segunda-feira, 29 de outubro de 2018

4399) Mulheres por dentro e por fora (29.10.2018)




Tenho comentado aqui algumas sessões do Cineclube da Escola de Cinema Darcy Ribeiro, onde estou exibindo e debatendo uma série de filmes sob a rubrica “Verdades e Mentiras do Cinema”. Já exibimos oito filmes em oito sábados, e dias atrás fizemos uma sessão do Jogo de Cena (2007) de Eduardo Coutinho.

O cinema de Coutinho demonstra um interesse muito grande pela pessoa humana, suas emoções básicas, suas alegrias, seus medos, seus acertos de conta com a vida.  Como entrevistador parece que tinha um ritual meio distante, que deixava o entrevistado já alerta. Mas depois o papo flui de maneira afável, porque ele não pressiona o entrevistado, ele vai dando pequenos toques.

No caso deste filme, são as entrevistadas. Para quem não assistiu: a produção botou um classificado nos jornais, um teste de atriz, para mulheres dispostas a contar suas histórias pessoais diante de uma câmara. Oitenta e três se apresentaram, vinte e três foram selecionadas e gravaram entrevista com Coutinho, no Teatro Glauce Rocha (Rio).

Coutinho tinha essa medula emotiva, demonstrando empatia, o que acabava provocando reações variadas dos entrevistados, sempre em benefício da conversa. No debate na “Darcy”, Sérgio Almeida, professor da escola, citou um texto de Coutinho a respeito do melodrama. Coutinho gostava de melodrama? Tinha uma certa aspereza na aparência que era logo desmentida quando se via um filme seu. Vê-se que para ele a emoção humana era uma coisa muito real, e eu acho que os entrevistados sentiam algo assim.

Mas ele tem também um interesse semiótico permanente, que é justamente o dessa quebra de barreiras, quebras de realidade. Porque alguns dos depoimentos das mulheres do filme, as entrevistadas, são parcialmente encenados por atrizes profissionais. Elas viram as gravações originais; depois, contaram ao seu modo a mesmíssima história, “entrevistadas” pela voz de Coutinho, na lateral.

Quando o filme corta do depoimento de uma mulher que nunca vi na vida para o depoimento de Andréa Beltrão, eu percebo que se trata da mesmíssima história, que agora é uma atriz que está contando, e vou em frente. Nesse momento a história se sobrepõe, pelo interesse que tem como história, como verdade emotiva humana, como melodrama.

Só que esse melodrama é relativizado por este truque reiterado, que acaba se tornando  gimmick central do filme. Mulheres desconhecidas / Atriz Fulana de Tal.

É uma coisa parecida (por mais peculiar que pareça essa comparação) com muitos livros de Philip K. Dick. Seus personagens são violentamente emotivos, seus casais são um inferno na Terra, os problemas profissionais e sentimentais deles são acachapantes, mas Dick mantém uma empatia permanente com seus personagens. Ele gosta da verdade emotiva humana. E a atenua com a imprevisibilidade de suas histórias, onde não se sabem que é o real e quem é o simulacro.

No filme de Coutinho, começa a ficar fácil dominar o simulacro e se concentrar apenas nas histórias. As histórias são interessantes pelo que de histórias contém. São histórias de mulheres sonhando, enfrentando dificuldades, tomando decisões, arcando com consequências, admitindo derrotas, agradecendo as vitórias. É a velha história: qualquer vida humana, bem narrada, daria um excelente romance.

O ping-pong entre real e simulacro começa a ficar mais confortável quando aparecem também Fernanda Torres e Marília Pera, duas outras atrizes de imagem já bem firmada junto ao público possível desse filme. A partir daí começa, pela minha impressão, a segunda “quebra” de realidade, quando as cenas se prolongam numa extensa ponteira do que poderia ser parte de um “making of” ou “por trás das câmaras”. O diretor e a entrevistada comentam o que foi dito, como a emoção se manifestou, etc.

Coutinho abre as comportas da emoção, pela intensidade com que as entrevistadas se manifestam com frequência, e depois segura e controla porque o espectador não caia na modorra intelectual. A primeira quebra de realidade (é uma mulher, agora é uma atriz conhecida, as duas “fazendo o mesmo papel”) tira um pouco aquela vertigem da verdade intensa. Coutinho trabalha com uma versão distanciada do melodrama.

Em função disto, me lembro de uma palestra do cineasta Edgar Navarro, num festival no Rio, ao falar sobre melodrama. O cinema de Edgar tem um lado de melodrama, mas tem vários outros (melodrama “cortado” pelo humor, p. ex.) e num artigo daquela época resumi assim a fala dele:

“A gente não deve temer o Melodrama nem evitá-lo,” disse Edgar. “Em vez de eliminá-lo, o jeito é assimilá-lo, absorvê-lo, mas mantendo-o sob controle pelo uso de coisas que são o contrário dele.

Primeira coisa: visão crítica. Usar o melodrama, mas em vez de nos sujeitarmos aos seus clichês e seus processos, mostrarmos que não somos escravos nem devedores dele.

Segunda coisa: humor impiedoso. O pior melodrama é o que se leva excessivamente a sério, e quando alternamos o Melodrama com humor mantemos alguns aspectos bons que ele tem mas eliminamos seus excessos.

Terceira coisa: distanciamento brechtiano. Usar os clichês como se os estivéssemos mostrando através de uma vidraça, de uma moldura, de uma visão indireta que está claramente ali, perceptível ao espectador. Aquela cena de Danuza Leão dançando nos corredores do palácio, em Terra em Transe, é melodrama puro, mas é um melodrama brechtiano pela forma como Glauber a filma.

E quarta coisa: narrativa fragmentada. O Melodrama depende muito do ritmo hipnótico das cenazinhas-com-começo-meio-e-fim, que anestesiam a atenção do público. Quando a gente fragmenta a narrativa, a cada corte inesperado o público tem um sobressalto e acorda”.



O filme de Coutinho se encaixa perfeitamente neste último caso, sendo que o “fragmentar a narrativa” a que Edgar se refere inclui o que eu chamo “quebra de realidade”.

