis mutandis”, para muitos aspectos da vida social. 

Em algumas situações os comportamentos humanos tendem a se polarizar em atitudes opostas: comandante e comandado, patrão e escravo, etc. Pensamos que cada indivíduo tem um papel, e só este; mas às vezes ele só está cumprindo este papel para que o polo que ocupa não fique vazio. 

Se pegarmos 20 generais e os soltarmos numa ilha deserta, trancarmos num cárcere, em poucos dias irão se definindo entre eles o grupo dos que mandam e o dos que obedecem. Se pegarmos 20 monges budistas e fizermos o mesmo, em breve uns estarão como líderes e os demais como seguidores. Certos papéis sociais são como polos magnéticos: não podem ficar desocupados. Alguém vai ter que fazer aquilo.

A cultura oriental fala em termos de Yang e Yin como as duas forças básicas da natureza física e da natureza humana. 

O Yang exprime uma força centrífuga, que se expande de dentro para fora, que incita à ação, à manifestação externa, e que tende a exercer pressão sobre o ambiente em volta. 

O Yin exprime uma força centrípeta, que se manifesta de fora para dentro, que incita à reflexão, à transformação interior, e que tende a atrair para si o que está no ambiente em volta. 

Qualquer ser vivo, qualquer pessoa, qualquer grupo social possui estas duas forças, assim como cada ímã possui seu polo positivo e seu polo negativo, só que estas forças são muito mais complexas do que o magnetismo físico. 

Uma das suas manifestações sociais mais curiosas, por exemplo, é quando Oposição vira Governo e vice-versa.






0176) A arte de olhar diferente (14.10.2003)




(Carl Friedrich Gauss, 1777-1855)


O professor tinha uma montanha de provas para corrigir e resolveu dar à turma de garotos de dez anos alguma coisa que os mantivesse ocupados. Passou o seguinte dever: “Somar todos os números de 1 a 100: 1 + 2 + 3 + 4 + 5...”

Todos começaram a fazer os cálculos, de testa franzida. Ele nem tinha terminado de corrigir a primeira prova quando um dos garotos aproximou-se e colocou sobre a mesa sua lousa com a resposta. (É, naquele tempo os estudantes escreviam em lousas, pequenos quadros-negros portáteis).

O professor olhou, o queixo caiu: 5.050. A resposta (que ele já conhecia) estava certa. Ele desconfiou de algum truque – mas qual? Pediu explicações.

O garoto explicou.

Eu achei que, como era para somar todos, a ordem não iria fazer muita diferença. Em vez de ir somando pela ordem, somei o primeiro com o último, ou seja, 1 + 100. Deu 101. Aí, somei o segundo com o penúltimo: 2 + 99 = 101. Depois somei o terceiro com o antepenúltimo: 3 + 98 = 101.

"Ora, o resultado tinha que ser sempre esse, porque os números somados, de um lado, era sempre um-a-mais, e do outro era sempre um-a-menos. E isso evidentemente ia continuar até chegar no meio da lista: 50 + 51 = 101. Isso queria dizer que eram 50 somas de dois em dois, todas dando 101. Ora, 50 vezes 101 é 5.050, tá ligado?”

O ano era 1787, o país era a Alemanha, e o menino se chamava Carl Friedrich Gauss, que veio a ser conhecido na Europa como “o Príncipe dos Matemáticos”. Morreu aos 78 anos, e quarenta anos após sua morte seus diários matemáticos ainda eram publicados, trazendo surpresas e mais surpresas, descobertas e mais descobertas.

O episódio acima foi narrado por Paul Karlson em A Magia dos Números, que li na adolescência. Eric Temple Bell, em Men of Mathematics, dá uma outra versão, inclusive dizendo que o problema era bem mais difícil do que esse. Mas não vem ao caso agora. O que foi, de fato, que o menino fêz?

O menino tinha um caminho aberto à sua frente: era só somar os números, do primeiro ao último. Ele, no entanto, preferiu procurar outra maneira. Talvez por achar (como nós, os preguiçosos do mundo, sempre achamos) que “deve ter uma maneira menos trabalhosa de fazer isso”. Tinha.

E o que o levou a somar o primeiro número com o último? Eu diria que foi um pouco de espírito lúdico, aquele espírito de “vamos entrar nesse beco só pra ver onde vai dar”. Mas indica outra coisa.

Enquanto os outros alunos, de nariz enfiado na lousa, só enxergavam o 1, depois o 2, depois o 3, e assim por diante, Gauss deu dez passos atrás e contemplou mentalmente uma longa linha de números, parecendo uma fita métrica esticada. E ele estendeu mentalmente os braços, pegou com a mão esquerda o 1 e com a mão direita o 100, e tentou somá-los.

O resto é consequência. Às vezes é bom afastar o nariz do problema, e vê-lo de corpo inteiro. Às vezes o próprio formato do problema já sugere a solução.