terça-feira, 29 de setembro de 2015

3931) O enigma nas letras (29.9.2015)




Em Arsène Lupin, Ladrão de Casaca, a primeira coletânea de contos do gentleman-assaltante-detetive criado por Maurice Leblanc, grande sucesso do romance policial entre 1905-1935, há um conto em que o mistério repousa numa fórmula antiga, preservada através das gerações.

Convidados importantes estão no castelo de Georges Devanne, admirando “as incomparáveis riquezas acumuladas através dos séculos pelos senhores de Thibermesnil.” Numa das torres, Devanne mostra a todos o frontão da estante, onde o nome do castelo está soletrado com sólidas letras de ouro.

Vou omitir a aventura, subsequente, porque me interessa a frase da fórmula antiga. Ela diz, no original francês: “La hache tournoie dans l’air qui frémit, mais l’aile s’ouvre, et l’on va jusqu’à Dieu.”  Mais ou menos: “O machado gira no ar que treme, mas a asa se abre e vai-se até Deus.”  Durante séculos essa indicação do tesouro da família passou de geração em geração, transmitida com fervor por pessoas que já as receberam de quem não as compreendia. Eram as coordenadas do tesouro. Esperava-se que um dia algum descendente da família descobrisse o seu sentido.

Arsène Lupin percebe que os objetos citados na frase estão ali mascarando três letras, porque em francês é muito parecida a pronúncia de “hache” e H, “air” e R, “aile” e L.  Ele descobre que entre as sólidas letras de ouro por cima do frontão da estante monumental, dizendo THIBERMESNIL, existem três que são móveis: o H gira e o R treme e o L se abre. “E vai-se até Deus.”  Executando esses movimentos nas respectivas letras, abre-se a porta ancestral da passagem secreta, e vai-se até a capela do castelo por um subterrâneo. (Que Lupin utiliza para saquear as riquezas do castelo, no primeiro movimento dessa trama.)

O mistério vinha pelo menos desde o reinado de Henri IV (morto em 1610). A pessoa que cifrou a senha de abertura do mecanismo usou premeditadamente letras cujos nomes, ditos em voz alta, evocavam substantivos variados: machado, ar, asa. Era fácil construir uma estrutura memorizável em torno desses três substantivos, sem dar a entender que eles estavam ali apenas para representar três letras.

É um enigma engenhoso, porque se vale da superposição entre linguagem oral e linguagem escrita, usando uma para preservar pistas em outra. Neste conto, Lupin mede forças com Sherlock Holmes (no livro chamado Herlock Sholmes, por querelas autorais). O conto de Leblanc (1906) lembra “O Ritual Musgrave” (1893) de Conan Doyle, também sobre uma fórmula preservada mas não compreendida. Mas Leblanc vai um passo além de Doyle, como bom discípulo, e introduz uma criptografia de natureza mais original.