A mesma quebra de realidade de alguns personagens de P. K. Dick, que saltam para diante e para trás no Tempo, e atravessam universos paralelos, mas os conflitos marido-esposa, pais-filhos, patrão-subalterno, são sempre os mesmos.

É o melodrama “cortado”, como na mistura de bebidas, pela lucidez. Pela atenção pra não se perder no ziguezague narrativo. Em Dick não se vê propriamente a fragmentação do discurso verbal imediato. Vê-se a fragmentação da realidade consensual proposta, ou sugerida, na parte inicial do livro. É o universo-acreditado que se fragmenta.

Os pequenos sustos conceituais de Jogo de Cena são o bastante para manter o público acordado e alerta até a última imagem, como num jogo de futebol onde até o último minuto tudo pode acontecer. E quando a gente vê duas mulheres desconhecidas dizendo a mesmíssima história, pensa logo que uma das duas é uma atriz, mas qual delas? Ou talvez as duas sejam atrizes e a história é inventada? O Brasil está cheio de grandes atrizes que eu não conheço, e eu considero isso uma ótima notícia.

Pra uma história, basta ser inventada para conquistar um certo grau de verdadeira.












sexta-feira, 26 de outubro de 2018

4398) "Espere agora pelo ano passado" (26.10.2018)




Acaba de sair pela Suma de Letras, o selo de literatura fantástica da Companhia das Letras, minha tradução para um romance pouco comentado de Philip K. Dick, Now Wait For Last Year (1966), aqui com o título de Espere Agora Pelo Ano Passado.

Devo ter em casa uma meia dúzia ou mais de livros de P. K. Dick que tenho há anos e ainda não li. Por que? De certa forma para que o autor continue “lançando um livro novo de vez em quando”, como se estivesse vivo. Lançando pra mim, pelo menos.

Este era um que eu já tinha dado uma olhada de leve, e só. Li apenas na hora de traduzir. O enredo tem umas circunvoluções que a gente vê bem que foram meio improvisadas sem saber o que ia resultar mais na frente; mas foi mais ou menos assim que Dick escreveu tanto os seus melhores quantos os seus piores livros.

O que importa é a sacação que creio ter sido do editor David Hartwell quando lhe perguntaram sobre o livro mais adequado para ler a obra de PKD: “Qualquer um, porque as preocupações centrais dele, e as artimanhas dele como autor, estão presente em todos os seus livros. Cada livro dele pode ser a porta de entrada para o resto, porque ele está em todos por inteiro”.

É uma grande verdade, e Espere Agora Pelo Ano Passado é um livro movimentado e neurótico: tem viagens no tempo, tem supermedicina futurista, tem político messiânico, tem cultura de simulacros, tem tem alienígenas cordiais, tem drogas, tem misticismo californiano, tem universos contíguos, tem a fúria surda de casais em crise...

Enredo: Num futuro próximo, a Terra está envolvida numa guerra entre duas civilizações alienígenas, e acaba tomando o partido dos starmen, os habitantes de Lillistar, de aparência humana, contra os reegs, uma civilização sofisticada de enormes coleópteros ou coisa parecida que têm carapaça quitinosa, numerosas pernas.

A capacidade fabulatória de Philip K. Dick depende muito de um leitor que embarque com prazer nas suas manobras de improviso, como certamente era cada guinada de um romance assim. Dick escrevia muito nessa época, a poder de pílulas, montado na máquina-de-escrever mecânica, dia e noite. 

Aceitamos o ser interplanetário que discute filosofia como aceitamos (eu pelo menos) um cachorro falante num romance de Jonathan Carroll ou de Neil Gaiman. Quando a história nos arrasta, pouco importa a verossimilhança, porque há um certo tipo de leitor para quem o que vale é o salto. E essa discussão filosófica ali é mais interessante do que a descrição de quem a vocaliza. Do que as máscaras que o autor está manipulando na sua barraca de mamulengo diante de nós.

Sobre tradução: é sempre bom a gente levar em consideração, quando é possível, o método de trabalho do escritor, quando é preciso traduzi-lo. Porque um indivíduo de escritura lentíssima e concentrada não pode ser traduzido a toque de caixa. Por outro lado, quem escrevia a toque de caixa não precisa ser traduzido de maneira lentíssima e concentrada. Um texto não é apenas uma sucessão de frases, é uma jornada por diferentes pulsações. Há um tempo, um ritmo narrativo interno que a gente precisa acompanhar.  Não é só glossário.

Enredo: Nessa Terra futurista médicos são mantidos sempre à mão por bilionários e por chefes de Estado, trocando-lhes (numa cirurgia rápida e limpa) pulmão, coração, o escambau, sempre que necessário, várias vezes por ano. O fio condutor do livro é o dr. Eric Sweetscent, que ocupa um cargo assim. Mas a Terra está esgotada pelo conflito interplanetário, e o governante da Terra, como chefe de uma espécie de ONU todopoderosa do futuro, é Gino Molinari, um sujeito carismático, habilíssimo, enormemente popular, hipocondríaco, indisciplinável. E serão dele as decisões cruciais que determinarão o resultado da guerra.

Dick oscila muito, de livro para livro, em matéria de bom acabamento da história. A Suma de Letras publicou há pouco (e já comentei no Mundo Fantasmo) minha tradução de Time Out Of Joint (1959), O Tempo Desconjuntado. É um livro mais bem escrito do que este: o texto flui como num fio longamente tecido. Mistérios, pistas, revelações, tudo vai surgindo na hora certa. E de repente, o livro se interrompe, quando dava a impressão de que ia se abrir para algo muito mais vasto.

Espere Agora... é ao mesmo tempo mais complexo e mais tosco do que O Tempo Desconjuntado. A toda hora tem uma quebra. Quando a guerra entre os três sistemas se encarniça, surgem drogas capazes de produzir uma ruptura para sempre no conceito de realidade. Como nesta cena, em que algumas pessoas testam juntas, na sala de um apartamento, uma droga desconhecida:

– Meus mamilos não estão observando você nem ninguém – disse Kathy Sweetscent para Hastings.

– Não estou ouvindo vocês – disse Chris em pânico. – Respondam!

