quinta-feira, 30 de novembro de 2017

4291) Chico Salles 1951-2017 (30.11.2017)




(foto de Chico Salles por Livio Campos)

As estrofes rimadas do Destino me fizeram estar em Sousa, no sertão da Paraíba, quando recebi a notícia da morte de Chico Salles.

Vi logo, nas redes sociais, que não fui o único a ser pego de surpresa. Chico, além de ser a animação em pessoa, e de fazer trinta coisas ao mesmo tempo, era mais novo do que eu. Mas essa chamada não é pelo número da senha. Ela cai do céu como raio em céu azul. E contra ela nada adianta – o único jeito de se conformar com isso é fazendo trinta coisas ao mesmo tempo.

Para os que não o conheceram: Chico Salles era paraibano de Sousa, radicado no Rio de Janeiro desde a juventude, e que atuou, com o mesmo brilho, como cordelista, sambista e forrozeiro. Três áreas que eu vivo bordejando por curiosidade, e foi o amor pelo cordel, pelo samba e pelo forró que nos aproximou e nos uniu.

Este é um ponto interessante. São três “países” tão próximos e de idioma tão parecido que era de se esperar que houvesse um tráfego maior, um comércio maior entre eles, e até um número maior de pessoas com dupla ou tripla cidadania. Mas eu conheço poucos cordelistas profissionais que tenham composto e gravado forró profissionalmente; samba, então, nem se fala.

Por que? Não sei. São três estéticas diferentes, mas não tão complexas ou tão especializadas quanto alguém pode imaginar vendo de longe. O que se requer de um indivíduo para uma delas pode ajudar em muito a praticar as outras.

A junção entre o samba e o forró tem várias pontes sólidas armadas por gente como Jackson do Pandeiro, Bezerra da Silva e tantos outros. Os versos de cordel, em suas modalidades básicas de sextilha e septilha, se encaixam sem esforço em ambos os ritmos. Mesmo considerando que tanto “samba” quanto “forró” incluem um milhão de variantes rítmicas e estruturais cada um; mas as estrofes e as linhas do cordel são básicas, intuitivas, maleáveis, e correspondem, a esta altura, a uma cadência assimilada pela fala coloquial brasileira. Podem ser usadas sem esforço nas letras dessas canções, sem que pareçam um enxerto artificial.

Chico Salles vivia me catequizando para entrar na Academia de Literatura de Cordel, da qual era membro, e eu, apesar de simpatizar com a instituição em si, e de ter lá muitos amigos, sempre refuguei. Por que? Não sei. Acho que não gosto muito da pompa e formalidade em que as academias se deleitam, aquele negócio de “peço a palavra”, “nobre colega”, “procedamos à leitura da ata”, “vamos compor a mesa”. Mesa que eu gosto é mesa de bar.

Como por exemplo a do Botero, no Mercado das Artes de Laranjeiras, onde Chico pontificava e onde provavelmente nos vimos pela última vez meses atrás,  quando Vladimir Carvalho veio mostrar no Rio seu documentário sobre Cícero Dias. Ali a conversa fluía da Paraíba para o cinema, do Rio para o cordel, para as artes plásticas, para o mundo.

Foi em torno do samba que me envolvi pela primeira vez com um trabalho de Chico, a coletânea Sérgio Samba Sampaio, que ele concebeu, gravou, e lançou em 2013.  Nossa geração foi muito marcada pela música do poeta de “Eu vou botar meu bloco na rua”, uma obra sempre surpreendente, uma espécie de pós-Tropicalismo injetado de Zona Norte (como a de Jards Macalé) e de cultura pop (como a de Jorge Mautner).


Chico fez uma seleção brilhante dos sambas de Sampaio, um material que ouvi pela primeira vez no carro dele, voltando de uma gravação na Tijuca, rumo ao Lamas, na companhia imprescindível de Edmar Oliveira.

