quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

5141) As fantasmagorias artificiais (9.1.2025)




(imagem: Petr Válek)


Eu defendo há anos esta teoria: o videogame será, para o século 21, o que o cinema foi para o século 20. Começou como simples curiosidade técnica, uma diversão de quermesse e de galeria de camelôs, começou a atrair muita gente, a dar dinheiro, e começaram a chegar as pessoas de cabeça realmente criativa (e precisadas de dinheiro, como é o karma dos criativos), e “do nada” surgiu uma nova Usina de Sonhos. 
 
Agora, estamos em 2025, e basta comparar. No ano de 1925, no cinema, já tínhamos Griffith, Eisenstein, Fritz Lang, Chaplin... mas tudo isto é pouco.  O Cinema estava apenas começando.  

No mundo dos games, há gostos para tudo, mas pode-se considerar como franquias/séries fundadoras títulos como Super Mario Bros, Prince of Persia, Monkey Island, Grim Fandango, The Sims, The Legend of Zelda, Skyrim, Final Fantasy, Metal Gear, Grand Theft Auto, Fallout, Myst, Red Dead Redemption, Assassin’s Creed, Shadow of the Colossus... Estou falando apenas dos que já joguei algumas horas, uma vez ou outra. Tem muito mais coisas. 




 
Estou começando a considerar uma variável nova nessa equação: é a famigerada Inteligência Artificial. 
 
Se algo já estiver presente, como idéia, na cultura de um povo; se for tecnicamente possível, e não for economicamente inviável, provavelmente acontecerá. E a Inteligência Artificial, com todos os seus prós e contras, suas promessas e ameaças, com todo o seu brotar-desarrumando, já fincou sua bandeira em terra habitada.  
 
A invenção de tecnologias de produzir imagens animadas fez as redes sociais virarem uma proliferação de grotesquerias, no bom e no mau sentido. Quem tem tempo, grana, imaginação e curiosidade está tendo a chance de participar de um momento fundador na história das Imagens Luminosas em Movimento (nem vou falar de texto ou de imagem fixa, porque aí o céu é o limite). 
 
Os algoritmos das redes sociais têm feito pousar nas minhas timelines os trabalhos de gente que não conheço, com experiências curiosas. Esses artistas usam o fenomenal banco de imagens da I.A. (feito às custas de muita pirataria e pilhagem de trabalhos individuais, é bom lembrar), e começam a alterar essas imagens, interferir nelas, recombiná-las com imagens de outras estirpes, e criar com isso pequenas miniaturas animadas. 
 
Aqui estão alguns exemplos vistos ultimamente. Alguém pode dizer: “Que coisa horrorosa! Então todas as animações por I. A. da Internet são coisas de filme de terror?...”  
 
Minha resposta: Não, não é, e deve haver a esta altura um bilhão de animações com anjinhos barrocos, colibris gorjeantes, greguinhos de toga tocando harpa, e sei lá mais o quê. O algoritmo folheia isso e diz aos sub-algoritmos: “Não mandem isso para BT, ele não curte, ele gosta é de fantasmas, monstros alienígenas, esqueletos, ciência gótica, aventura steampunk...” – e não estará muito longe da verdade. 
 
Aqui vão algumas séries de imagens que recolhi e compartilhei no Facebook ultimamente. São trechinhos curtos, visivelmente imagens recicladas mediante um “prompt”, com resultado equivalente aos famosos “GIFs animados”, a novidade de quinze anos atrás, por aí. 
 
Fico comovido com as imagens da série The Rage of Angels, de Alexandra Gorsf (podem ser acessadas aqui:) 
https://www.facebook.com/watch/?v=3086375484843007
 
Elas fazem uma síntese curiosa entre o Fofo e o Horripilante, misturando criancinhas angelicais e insetos monstruosos. 





 
Um trabalho muito detalhado e inquietante é o de Fredrik Jonsson, com a série “Mechanimal” (com criaturas híbridas e animal e robôs), outra série mostrando grupos de cientistas investigando, com toda calma e atenção, criaturas monstruosas; e a série “Cloud Station” onde ele cria estações de trem meio futuristas, meio steampunk, onde evoluem personagens enigmáticos. 