– Estamos aqui! – disse Simon Ild, e deu uma risadinha abafada.

– Por favor – disse Chris, e sua voz tinha agora um tom de súplica. – Digam alguma coisa. Vocês são apenas sombras. É algo sem vida. Nada além de coisas mortas. E está somente começando. Estou com medo de como isso está acontecendo, e ainda continua.

Marm Hastings pôs a mão no ombro de Chris Plout.

A mão passou através de Plout.

– Que bom, isso valeu os cinquenta dólares – disse Kathy Sweetscent em voz baixa, sem qualquer traço de divertimento. Ele caminhou na direção de Chris, aproximando-se cada vez mais.

– Não faça isso – disse Hastings a ela, com voz gentil.

– Sim, eu vou fazer – disse ela. E caminhou através de Chris Plout. Mas não reapareceu do outro lado. Desapareceu por completo, e somente Plout continuou visível, ainda implorando para que alguém lhe respondesse, ainda agitando as mãos no ar em busca de companheiros que não era mais capaz de sentir.

Isolamento, pensou Bruce Himmel consigo mesmo. Cada um de nós foi separado dos demais. Terrível. Mas... vai passar. Não vai?

Naquele instante ele não sabia. E para ele ainda não tinha nem começado.


-oOo-

A força dos pesadelos fenomenológicos do autor de O Homem do Castelo Alto e de Blade Runner é a simplicidade de meios narrativos. PKD não precisa de muitos floreios estilísticos para cortar até o osso do real. Ele não precisava escrever literariamente bem como um John Crowley, um Gene Wolfe, um Theodore Sturgeon.

Ele não tem as belas frases retóricas, cheias de sonoridade. Em vez disso, tem imagens inesperadas, vívidas. Inconcebíveis e ao mesmo tempo fáceis de imaginar, porque ele vestia suas discussões filosóficas em aventuras não menos absurdas do que as da pulp fiction que lia na juventude.

Como acontece no clássico Camp Concentration (1968) de Thomas M. Disch, as pessoas em Espere Agora Pelo Ano Passado usam uma droga com a qual adquirem uma percepção mais multiplex da realidade, mas ao preço da vida drasticamente encurtada. O uso da droga é mortal, e viciante desde a primeira dose. E um dos suspenses da história são as peripécias do protagonista para salvar sua vida e a da esposa, usando a droga para dar saltos meio imprevisíveis para o futuro e para o passado.

O grande personagem do livro, no entanto, é o tal governante da Terra, Gino Molinari, um personagem que no próprio livro é comparado com Abraão Lincoln, Benito Mussolini e Jesus Cristo. É o hipocondríaco líder: derruído, cansado de guerra, parecendo capaz de atrair para si os sofrimentos de todos os que o cercam. E ao mesmo tempo enérgico, despudorado, sátiro, veemente, idealista, maquinador, assustadoramente empático, um animal político nato.

Esse personagem deu origem a um interessante problema de tradução. Ao longo do livro, as pessoas de sua entourage o chamam “The Mole”, um apelido que é também a redução do seu nome de família.

Dos variados sentidos de “Mole” em inglês, achei que dois têm a ver com o personagem: espião (espião infiltrado, aguardando a hora de agir), porque ele age alternadamente a favor da humanidade e a favor dos aliados poderosos, sendo acusado de jogar a Terra numa guerra inútil; e molhe, que é uma espécie de dique ou represa. E que significa proteção, algo interposto barrando o perigo. Que é exatamente o papel de Molinari na história.

O problema é que a palavra “molhe”, apesar de correta, não é corrente, não é tão usada aqui (acho) como talvez seja em Portugal. Corri atrás da palavra e fiquei sabendo que um molhe é, sim, uma espécie de muro longo de contenção contra as águas. Uma ponta do molhe se situa em terra, e a outra no mar: esses dois detalhes o definem. Porque um quebra-mar é uma linha de muro com as duas pontas no mar, e um dique tem suas duas pontas fincadas em terra.

Então, onde no original havia algo tipo “He said: let´s talk to the Mole”, virou: “Ele disse: vamos falar com o Dique”. Eu considero que a palavra dique é mais rapidamente visualizada por um leitor comum, e isso compensa o fato do termo ser tecnicamente inexato  (porque não é um dique, é um molhe). E a função simbólica é a mesma.

Mas a palavra me serve também para outro sentido invocado: the mole, o espião.  Dique não é a mesma coisa (mas nada é nunca a mesma coisa, então bora) mas lembra Dick, o autor. Que não era um espião – mas sua vaibe é toda de agente-duplo intergaláctico transdimensional. Então encaixa.











terça-feira, 23 de outubro de 2018

4397) Literatura alta e baixa (23.10.2018)



“Reencontro” é um conto de Orígenes Lessa sobre dois soldados, ex-amigos de infância, que se reencontram anos depois no exército, preparando-se para a guerra (é a Revolução Constitucionalista de 1932, dos paulistas contra o governo de Getúlio). 

Os dois foram colegas de internato, onde um deles sofreu bullying constante, inclusive por parte do narrador. Agora, soldados no mesmo batalhão, tornam-se novamente amigos. E o narrador lembra suas conversas com o outro, Julinho, nos tempos de internato.

Fingi não perceber, mudei bruscamente de interesse:
– É Sherlock Holmes?
Julinho hesitou, teve um olhar de náufrago para o fascículo que trazia na mão.
– Não. É Nick Carter.
– É bom? É melhor do que Sherlock?
Os olhos de Julinho se adoçaram. Confraternizamos naquele encontro inesperado. Ele já tinha lido todos os fascículos de Sherlock, já havia lido dez ou doze de Nick Carter. Mas ia acabar com aquela besteira de livro policial. Agora ia ler somente grandes escritores, Taunay, Alencar, Machado de Assis.

Li esse conto justamente no auge da minha fase Sherlock Holmes, por volta dos 12 ou 13 anos, e esse trecho me marcou como um pequeno gesto de bullying do autor contra mim, pessoalmente. Era como se ele estivesse dizendo: “Não perca seu tempo lendo essas besteiras. Leia os grandes autores.”