Depois veio o CD de Chico sobre Rosil Cavalcanti em seu centenário, Rosil do Brasil (2015), um álbum à altura do homenageado. Foi em outra homenagem que pela única vez dividimos o palco, numa palestra-espetáculo na Biblioteca de Botafogo, no Rio, quando foi comemorado o centenário de Luiz Gonzaga, em 2013. Chico levou um trio nordestino, que tinha inclusive Durval na zabumba, e encerramos o debate botando todo mundo pra cantar xote e baião, num coro que incluiu até Beto Quirino.



Pois é, Chico – nossa academia acabou sendo mesmo, sem desdouro para as demais, o circuito que passa pelo Manolo, pelo Botero, pelo Lamas ou sei lá o que mais. Cordel, forró e samba aproximam quem gosta de verso, de música, da mesa comunal onde todos são iguais na convivência e únicos no talento.  Parabéns pela beleza da obra, que é o que fica de nós. Obrigado pela alegria dos momentos, que é o que fica de tudo.








segunda-feira, 27 de novembro de 2017

4290) Traduzir e retraduzir (27.11.2017)



No artigo cujo link vai aqui embaixo, Rachel Cooke medita sobre os caminhos da tradução literária. Ela começa se referindo ao romance de Françoise Sagan Bom dia, tristeza (“Bonjour, tristesse”), grande sucesso dos anos 1950.


Meus comentários neste artigo vão ficar engraçados porque ela questiona duas traduções diferentes, do francês para o inglês; e eu aqui vou retraduzir estas para o português, mas procurando ficar o mais próximo possível da forma de cada uma.

Rachel Cooke diz que amou o romance de F. Sagan desde a adolescência, e desde que que leu pela primeira vez a famosa frase de abertura do livro:

« Sur ce sentiment inconnu dont l'ennui, la douceur m'obsèdent, j'hésite à apposer le nom, le beau nom grave de tristesse. »

Uma frase que eu poderia, numa primeira tentativa, traduzir aproximadamente, procurando manter inclusive sua estrutura :

Sobre este sentimento desconhecido cujo tédio e cuja doçura me obcecam, eu hesito em apor o nome, o belo e grave nome de tristeza.

Meio desajeitadão, até porque “obcecam” é uma palavra meio opaca, a gente tem que pensar um segundo a mais para poder entender, e “apor” é um verbo que eu evito mais do que beco escuro de madrugada. Uma solução parcial destes dois problemas poderia ser, numa segunda tentativa:

Neste sentimento desconhecido cujo tédio e cuja doçura me inquietam, eu hesito em colocar o nome, o belo e grave nome de tristeza.

Ficou mais legível, mas resta a questão de fidelidade. Em todo caso, como diz um tradutor amigo meu sem papas na língua, “de graça, só vou até aí.”

Mas preciso lembrar que nossa amiga Rachel leu o livro em inglês. A tradução que ela diz que leu na adolescência foi a de Irene Ash, que abre o livro desta forma:

“A strange melancholy pervades me to which I hesitate to give the grave and beautiful name of sadness”

Uma estranha melancolia se apodera de mim, à qual eu hesito em dar o nome grave e belo de tristeza.

Traduzir essas palavrinhas que envolvem sentimentos é sempre uma coisa traiçoeira, porque nem sempre palavras parecidas, em dois idiomas, correspondem a todas as nuances do que a gente descreve como o mesmo sentimento.

Lembro-me de Gregory Rabassa, o tradutor norte-americano de Cien Años de Soledad de Garcia Márquez, explicando por que o “soledad” em castelhano virou “solitude” em inglês, e não “loneliness”.

No caso da frasezinha de Sagan, “melancolia” e “tristeza” já são duas esquinas onde é preciso parar e observar o trânsito com cuidado; mas é o tal do “pervades me” que me deixa encucado.

Que eu saiba, não temos em português (ou pelo menos no português do meu Dicionário Houaiss) o verbo “pervadir” e o adjetivo “pervasivo”; temos invadir e invasivo, que não são a mesma coisa. Invasivo é um exército ou uma cirurgia; pervasivo é um perfume ou uma lembrança.

