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Manuel Domingos Campos Neves, assessor jurídico do Banco do Norte Fluminense, em Campos (RJ), chegou em casa, voltando do trabalho, às 19:40 de uma terça-feira, abriu a porta do apartamento, e viu na sala uma enorme poça de sangue da janela da frente até o sofá, encharcando o tapete, e o cinzeiro da sala (ele fumava, a esposa não) cheio de pontas de cigarro. Ele chamou: “Maristela!”. Quando Maristela apareceu, assustada com aquele tom de voz, ele apontou com o dedo e disse: “Quem foi que andou fumando aqui?...”
Paulo César Medeiros, 48 anos, gerente do mercadinho Superpreço, em Montes Claros (MG), chamou ao escritório a operadora de caixa Auxiliadora Lins, 27 anos, pediu que entrasse, fechasse discretamente a porta, sentasse; perguntou se queria uma água, um café; a moça tremia-se toda, nunca tinha sido chamada à sala de um gerente em seus onze anos como caixa; quando ela sossegou, ele ficou muito sério e disse: “Minha filha, não me queira mal, nem pense que é desrespeito, mas eu só queria lhe pedir que quando viesse de blusa branca não botasse esse sutiã preto, porque desse jeito ninguém aqui se concentra.”
Dona Laura, 61 anos, professora de português no Grupo Escolar Doutor Frutuoso, em Jequié (Bahia), sempre abria suas aulas fazendo a chamada, e naquele dia, no 3º. ano, foi chamando nome por nome e ouvindo o regulamentar “Presente!”, até que chamou “Bartolomeu Lopes Vasconcelos” e o garoto moreninho respondeu: “Ausente!”, e Dona Laura, que àquela altura do campeonato já tinha uma compreensível dificuldade para ligar-o-nome-à-pessoa nas onze turmas com que lidava por semana, botou falta no misera, que depois saiu dali reclamando que gente velha não tem senso de humor e que uma professora não sabe o significado da palavra paradoxo, que o tio dele tinha lhe ensinado no domingo anterior.
Nanda Vasconcelos, 12 anos, estudante, conseguiu finalmente ser levada para ver um filme num sábado à tarde por seu vizinho e melhor amiguinho, Dodô, 13 anos; foram juntos e cercados de mil recomendações, viram o filme todo, mas ela voltou com uma angústia, um aperto, e queixou-se que o cinema estava muito frio, que o som estava alto, que o herói era meio burro, que os vilões eram antipáticos, que a roupa da princesa parecia uma cortina, e blá blá blá, e Dodô calado concordando, e quando chegaram na porta da casa dela ela se calou por um instante e ele, que há horas juntava coragem, falou, “valeu, até a próxima” e deu-lhe um beijo rápido na boca, e o resto do dia ela não reclamou de mais nada.
Marieta Santana da Silva, 61 anos, dona de casa em Junco do Seridó, estava no quintal de casa estendendo roupa no varal, quando pela cerca de trás se aproximou um homem esmolambado, de bigode escuro, chapéu de palha todo desfiado, e disse: “Dona, me dê uma sobra de comer!...” Ela olhou, se compadeceu, entrou na cozinha, abriu um pão francês, passou margarina, e levou para o homem, que deu uma dentada, mastigou, parou de mastigar, abriu o pão, olhou dentro e disse: “Margarina? Não tinha manteiga não?”.
Beto Sensação, paulistano de Moema, 24 anos, baterista, convidado para integrar a banda Innocent Bystanders, dedicou-se a ela de corpo e alma durante aqueles seis meses, tocou de graça, tocou doente, abraçou espiritualmente os outros três integrantes, aplicou-se a entender os arranjos, colaborou numa letra, gravou metade das faixas do CD de estréia, compreendeu a necessidade de em outras faixas inserirem um ghost-drummer mais experiente porque seguro morreu de velho, mas ao ver no YouTube uma entrevista do vocalista Tchecov Gun arretou-se, encaixotou a bateria, viajou para Floripa por um mês sem atender o celular, deixou como explicação apenas uma mensagem para Gun dizendo: “Quando lhe perguntarem sobre o disco da banda, nunca responda assim: Esse meu disco....”
Belarmino Gomes Pantaleão, 51 anos, advogado, estava no escritório de sua residência em Maceió, e pontualmente às 18:30 ergueu-se da escrivaninha onde redigia sua Memória dos Grandes Jurisconsultos Alagoanos, foi ao lavatório, lavou as mãos e o rosto, vestiu o paletó e dirigiu-se para a sala de jantar, onde sua esposa Marluce acabava de servir o jantar; sentou-se à cabeceira, a esposa sentou na extremidade oposta, ele olhou a mesa coberta pela toalha de renda surrada mas lavadinha, viu o canjirão fumegante de sopa de legumes, o bule de café, a pãozeira com dois pães franceses, o pratinho à sua frente com dois ovos cozidos, o pratinho da esposa com um ovo; ergueu o sobrolho e disse: “Isso é tudo que tem para jantar?”, a esposa suspirou fundo, olhou-o nos olhos mansamente e disse: “Isso é tudo que tem para jantar”; ele ergueu-se empurrando a cadeira para trás, recolheu na mão direita a borda da toalha e deu um único e vigoroso puxão que arrastou tudo em cacos e estrépito para o chão, e retornou para o escritório e seu labor na Memória dos Grandes Jurisconsultos Alagoanos.