Eu já tinha lido pelo menos Machado de Assis, nessa época, e com alguma teimosia considerei que não tinha nada de mais continuar a ler tanto Machado quanto Conan Doyle pelo resto da vida. E estava certo.

O próprio Orígenes Lessa cultivou a literatura popular, e não foi pouco. O conto “Reencontro” estava incluído na coletânea A Desintegração da Morte, o primeiro (e único) livro de autor brasileiro na antiga Coleção Futurâmica, das Edições de Ouro.

Lessa foi, como alguns autores da sua geração e muitos da minha, um autor dividido entre a literatura “alta” e a “baixa”. Como definir essas duas? Uma definição meio irreverente pode dizer assim: literatura alta é a que os pais e os professores nos obrigam a ler, e literatura baixa é a que a gente lê porque gosta.

Qualquer livro pode se tornar chato e insuportável se introduzido num momento não muito bom. Depende de muita coisa. Alguns autores que me impingiam no curso ginasial eu fiqei com trauma, só consegui ler de novo depois dos cinquenta anos. Por outro lado, ali eu já lia coisas que poucos dos meus colegas liam também – Sherlock Holmes, por exemplo. Gibi todo mundo lia os mesmos, mas livro era muito pouco. E nessa época eu já comprava metros lineares de livros de bolso todo mês.

Jorge Luis Borges dizia que “ninguém deve continuar a ler um livro, se o livro não lhe dá prazer”. Eu acho que Borges, se não foi o melhor escritor, possivelmente foi o maior leitor do século 20; mas essa primazia do prazer deve ser vista talvez como uma tentativa dele de suavizar o catastrófico senso do dever que assombra alguns povos. Ler pela alegria das revelações trazidas pela leitura.

A frase é verdadeira e paternalística. Porque não é só o prazer. Muitos livros são lidos por um confronto intelectual entre leitor e autor, e embora isso possa lhes ser prazeroso é um prazer exigente, que cobra um preço. Um livro pode ser um desafio, pode ser um enigma. Pode ser um estado alterado de consciência. O prazer é um efeito colateral secundário, embora bem vindo.

Durante esse meu tempo do Ginásio, minhas leituras, inclusive ficção científica, não tinham nada a ver com o que eu estudava no colégio. Eram dois mundos à parte. Eu gostava muito de ler, e no colégio tinha uma curiosidade natural por muitos assuntos, como história, língua portuguesa. Minhas nêmesis eram a matemática e o desenho geométrico. Curiosamente, duas coisas que eu aprendi a gostar depois.

Fora das exigências do colégio, ou em outras palavras, terminado o dever de casa, eu ia ler livros de FC da Argonauta, ou poesia parnasiana, assunto permanente do meu pai, ou as revistas que eu colecionava, como MMEQ, X-9, Meia Noite, Suspense, etc.

Se há muita distância entre os livros da escola e os livros que os alunos leem com gosto... Então, mais um motivo para que a escola, sem abrir mão do seu repertório, peça para eles trazerem o deles. Vamos discutir na escola isso que os mobiliza tanto. Isso é literatura? Por que? Isso é arte? Como assim? Romance policial pode ser considerado alta literatura? Hip-hop é poesia?

Para um garoto ou uma garota deve ter um certo impacto ver as regras essenciais da arte sendo explicadas com a ajuda de exemplos tirados do mundo dele, do leitor, e não de um super-mundo acadêmico, intelectual, pomposo, cheio de palavras difíceis. O acesso a esse mundo (que tem lá suas vantagens) começa de casa.

É o que chamam de representatividade, é o que eu sinto quando estou lendo um livro e no meio do texto salta a palavra, sei lá, Campina Grande. É meio idiota dizer isso em plena aldeia virtual, mas é uma espécie de atestado de existência.

Quando uma leitora consegue abrir um livro e a certa altura virar uma página e ver o personagem chegando ao bairro onde ela mora, passando de ônibus pelo mesmo, o bairro fica mais real naquele instante. É como ter sido certificado, carimbado, existência reconhecida. Nossa cabeça é assim.

Não existe nem alta nem baixa literatura, pelo menos nesse sentido “camarote vs. platéia”. Existem diferentes experiências mentais que se pode acessar com a leitura de livros, e algumas nos parecem mais prioritárias do que outras. Existem livros mais complexos e livros mais simples, mas não é esta a questão. Existem livros que divertem e livros que fazem pensar, mas a questão também não é esta. A experiência da leitura é única. Os números coletivos, as estatísticas, têm importância para definir estratégias de mercado, políticas públicas, etc.  Mas cada leitura é única.

Existem cientistas tão mergulhados em seus problemas de pesquisa que mal conseguem tirá-los da cabeça, não ouvem uma música, não leem um livrinho, não saem para passear, não gostam de cinema. Isso é um extremo. O outro extremo é o pessoal que gosta de entretenimento, vive em busca de entretenimento, e se recusa a manter qualquer tipo de atitude diante de qualquer coisa que não seja a atitude de “eu vim aqui para me divertir, qualquer coisa que me exija mais esforço é uma [colocar expletivo do momento]”.

Toda esta lenga-lenga não tem partidarismo literário. Por exemplo: gosto de Sherlock Holmes mas nunca li muita coisa de Nick Carter, nem me interessei. Então talvez eu não seja um aficionado. Por outro lado, o personagem de Orígenes Lessa, naquele conto do começo, cita como exemplos de “alta literatura nacional” o Visconde de Taunay, de quem meu pai admirava A Retirada da Laguna; cita José de Alencar, que confesso que nunca foi o meu forte; e por fim Machado de Assis, que acabei conhecendo melhor e apreciando mais. Então, nem todo aquele esforço se perdeu.














domingo, 21 de outubro de 2018

4396) A arte de escrever limpo (21.10.2018)





(Monteiro Lobato)


Um autor francês publicou há poucos anos um livro onde ensinava o leitor a conversar com firmeza sobre um livro qualquer, mesmo sem o ter lido. Entrando no clima, não comprei nem li o livro, que aliás é excelente. E me veio a idéia de fazer um livrinho fino listando (este é o século das listas; o próximo será o das mãos espalmadas na parede da caverna) Os 100 Clássicos da Literatura Universal Que Muito Provavelmente Você Morrerá Sem Ler.