Traduzi “pervades me” por “se apodera de mim”, mas isso contamina o texto de uma conotação diferente. A tristeza, no original algo indefinível que aos poucos impregna uma mente ou uma sensibilidade, passa a ser algo que “se apodera”, conquista, arrebata, adquire poder... Não é a mesma coisa, em termos exigentemente tradutórios.

Mas olhe... nem é esse o problema. O problema, para Rachel, é quando ela, querendo reconstituir seus sentimentos de juventude, pegou de novo o livro de Sagan – só que agora em outra tradução inglesa, a de Heather Lloyd. E descobriu que este novo livro começava assim:

This strange new feeling of mine, obsessing me by its sweet languor, is such that I am reluctant to dignify it with the fine, solemn name of ‘sadness’.

Mais uma vez tento arremedar passo a passo a ordem sintática do original, o que nos dá mais ou menos:

Este meu novo e estranho sentimento, que me obceca com sua doce languidez, é tal que me deixa relutante em dignificá-lo com o nome delicado e solene de tristeza.

Rachel Cooke recuou diante dessa frase como se o livro a tivesse mordido, e comenta: “Ela soava aos meus ouvidos como se tivesse sido escrita por um robô”.

A comparação entre essas opções – no contexto de uma simples frase, embora uma frase de abertura, uma frase com altas reponsabilidades – mostra: 1) a dificuldade de encontrar um equivalente exato ao que foi dito, e sugerido, e implicado, e referido no original; e 2) a quantidade de soluções diferentíssimas a que diferentes tradutores podem chegar e geralmente chegam.

Uma matéria que peguei agora na web, da revista Exame, assim reproduz a frase numa tradução em português, sem citar o tradutor:

Sobre esta estranha sensação de que o tédio, a tranquilidade me obcecam, hesito em colocar o nome, o belo nome sério da tristeza. 

Data venia do nobre colega autor dessa tentativa, eu ainda ficaria com a minha que foi exemplificada acima, e que copio de novo:

Neste sentimento desconhecido cujo tédio e cuja doçura me inquietam, eu hesito em colocar o nome, o belo e grave nome de tristeza.

E para quem ficou curioso a respeito do caso de Gregory Rabassa traduzindo Garcia Márquez, vai aqui o arrazoado dele, extraído do seu livro de memórias If This Be Treason (New York: New Directions, 2005):

(...) Chegando a soledad, temos um caso de ambiguidade bem semelhante. (...)  A palavra em espanhol tem o sentido do seu cognato em inglês, mas também carrega em si algo de “loneliness”, e admite tanto os sentimentos negativos quanto os positivos associados à condição de estar sozinho. Preferi solitude porque é um termo mais abrangente, e porque contém em si o gérmen de loneliness, se levado até os limites, como Billie Holliday já demonstrou de forma tão eloquente.

Ele se refere à gravação de “Solitude”, que pode ser escutada aqui:


Meu comentário sobre isto é que “loneliness” é uma palavra muito focada no indivíduo, na sensação de estar sozinho no mundo, mas “solitude” é mais amplo, dá uma escala social, coletiva e até cósmica à condição de um povo que está sozinho no mundo porque “não tem quem puna por ele” e vai ter que se virar sozinho mesmo.

Rabassa comenta que no caso de Cem Anos de Solidão ele não seguiu seu método habitual de pegar o livro “do zero” e ler à medida que traduzia. Ele já havia lido o livro, sem saber que pouco tempo depois seria contratado para traduzi-lo; e talvez ao iniciar a tradução, e pensar no título, ele já tivesse em mente a escala majestosa de tempo, destino e fatalidade em que Garcia Márquez envolve, ao longo de toda a narrativa, seus personagens e sua cidade imaginária.

Sobre o livro de Rabassa, falei mais demoradamente aqui:


Ele traduziu também Clarice Lispector, e quando a conheceu pessoalmente num Congresso literário disse: “É aquele tipo raro de pessoa que parece com Marlene Dietrich e escreve como Virginia Woolf.” 










quarta-feira, 22 de novembro de 2017

4289) O que não fazer num livro para jovens (22.11.2017)



Assim como tem gente que muda o tom de voz quando vai falar com alguém mais novo (coisa que os “alguéns mais novos” em geral detestam, porque veem como sinal de falsidade), muitos escritores mudam o tom da escrita quando trabalham num livro dirigido a crianças, ou a esse leitor que modernamente vem sendo classificado como “jovem adulto” (“young adult”, na língua da matriz).