 
Outro maluco genial é o músico Petr Válek. Ele gosta de fazer uns clips encarnando um personagem amalucado, com músicas barulhentas, uma espécie de noizak (noise + muzak). É uma mistura de Daminhão Experiença, Edgar Varèse e Walter Franco. Estes clips tornam-se bastante divertidos se a gente aceitar que o objetivo ali não é propriamente criar belas melodias ou harmonias inovadoras. 
 
O portal de Válek no YouTube tem uma série desses clips musicais, principalmente os clips com imagens aterrorizantes. Ver esses clips tem feito um grande bem à minha saúde, indiretamente, porque agora tenho certeza de que JAMAIS tomarei ácido lisérgico ou coisa parecida, só pelo medo de acessar essas memórias e ser mentalmente transportado para os ambientes macabros e as criaturas sinistras de Valék, imagens produzidas com grande economia de efeitos. Quem quiser que se arrisque.  
 
Aqui, o portal do YouTube, the VAPE:
https://www.youtube.com/@thevape5030
 
E alguns exemplos das imagens de Válek:




"Insignificant Episode 698":




"Lighting the fourth Advent candle":





Não sei avaliar como anda no mundo inteiro a criação desses clips, e não tenho como saber até que ponto eles são feitos com o uso de Inteligência Artificial. São, em última análise, uma série enorme de colagens de imagens bizarras. Imagens com certos movimentos limitados, denunciando o uso de Inteligência Artificial. Gestos mecânicos, meio erráticos, que não esperaríamos de uma pessoa real. 
 
São cenas curtas com duração de cinco a dez segundos, logo substituídas por outras, sucessivamente. Não há narrativa, não há história. Tudo acontece num limbo sem contexto, imagens se movendo e nada mais. Apenas o ambiente fantástico, os personagens grotescos, os gestos limitados e repetitivos. 
 
Esses clips acabam me trazendo à memória as primeiras experiências de Georges Méliès (1861-1938), um dos pioneiros do cinema. Muita gente deve se lembrar dele como o personagem interpretado por Ben Kingsley no filme A Invenção de Hugo Cabret (2011), de Martin Scorsese. 


 
Méliès foi o primeiro cineasta a pesquisar, descobrir e aplicar sistematicamente todo o arsenal de efeitos especiais resultantes da natureza mecânica do equipamento cinematográfico: a filmagem interrompida, a câmera lenta, a câmera acelerada, a superposição de imagens, etc. 
 
Méliès acabou evoluindo para o filme narrativo, mas seus primeiros filmes de curtíssima metragem eram somente isto: episódios isolados, de poucos segundos, com o único propósito de explorar um novo truque, um novo efeito. Essa novidade técnica seduzia as platéias, tal como hoje nos deslumbra o fato de vermos em movimento essas imagens de I.A., híbridas, superpostas, improváveis, impossíveis. 





 
Minha expectativa é que aos poucos essas três vertentes fundamentais irão convergindo para formar "o Algo", a arte típica do século 21: 
 
a)      A Inteligência Artificial trará seu acervo pilhado e pirateado de toda a cultura mundial, e a brutal aceleração de seus algoritmos turbinados, capazes de copiar, cortar e colar as imagens mais diversas num piscar de olhos, de acordo com qualquer prompt do usuário; 

b)      O Videogame trará a interatividade, a participação ativa e a interferência constante do usuário/espectador na narrativa, a possibilidade de viajar por dentro de universos minuciosamente planejados para reagir à sua presença, produzindo uma infinita ramificação de situações e experiências; 

c)       O Cinema trará a dramaturgia, o senso narrativo, a capacidade de criar personagens e situações humanas com densidade suficiente para atrair, segurar e satisfazer por duas ou três horas ininterruptas a atenção de um público (individual ou coletivo). 
 
As possibilidades, como sempre, são infinitas.