O tratamento um tanto brusco do título não se dirige ao leitor, mas a mim mesmo: “Imbecil, tu passa um mês relendo um livro véi de Ellery Queen que já leu três vezes, enquanto nunca leste Homero, Dante, Stendhal, Gjerellup, Pontopiddan...”

E me veio à mente Camilo Castelo Branco, famosíssimo autor português de quem nunca li uma linha sequer. Camilo é tido como um autor melodramático, prolífico de enredos e visceral de sentimentos, com uma linguagem por vezes desabrida, mas sempre com a voz e a narrativa sob controle. Uma mistura de Balzac e Dumas, com traços de Nelson Rodrigues? Difícil saber sem ter lido.

Quem lia Camilo e gostava, de modo divertido e aparentemente sincero, era Monteiro Lobato, que em 1917 escrevia a seu amigo, o escritor e tradutor Godofredo Rangel:

Sabes o que estou lendo com enorme agrado? Macaulay, o incomparável, e Dickens. As memórias de Pickwick são um modelo de arte. Diz-se lá num capítulo o que os cacetissimos psicólogos de hoje dizem em todo um livro. Acho arqui-preciosa a leitura dos ingleses: livra-nos de absorver a infecção luética dos franceses: galiqueira mental que vai dessorando as nossas letras e fazendo-as um luar da francesa. E, fora dos ingleses, leio Camilo; não passo um dia sem umas páginas.

As cartas de Lobato para Rangel foram coletadas nos dois volumes de A Barca de Gleyre (1944), livro tido como inspirador por muitos autores. Lobato e Rangel tinham uma amizade sólida e bem humorada, compartilhavam muitas opiniões literárias, e na juventude tinham feito parte de grupos literários paulistanos. As cartas de Rangel não foram recuperadas, mas o livro traz o lado lobatiano da correspondência, onde ele fala sobre livros, família, fazenda, correção de estilo, carpintaria literária.

Lobato de novo, em outra carta de 1917, durante a leitura de A Mulher Fatal (1870):

Li ou estou lendo a Mulher Fatal – conheces? Que ótimo está ali o Camilo. Que desprezo de todas as regras da composição francesa! Quando se lhe depara lance de morder num adversário, larga da cena romântica com que está maçando o leitor e desanca. Na Mulher Fatal há isto: “Aí apareceu certa vez um arqui-tolo com grandes foros para maior graduação, etc.” E embaixo da página a nota: “O senhor doutor Joaquim Teófilo Braga, na Visão dos Tempos, 1ª. série.”  Imagine Flaubert fazendo isso em Salambô!

Não lhe perdoavam nada a Camilo, mas com que furor revidava os assaltos! Há dele não sei qual romance que em certo ponto está lamecha demais e “pau”; parece que Camilo mesmo percebe isso e, de repente, sem mais nem menos, larga a história e dá uma surra tremenda nessa mesmo Teófilo Braga. Depois continua a história, como se não tivesse havido coisa nenhuma.

O fato de Lobato se deleitar com isto não quer dizer que seja uma qualidade, mas não há como negar que ele se diverte sinceramente com o que o autor apronta, o que não é estranho, porque eu também me divirto com isso. Mesmo quando Glauber Rocha, no Riverão Sussuarana (1978) deixa vazar para dentro do romance o debate acalorado sobre fatos da sua vida pessoal durante a escritura do livro.

Na verdade, ficamos sabendo mais sobre Lobato quando vemos o que ele elogia nos seus mestres e nos seus contemporâneos:

Ontem li Histórias Sem Data, de Machado, e ainda estou sob a impressão. Não pode haver língua mais pura, água mais bem filtrada, nem melhor cristalino a defluir em fio da fonte. E ninguém maneja melhor tudo quanto é cambiante. A gama inteira dos semi-tons da alma humana. É grande, é imenso, o Machado. É o pico solitário das nossas letras. Os demais nem lhe dão pela cintura. (1915)

Uma das razões para isso é essa elegância que ele encontra em Machado, onde o enxugamento não se faz às custas da expressividade. Lobato admirava Coelho Neto, mas dizia que nele “há 200 mil adjetivos a mais”. E, em carta de 1915: “Estou convencido de que o vocábulo fora de moda, fóssil ou raro, é ‘pedra’ de banana-maçã”.

Em muitas dessas cartas Lobato manifesta uma certa expectativa em descobrir autores de estilo limpo, direto, espontâneo, forte. Sem a adiposidade dos beletristas da época. Daí sua impressão sobre Lima Barreto após as primeiras leituras, dirigindo-se a Rangel, em 1916:

Conheces Lima Barreto? Li dele, na Águia, dois contos, e pelos jornais soube do triunfo do Policarpo Quaresma, cuja segunda edição já lá se foi. A ajuizar pelo que li, este sujeito me é romancista de deitar sombras em todos os seus colegas coevos e coelhos, inclusive o Neto. Facílimo na língua, engenhoso, fino, dá impressão de escrever sem torturamento – ao modo das torneiras que fluem uniformemente a sua corda dágua. Vou ver se encontro um Policarpo e aí o terás. Bacoreja-me que temos pela proa o romancista brasileiro que faltava.

As opiniões de Lobato estão certas ou erradas? O estilo que ele defende é superior ou inferior aos demais estilos? Nada disso importa. Lobato era um indivíduo vigoroso, energético, homem de ação. Páginas e páginas das cartas são dedicadas à descrição de sua rotina na fazenda, consertando telhados, reforçando cercas, cuidando das criações, dirigindo plantios e colheitas, quebrando a cabeça com as burocracias cartoriais da época.