Esse tom paternalista na escrita pode se manifestar de várias maneiras, em duas direções básicas.

Na primeira, o autor sobe num pedestal e fala de cima para baixo com o leitor, como se quisesse reafirmar sua autoridade e sua hierarquia de mais velho: “Olha aqui, presta atenção, vou te explicar tudo...”

Na segunda, o autor resolve falar de igual para igual com o hipotético leitor-jovem, imitando o que ele considera serem os trejeitos verbais e mentais do seu público – mas o máximo que consegue é parecer um sujeito de 50 anos trajando bermudão e boné virado pra trás.

Vai daí, resolvi enumerar alguns exemplos.

O PATERNALISMO CONSTRANGEDOR
Se o seu leitor é jovem, não importa de que idade (suponho sempre um leitor já capaz de sentar sozinho com um texto e decifrá-lo em silêncio, sem ajuda) evite tratá-lo como se ele fosse meio burrinho. Não escreva algo como: “Naquela noite, os nossos heróis tiveram que dormir ao ar livre, embaixo da intempérie. Palavrinha difícil essa, não? Intempérie quer dizer tempo ruim, chuvoso.”

Esses comentários didáticos, piscando o olho para o público, têm a intenção de aumentar a cumplicidade e a proximidade entre o Autor e o Leitor, mas pra mim têm o efeito contrário. Acabam fazendo o Leitor achar que está sendo considerado burrinho, que não sabe o significado de uma palavra, e que o Autor é forçado a interromper a narrativa para passar a mão na cabecinha dele diante de toda a turma, como fazem alguns professores, e dizer: “Ora, ora, garotos, não riam do Fulaninho. Ele não sabia a palavra, mas agora entendeu, e não vai mais esquecer, não é, Fulaninho?”

Agora me diga qual é o leitor que gosta disso.

DESCRIÇÃO DE EMOÇÕES
Como o Autor adulto imagina que os jovens não percebem sutilezas emocionais, ele acha que a emoção deve ser descrita de forma caricatural. E a toda hora fica usando expressões como “com os olhos fuzilando de ódio”, “espumando de raiva”, “com o rosto contorcido de fúria”.

A descrição de emoções  passa por vários estágios. O primeiro estágio é o da descrição abstrata: “Ao ouvir isso, João ficou furioso”. É uma mera informação, sem nenhum indício concreto. Depois o escritor aprende que é melhor dar alguma pista; risca a frase anterior e escreve: “Ao ouvir isto, João teve um sobressalto, ficou com o rosto vermelho, ofegante, soltou um palavrão e deu um chute na cadeira mais próxima.”  Esta é uma maneira concreta (mesmo que rudimentar) de dizer que o cara “ficou furioso” sem recorrer ao adjetivo.

O problema é que todas essas descrições de segundo nível acabam se transformando em clichê. Há até mesmo autores que brincam o tempo todo com os próprios clichês, como Nelson Rodrigues, que vivia repetindo: “com o olho rútilo e o lábio trêmulo”.

Como, então, descrever as emoções dos personagens sem recorrer aos meros adjetivos, e aos clichês descritivos?  Não sei. Escrever é descobrir essas coisas.


DIÁLOGOS CARICATURAIS
Brigas em que as pessoas se insultam enquanto trocam socos! Isso é um defeito mais frequente dos quadrinhos do que nos livros, mas está presente nos dois.

Das brigas que já presenciei ao vivo, me ficou uma lembrança sonora de grunhidos, arquejos, um certo rugido de fundo de garganta, um ou outro palavrão truncado, mas diálogo mesmo teve muito pouco.

Quando você está engalfinhado com alguém, numa briga pra valer, não fica dizendo (como nos quadrinhos), “você agora vai ver uma coisa, seu verme maldito”, “não pense que tenho medo de você, grandão” ou o clássico “tome isto, isto e mais isto!”. E por incrível que pareça eu vejo brigas narradas assim até em livros para adultos.

Sou especialista em brigas? Nem de longe, nunca briguei com ninguém. Mas já vi muita briga a poucos metros de distância, e estou falando em briga séria, entre adultos doidos para arrebentar um ao outro de verdade, e tenho boa memória. Só quem briga pronunciando frases de efeito é o Batman.


LINGUAGEM AFETIVA ABESTADA
Usar diminutivos o tempo inteiro. Não sei se é preconceito, mas eu vejo muito isso em livros infantis com personagens femininas. A garota não tem um cachorro, tem um cachorrinho; ela não está lendo um livro, está lendo um livrinho; ao se recolher ela não vai dormir em sua cama, mas em sua caminha. Esse cacoete de linguagem afetiva fica irritante bem depressa.

E não é porque eu sou homem e velho; quem eu vejo se queixando disso são garotas que leem.


DECISÕES MORAIS
Os adultos pensam que vivem num mundo psicologicamente complexo e profundo, e que os jovens vivem num mundo psicologicamente simples e raso. Eu diria que frequentemente é o contrário. Adultos vivem num mundo onde, bem ou mal, já aprenderam a se comportar; os jovens estão aprendendo às custas de tentativas e erros, e aprendendo em público, à vista de todo mundo.

Cory Doctorow (revista Locus, julho de 2008) afirma:

Escrever para leitores jovens é algo entusiasmante. Um autor de livros para “jovens adultos” me disse: “A adolescência é uma série de decisões corajosas e irreversíveis.”

Num dia, você é alguém que nunca disse uma mentira com consequências graves; no dia seguinte, você acabou de fazê-lo, e nunca mais vai poder voltar atrás. Num dia, você é alguém que nunca teve uma atitude nobre para ajudar um amigo; no dia seguinte você o fez, e isso também não pode ser desfeito.

É de estranhar que os jovens experimentem suas amizades de maneira tão intensa quanto companheiros de campo de batalha? É de estranhar que as partes do nosso cérebro que governam a avaliação do perigo não estejam plenamente desenvolvidas até a idade adulta? Quem correria riscos tão corajosamente, quem enfrentaria tais dilemas existenciais, se tivesse um sistema de avaliação de riscos maduro, e em pleno funcionamento?

Os jovens vivem num mundo que se caracteriza por uma dramaticidade intensa. Isso é o sonho de um autor criador de enredos. Quando você percebe que seus personagens vivem nesse estado de consequências cruciais, cada virada do enredo adquire um impulso e uma importância que fazem o leitor não parar de virar as páginas.

Escreveremos melhor, para os jovens, se compreendermos que eles vivem a fase mais cheia de riscos da vida inteira, quando tudo que tem importância crucial está acontecendo pela primeira vez. E talvez o que aconteça nessa vez determine tudo o que virá depois.








domingo, 19 de novembro de 2017

4288) "Sgt. Pepper's", 50 anos (19.11.2017)



Pois é, rapaz. Tenho trabalhado tanto que passei batido na comemoração dos 50 anos do disco Sgt. Pepper’s dos Beatles. Parece-que-foi-ontem que eu entrei na velha casa de Seu Armando e D. Djanira, em frente à Rodoviária velha de Campina, e Jakson Agra, com a compunção de um Papa lavando os pés de um mendigo na Semana Santa, me estendeu aquela preciosidade, deixando-me perplexo pro resto da vida.

Que povo todo era aquele? E os Beatles, de bigode? Vestidos de filarmônica antiquada? As letras impressas no verso do elepê?!

Esse capítulo das letras é histórico, porque até então a gente dependia, para cantar as músicas dos Beatles, de revistinhas como Só Sucessos ou Vamos Cantar, nas quais confiávamos como um democrata confia na Constituição Federal. 