E não é apenas o despojamento que Lobato admira em Camilo, é a mão segura para ousar fazer tudo que ousa:

O mérito de Camilo está em que nos ensina todas as acrobacias da língua, e nos mostra todas as “bravuras” e ainda nos diverte. Quando se põe a troçar é enorme! Quando vira palhaço e vai descambando para o reles, sai-se com um disparate de gênio e salva tudo... Em matéria de diálogos de gente do povo, não sei de nada igual. (1916)

A Barca de Gleyre foi um dos títulos citados por Guimarães Rosa num questionário, quando lhe pediram uma lista de títulos de autores brasileiros que o haviam influenciado. Essa exuberância devoradora de leitor, esse gosto em se deixar arrebatar por um autor que entusiasma, parecem ter passado para Guimarães Rosa. Mesmo que os respectivos gostos fossem diferentes, a atitude para com a literatura era parecida.

Não muito diferente da de Ariano Suassuna, que dizia:

“É melhor estudar um só livro, qualquer que seja ele, com ‘raça’, alegria e entusiasmo, do que estudar todos os livros do mundo friamente.  Porque em tais casos um livro, mesmo menor, examinado e reexaminado em todas as suas implicações, aplaudido aqui e ferozmente negado ali, pode ser, para o jovem que o leia, o que foi, para mim, o ‘Assim Falou Zaratustra’ de Nietzsche, na adolescência: a descoberta da ardente e duradoura alegria do conhecimento”.
(Ariano Suassuna, Iniciação à Estética, pag. 13)









sexta-feira, 19 de outubro de 2018

4395) Uma retórica do Fantástico (19.10.2018)




Existe uma retórica do Fantástico, da literatura do sobrenatural, do insólito, do irreal?

Ou seja: existem procedimentos puramente verbais que estejam intimamente associados ao gênero fantástico? Um conjunto de “figuras de linguagem” ou equivalente, que por sua própria natureza conduzam à produção do sentimento do fantástico, num texto?

Quando estava pesquisando para minha antologia Freud e o Estranho (Casa da Palavra, 2007), li um excelente livro sobre cinema de terror, Caligari’s Children (1980), de S. S. Prawer, autor que eu deconhecia.

No capítulo 4, “The Uncanny”, ele diz (tradução minha):

Pode ser bastante produtivo, como já tentei demonstrar em outro contexto, elaborar algo como uma retórica ou gramática do Estranho [Uncanny]: examinar os instrumentos retóricos – a aposiopese, a anáfora, a anfibologia, construções aparentemente impessoais, deslocamentos da sintaxe, empilhamento de exclamações e interrogações, e assim por diante – de que os autores têm lançado mão, em diferentes momentos, com o fito de criar em seus leitores um estado de espírito adequado, uma sensação do Estranho e uma sensibilidade para o Estranho. (p. 114)

Prawer é professor de Língua e Literatura Alemã em Oxford, e esse breve apanhado de recursos retóricos me parece uma pontinha de uma montanha soterrada que pesquisadores de Letras poderiam escavar com proveito.

Para meu uso doméstico, resolvi dar uma avaliada. Dos recursos enumerados por ele, o mais banal e que primeiro salta aos olhos é o “excesso de exclamações e interrogações” de tanta pulp fiction. A exclamação denota o assombro, o espanto, o terror; a interrogação denota dúvida, incredulidade, incapacidade momentânea de entender.

Há precursores ilustres (ou dependentes famosos) destes recursos, como a gente vê em mestres do “relato alucinatório” como Edgar Allan Poe, E. T. A. Hoffmann e muitos outros, como o grande Guy de Maupassant:

Meu Deus! Meu Deus! Finalmente vou escrever o que me aconteceu! Conseguirei fazê-lo? Atrever-me-ei? É coisa tão estranha, tão inexplicável, tão incompreensível, tão louca! Se não tivesse certeza daquilo que vi, se não tivesse certeza de que não houve nenhuma falha nos meus raciocínios, nenhum erro nas minhas averiguações, nenhuma lacuna na sequência irredutível das minhas observações, eu me julgaria um mero alucinado, vítima de alguma estranha visão. E, afinal, quem sabe?
(“Quem Sabe?”, em Histórias Eternas, trad. Ondina Ferreira, Ed. Cultrix, 1959)

O parágrafo acima é uma dessas aberturas-padrão de tantos contos fantásticos, em que um indivíduo, tendo passado por uma experiência aterrorizante ou incompreensível, tenta fazer sentido do que lhe aconteceu, mas seu estado de desorientação emocional é revelado justamente pelos pontos de exclamação e de interrogação.

Dos recursos citados por Prawer, este é a esta altura o mais banal, o mais clichê.

Resolvi então dar um rápido balanço nas figuras de linguagem que ele cita, essas senhoritas enigmáticas e glamurosas vestindo túnicas gregas.

Prawer cita como exemplo a Anáfora, assim descrita nos manuais:

A repetição da mesma palavra ou grupo de palavras no princípio de frases ou versos consecutivos. 

Os exemplos disso são milhões:

Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos. Foi a idade da sabedoria, foi a idade da tolice. Foi a época da fé, foi a época da incredulidade. Foi a estação da luz, foi a estação das trevas. Foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero. 
(Charles Dickens, Um Conto de Duas Cidades)

Esta simples figura de linguagem pode produzir o sentimento do fantástico, ou favorecer seu aparecimento? Um texto fantástico pode usar a anáfora, mas ela não me parece estruturalmente identificada a ele, como as demais figuras da lista.

De qualquer forma, a Anáfora é uma entre muitas figuras narrativas baseadas na repetição. E aí, sim, porque em termos narrativos isso gera todas as histórias de duplos, Doppelgängers, reflexos, desdobramentos, cisões, duplicação de um mesmo ser.

Das figuras citadas por Prawer a mais conhecida deve ser a Anfibologia, apresentada por Monteiro Lobato em Emília no País da Gramática, quando a boneca é levada a visitar os cárceres onde estão presos os vícios de linguagem.

Emília botou-lhe a língua e passou ao terceiro cubículo. Viu lá dentro um vulto de mulher com duas caras.
— E esta "bicarada"? — perguntou.
— Esta é a ANFIBOLOGIA, que faz muita gente dizer frases de sentido duplo, ou duvidoso, como: Ele matou-a em sua casa. Em casa de quem, dele ou dela? Quem ouve fica na dúvida, porque a matança tanto pode ter sido na casa do matador como da matada.  