Ainda hoje canto músicas de um jeito errado porque decorei, por falta de opção, os monstrengos dadaístas que aquelas revistinhas tiradas-de-ouvido atribuíam aos rapazes, letras que deixariam três deles mortificados e Lennon, possivelmente, cofiando o bigode e pensando em mais um livrinho de poemas nonsense.

Enfim – o Netflix está oferecendo o documentário It Was Fifty Years Ago Today, dirigido por Alan Parker, cheio de entrevistas em que contemporâneos e amigos dos Beatles falam sobre a efeméride.

São figuras com conhecimento dos fatos em primeira mão, como o biógrafo Philip Norman (autor da excelente biografia Shout!), Bill Harry (autor da indispensável Beatles Encyclopedia), Julia Baird (irmã de Lennon) e vários outros.

Eles falam, sem muita informação nova, sobre os assuntos da época: a celeuma do “somos mais famosos do que Jesus Cristo”, a homossexualidade e as depressões de Brian Epstein, a encheção de saco da banda com as turnês, a breve filiação ao guru Maharishi (que nem os conhecia, sabia apenas que eram celebridades ricas).

Bem, são cinquenta anos, e eu não sou um fã dos Beatles, sou um mero admirador à distância. Anotei algumas coisas que eu não sabia, e peço aos verdadeiros fãs que me poupem cartas dizendo que TODO MUNDO já sabia esses detalhes.

Philip Norman é o autor de Shout!, o melhor relato das trapalhadas financeiras e contratuais em que Epstein e os Beatles se meteram por inexperiência, o que fez com que, mesmo milionários, eles tivessem ganho apenas uma fração do dinheiro que produziam.

Ele lembra que o pai de Paul, Jim McCartney, tinha uma banda de jazz chamada de “Jim Mac Jazz Band”, e mostra a foto de um grupo de pessoas em torno de um bombo de fanfarra, que pode ter sugerido ao filho, anos depois, o layout da capa do disco mais famoso.



Barbara O’Donnell, ex-secretária da Apple Records, lembra que durante a gravação do disco George lhe trazia as letras das canções assim que ficavam prontas, para que ela as datilografasse e as letras pudessem ser distribuídas para quem precisasse delas. “E os manuscritos originais,” diz ela, “foram todos para a lata de lixo, só ficaram as versões copiadas à máquina... ah, se eu soubesse!”.

O que é uma pena, e torna ainda mais meritório o trabalho do próprio George Harrison. A coisa mais interessante do seu volume de memórias I Me Mine (New York: Simon and Schuster, 1980) é a reprodução em fac-símile dos manuscritos de 83 letras de canções suas, nos mais variados tipos de papel. George era um “guardador” emérito: de “Within You, Without You”, sua única colaboração no disco, escapou apenas um pedaço, com fragmentos das duas primeiras estrofes.



O biógrafo Hunter Davies diz que estranhou não haver nenhum jogador de futebol na capa do disco, e só então constatou que nenhum dos Beatles era fã de futebol. Ele pressionou um pouquinho, e Lennon escolheu Albert Stubbins, um artilheiro do Liverpool durante a década de 1940. Mas não por isso, e sim porque achava o nome dele engraçado. (Ele é o cara sorridente por trás de Marlene Dietrich, na capa do disco.)


Bill Harry menciona que eles queriam ter posto na capa do disco um quadro de Magritte, de quem Lennon era fã, onde aparece uma maçã verde, mas por alguma razão não foi possível. (Não fica claro qual era o quadro, se era “La Chambre d’Écoute”, “Le Fils de l’Homme” ou outro.) A maçã verde de Magritte acabou sendo usada depois como o símbolo da Apple Records.


(La Chambre d'Écoute)


(Le Fils de l'Homme)

Outra entrevista interessante é a de Pete Best, o baterista que foi substituído por Ringo Starr. Esse músico teria todos os motivos para ser um cara amargurado, mas vi umas duas ou três entrevistas de TV que Geneton Moraes Neto fez com ele em diferentes décadas, e ele sempre me soou um cara tranquilo consigo mesmo. Ele assimilou o fato de não ter se tornado um Beatle.

No filme Best fala que seu avô serviu na Índia e tinha várias condecorações militares que a mãe dele mostrava a John, Paul e George, quando Pete tocava na banda. Quando a capa do disco estava sendo preparada, Lennon achou que as medalhas iriam combinar com as túnicas militares usadas pelos Beatles e mandou pedi-las emprestadas. A mãe de Best as enviou, mas disse (em tradução paraibana); “Tem dois V: vai e volta.” As medalhas estão lá, usadas pelos Beatles; e foram devolvidas à família. Pode ter sido um mero capricho figurinístico, mas também uma maneira delicada de dar um alô ao antigo companheiro.



É interessante a discussão entre McCartney e um jornalista de televisão sobre o LSD, que Paul afirma ter tomado pelo menos quatro vezes. O jornalista pergunta se ele não acha que, como figura pública, está incentivando outros a usarem a droga. E Paul responde:

– Olha, por mim eu nem falava nisso. É uma questão minha, pessoal. Quem está perguntando é você, e eu prefiro sempre falar a verdade. Se você acha que o que eu digo pode prejudicar a juventude, então não divulgue minha resposta. 

Não é de hoje, 2017, que a imprensa gosta de fazer perguntas indiscretas e depois punir os entrevistados por darem respostas sinceras.

Outro episódio pitoresco que mostra bem o temperamento comedido e racional de Harrison. Quando foram a Bangor seguindo o Maharishi, os Beatles, sem nenhum assessor, apenas com o biógrafo Davies, foram a um restaurante e no fim NINGUÉM tinha dinheiro nos bolsos para pagar a conta. Os Beatles não pegavam numa nota de libra há anos – havia sempre alguém com eles encarregado de saldar as despesas.

Houve um momento de tensão, e então George pôs o pé em cima da mesa do restaurante, pegou uma faca, abriu o solado da sandália oriental que estava usando... e produziu uma nota de 20 libras. E disse: “A gente nunca leva dinheiro, e eu sempre achei que algo assim ia acabar acontecendo”.

No final, Simon Napier-Bell dá um conselho interessante: ouçam o disco em mono, não em estéreo. Durante a mixagem final os Beatles não estavam em Londres, estavam na Índia, e todas as decisões finais que tomaram em conjunto sobre o som foi a partir de amostras em mono que eram enviadas para eles.

O último comentário relevante sobre o disco em si é de Ray Connolly: se os Beatles tivessem incluído “Penny Lane” e “Strawberry Fields Forever” no disco, ele seria o melhor de todos os tempos. Essas duas músicas foram gravadas entre novembro e dezembro de 1966, e lançadas em “compacto simples” em fevereiro de 1967, quatro meses antes do álbum. Em vez de treze faixas, o disco poderia ter quinze, com a adição de duas canções peso-pesado. E a história seria outra.









quarta-feira, 15 de novembro de 2017

4287) Sagarana: "Corpo fechado" (15.11.2017)




(ilustração: Poty)

É um dos contos de Rosa em que aparece com mais nitidez a figura do narrador urbano, “gente de cidade e gravata”, no meio dos capiaus. Esse narrador surge em alguns contos do livro Sagarana (1946) e depois vai se diluindo um pouco.

Em Grande Sertão: Veredas (1956), aparece sublimado, metalinguístico, distanciado, como o interlocutor invisível do verdadeiro narrador, Riobaldo.

Em “Corpo Fechado”, antepenúltimo conto de Sagarana, esse “Doutor” dialoga o tempo inteiro com o protagonista Manuel Fulô. Pergunta, estimula, provoca, pede detalhes. Talvez seja neste sentido o conto mais autobiográfico, o que melhor confirma o papel de perguntador de JGR quando na companhia dos seus vaqueiros e capiaus. Ele diz:

Pois foi nesse tempo calamitoso que eu vim para Laginha, de morada, e fui tomando de tudo a devida nota.