O que a Gramática classifica como defeito, quando por ignorância, pode ser efeito, quando usado em busca de um resultado específico.

O Fantástico pode ser evocado de maneiras interessantes através de frases “anfibológicas”, frases que, como certos desenhos, certos efeitos ópticos, podem ser rigorosamente interpretadas de duas maneiras opostas.

Como as frases de som quase idêntico que abriam e fechavam os contos de Raymond Roussel.

Seria uma tarefa interessante ir registrando e compilando trechos desse tipo, em que algo é descrito, até com certo detalhismo, mas o leitor não sabe a quem atribuir aquela ação, ou pensamento.

Fui à cata da tal Aposiopese. Mestre Google me brindou de início com esta descrição:

Interrupção intencional de um enunciado com um silêncio brusco, seguido ou não de um anacoluto, querendo significar que se resolveu calar o que se ia dizer. A aposiopese geralmente é representada graficamente pelas reticências. 

É uma figura de linguagem que reproduz aquele movimento em que a mente se atira para diante mas se detém subitamente porque algo mudou. É um movimento de estranheza, de raciocínio cortado ao meio por uma surpresa ou um desmentido.

Outra página, citando Massaud Moisés, esclarece:

Segundo o Dicionário de Termos Literários (Massaud Moisés, Editora Cultrix, 2002), entende-se aposiopese como «silêncio súbito, interrupção, reticências»; a referida obra acresenta ainda: «[C]onsiste na suspensão de um pensamento já iniciado, por meio de corte repentino na cadeia sintática. Espécie de anacoluto consciente, a aposiopese assinala o momento em que o escritor interrompe bruscamente a sequência das ideias, 1) ao perceber que vai adiantar raciocínios ou surpresas, 2) quando pretende dar ênfase às palavras, ou 3) quando se dá conta de que vai dizer mais do que deseja. No geral, a aposiopese evidencia-se, graficamente, pelas reticências, mas nem todo sinal suspensivo denota a presença deste recurso estilístico»

A aposiopese pode ser ampliada no contexto de uma única frase para o de uma narrativa inteira. São aqueles contos fantásticos em que alguém começa a descrever um fato ou uma percepção extraordinários e interrompe-se, repetidas vezes, recomeçando a seguir de um ponto totalmente diverso, na tentativa vã de abarcar algo maior do que sua capacidade de expressão.

Com um pouco de boa vontade, posso encontrar um exemplo de algo nesse sentido em um recurso estilístico muito frequente em Jorge Luís Borges, quando seu personagem, diante de um fato estranho ou fantástico, tenta explicações bem diferentes, sucessivamente:

Este palácio é obra dos deuses, pensei primeiramente.  Explorei os inabitados recintos e corrigi: Os deuses que o edificaram morreram.  Notei suas particularidades e disse: Os deuses que o edificaram estavam loucos.
(“O Imortal”, em O Aleph, 1948)

Muitas vezes a penetração no ambiente fantástico se dá assim, por aproximações sucessivas, por tentativas de explicação sempre interrompidas antes de chegar ao fim, devido ao aparecimento de novos elementos insólitos.




domingo, 14 de outubro de 2018

4394) A única família normal é a minha (14.10.2018)







O websaite Metafilter abriu com seus numerosos leitores um questionário interessante, nos seguintes termos: “Quais são os hábitos da sua família que para você eram normais e comuns, e você só percebeu que eram excentricidades quando foi morar fora?”.

As respostas variam muito, e fazem a gente pensar de novo que “ninguém é normal visto de perto” ou que “nenhuma família é normal vista de fora”, e assim por diante.

É bom lembrar que a imensa maioria dessas respostas vem de pessoas nos EUA, e que talvez respostas brasileiras trouxessem uma variedade interessante de hábitos malucos que são só nossos. 

Abaixo, algumas respostas que me chamaram a atenção. Cada parágrafo é de uma pessoa diferente.

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Minha família comia arroz de colher. Ainda hoje afasto os olhos quando vejo alguém comendo arroz com garfo.

Minha mãe ensinou a gente que não se usa uma toalha duas vezes, é um hábito grosseiro. Perdi esse costume depois de adulto, quando fui usar lavanderias pagas. Fico pensando no que era usar três toalhas para um único banho de chuveiro.

Quando saí de casa, as pessoas me olhavam esquisito porque eu comia comida vencida e não me incomodava de cortar partes mofadas ou podres de algo e comer o resto. Meus pais cresceram durante o racionamento de comida da II Guerra, e minha mãe ainda hoje prefere comer o pão “dormido”.

É um pecado grave o fato de nós, filhos, não sermos capazes de impedir nossa mãe de agir assim. Mas ela lava o peixe antes de preparar. Ela lava com detergente.

Quando criança eu não tinha a impressão de viver num lar muito religioso, mas sempre ouvi dizer que nossos amigos de famílias não-cristãs eram gente inferior, que pais que deixavam seus filhos ver filmes proibidos para menores eram imorais, que eu devia lamentar as crianças filhas de pais separados, etc. Eu não tinha noção do que era a vida dos adultos até passar a viver só. A religião deixou de fazer sentido para mim no momento em que ninguém me obrigou mais. E todas aquelas pessoas que eu cresci vendo como imorais, deixaram de parecê-lo.

Em nossa casa, costumávamos ter longas discussões em formas de cartas compridas e formais que eram entregues na mão do destinatário, com seriedade absoluta. Descobri que isso não é um costume universal.

As pessoas da minha família sempre levam um isopor de cerveja quando vão a um velório, e quando as coisas começam a ficar muito emotivas, saem para beber lá fora.

Lá em casa se lava a banheira antes e depois de cada banho, mesmo quando as pessoas tomam banho sucessivamente. Quando falo nisso fora de casa, todo mundo fica chocado. Ao que parece, eles só lavam a banheira uma vez por semana.

Nas velhas fazendas da minha infância, ninguém usava a porta da frente. Todo mundo (com exceção do padre local) entrava direto pela porta da cozinha, que era também o local onde as pessoas passavam 90% do tempo, porque fazia menos frio.

Quando eu era garoto, a família de um amigo meu mantinha toda a mobília da sala de visitas ainda embrulhada em plástico, do jeito que veio da loja, para não se estragar.

Uma coisa da minha família que nunca encontrei em nenhuma outra foi que minha avó e a irmã dela gostavam de cachorros, e todos tinham sempre o mesmo nome. Os cães da minha avó se chamavam Smokey, e os da minha tia-avó eram Duke. Elas tiveram dezenas de cachorros ao longo da vida, e todos sempre tiveram esses mesmos nomes.

Durante anos, na minha infância, tínhamos uma reunião familiar todo domingo. Repassávamos as anotações do domingo anterior, depois cada um de nós dizia uma coisa de que podia se orgulhar da semana que passou, e cada um fazia um elogio a cada membro. Depois encerrávamos cantando uma canção.

Éramos cinco filhos e havia só um banheiro, de modo que não tínhamos o conceito de privacidade. Era muito normal um de nós estar sentado na privada enquanto outro escovava os dentes ou tomava um chuveiro. Acho que somente aos doze anos percebi que as demais pessoas fechavam a porta quando iam ao banheiro.

Quando a gente dizia a mamãe que estava com fome e ainda não era hora do jantar, ela tirava hotdogs do congelador, e a gente comia como se fossem picolés. Depois fiquei sabendo que isso não é a norma.

Quando a gente queria um gole rápido de água, abria a torneira e colocava a boca embaixo. Ainda lembro O HORROR no rosto da minha amiga do colégio quando fiz isso na casa dela.

A gente tinha um piano na sala, junto da porta de entrada. Quando meu pai chegava, tirava as chaves e a carteira do bolso, e punha em cima dele. Depois o piano foi vendido e substituído por um mesa, que todo mundo continuou chamando “o piano”. Quando meus pais se mudaram e levaram a mesa, ela foi parar na sala de jantar da casa nova, e ainda era “o piano”, e meu pai ainda hoje põe as chaves e a carteira em cima dela.

Meu pai era um trabalhador autônomo e tinha o hábito de encerrar o dia de trabalho às 16:00, vir para casa, e todo mundo jantava às 16:30. Quando cresci, fiquei uns dias na casa de alguém e quando deu 18:00 e nada de ninguém pôr a mesa, comecei a pensar: “Esse povo idiota não janta não?!”

Na minha casa não tinha isso de Papai Noel. Eu já era adulto quando percebi que muitas crianças, em algum ponto da vida, acreditam que ele existe, e os pais fazem encenações a sério, neste sentido. Quero dizer, a gente o via nos filmes e na TV, mas sempre achou que era um personagem como os demais.

Na minha família a gente cantava e dançava pela casa com frequência, como se fosse um musical.

Uma amiga minha da faculdade vinha de uma família onde havia o costume de apertar a mão de todas as pessoas dentro do carro, quando se cruzava a divisória entre dois Estados. Imaginem a surpresa dela e o choque das outras pessoas quando ela quis fazer isso em nossa primeira viagem da turma.

Minha família viajava pouco, de modo que eu não tinha a menor noção dos processos envolvidos nisso. Eu já tinha mais de 30 anos quando entendi que a gente podia usar as gavetas e os armários quando se hospedava num hotel.

Minha mãe passava uma hora inteira à noite fazendo suas preces, e ai de quem a interrompesse. Ela sempre tomava um drinque à noite, antes de dormir. Com sete anos de idade eu já sabia preparar uma vodka com suco de laranja, ou um gim com tônica.

Quando tínhamos visitas, minha mãe já estava limpando a casa antes mesmo deles irem embora. As pessoas estavam conversando descontraidamente na sala e ela já estava pegando os copos para lavar (mesmo que elas não tivessem acabado de beber), e passando o aspirador de pó em volta dos pés delas. Quando todo mundo ia embora, a casa já estava limpa e reluzente.

Quando meu marido e o irmão dele eram garotos, toda vez que queriam alguma coisa realmente importante tinham que apresentar uma proposta por escrito.

Meus irmãos e eu tínhamos cores predeterminadas para tudo que era nosso: toalhas, xícaras, escova de dentes, peças de jogos de tabuleiro. Meu primeiro companheiro de quarto na universidade se horrorizou ao saber que eu nunca pude ter uma caneca verde, mesmo sendo minha cor favorita.

Na família do meu marido, todo mundo cresceu acreditando que se não rezassem antes de cada refeição iriam contrair botulismo.

Acho muito estranho quando as pessoas vestem crianças todas de preto quando as levam para um velório ou funeral. As crianças deveriam vestir algo formal, mas não tem que ser tudo preto.

Cresci numa família numerosa, onde em dias de festa (Natal, etc.), depois da ceia todo mundo ia para a cozinha, ajudar a lavar os pratos. Era um momento agradável, de brincadeiras, convivência, ninguém se incomodava. Entendia-se que as pessoas que tinham dado duro para preparar o jantar estavam desobrigadas disto. Tive momentos desconfortáveis na casa dos pais da minha esposa quando tentei ajudar a lavar os pratos, porque lá homens NÃO LAVAM prato nenhum. Eles ficam sentados na cadeira de balanço.


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Tem muito mais coisas, mas cabe ainda um comentário. Muitas vezes uma pessoa toma uma atitude qualquer, e nós interpretamos essa atitude como sendo uma decisão intelectual ou moral dela. Mas pode ser apenas um desses “modos de ser” que assimilamos muito cedo.

No contexto paterno-materno-fraterno, milhares de hábitos e valores se formam sem que nem nos passe pela cabeça questionar aquilo. Afinal, uma criança aprende dezenas de coisas diferentes por dia. Fica tudo internalizado e ninguém questiona mais. A gente aprende um jeito, e em geral morre sem sequer perguntar o “por quê” de ser assim, e não assado.

Algo parecido ocorre com valores, costumes, conceitos e preconceitos. Opiniões políticas, religiosas, informações sobre o mundo e a vida em geral. O que uma criança aprende tem chances de ficar sendo para ela a pura expressão da verdade.

Como dizia o filósofo, é mais fácil matar e morrer por uma idéia do que questionar essa idéia, seja ela qual for.