Assim como o Grande Sertão é a história de Riobaldo contada ao “autor”, “Corpo Fechado” é a história de Manuel Fulô, um tipo pitoresco e meio picaresco, metade ingênuo, metade esperto, que no clímax do conto tem que enfrentar um perigoso valentão local e para isso se submete a um ritual de feitiçaria protetora.

Neste conto, não enxerguei muito a recorrência do tema da “ida e volta”, que está presente na maioria dos contos de Sagarana. Existe, em vez disto, um aspecto estrutural dos mais divertidos: é uma história que começa mais de uma vez. Tem três “idas” sucessivas, a cada fato importante que sucede.

Na edição que tenho (a 10ª.), o conto tem 28 páginas de texto, e principia com Manuel Fulô fazendo para o Doutor (que narra na 1ª. pessoa) um censo dos valentões de Laginha.Vai, vai, vai, com comentários, e na décima página surge isto:

Ora, pois, um dia, um meio-dia de mormaço e modorra, gritaram “Ó de casa!” e eu gritei “Ó de fora!”, e aí foi que a história começou.

O leitor se diverte com tal informalidade narrativa. Esse trecho anuncia que as engrenagens do enredo se põem em movimento com o aparecimento de Das Dôr, a futura noiva de Manuel Fulô e futuro pivô da tragédia. Só que Manuel consome em seguida um longo trecho preparatório explicando ao Doutor de que modo maquilou e vendeu dois cavalos doentes a um grupo de ciganos, e outras peripécias.

E aí, na página 22 do conto, diz-se:

Até que assomou à porta da venda – feio como um defunto vivo, gasturento como faca em nervo, esfriante como um sapo – Sua Excelência o Valentão dos Valentões, Targino e Tal. E foi então que de fato a história começou.

Esse segundo começo é um degrau acima na trama, porque Targino, o terror da vila, vem comunicar a Manuel sua intenção de, antes do casamento, passar uma noite com Das Dôr, exercendo uma espécie de “direito à primeira noite” da tradição feudal. É a crise que desaba, raio em céu azul, infelicitando o pobre do Manuel.

O Doutor se comove com o pavor de Manuel Fulô, porque o Targino “é cobra que pisca olho”: manda e desmanda no lugar, e (diz o Doutor, com seu linguajar urbano-boxístico) “o challenger não aparecia”.

O impasse está feito, raia o dia prometido para o cumprimento da ameaça. O Doutor vai se consultar com o Coronel local, também medroso, que pilaticamente lava as mãos do caso. Vai se consultar com o Vigário:

Então, fui ao Vigário. O reverendo olhou para cima, com um jeito de virgem nua rojada à arena, e prometeu rezar; o que não recusei, porque: dinheiro, carinho e reza, nunca se despreza.

Eis senão quando, na página 26, o narrador diz:

Mas, de fato, cartas dadas, a história começa mesmo é aqui.

E esse decisivo “terceiro começo” se dá com a vinda de “Antonico das Pedras ou Antonico das Águas”, pedreiro local que “tinha alma de pajé” e propõe um acordo a Manuel Fulô: faria um ritual propiciatório destinado a “fechar o corpo” de Manuel, em troca da “Beija Fulô”, a besta ruana que era a menina dos olhos do capiau. Parece um preço barato, mas a besta e a noiva quase se equiparam aos olhos dele:

– Oh, Manuel! Você gosta mais é da Das Dôr ou da Beija Fulô?
– Me desculpe, seu doutor, mas isto é pergunta que se faça? Gosto das duas por igual, mas primeiro da Das Dôr!...

Não creio que esteja exagerando quando digo que a cena culminante lembra e prenuncia o filme Matar ou Morrer (“High Noon”, 1952, Fred Zinnemann), ou pelo menos qualquer outro dos faroestes que Rosa apreciava:

O Targino já aparecera lá adiante. Vinha lento, mas com passadas largas. E de certo se admirou de ver Manuel Fulô caminhar. Naquela hora, a rua, ancha e comprida, só estava cabendo os dois. E eu pensei no trem-de-ferro colhendo e triturando um bezerro, na passagem de um corte.

Não darei spoiler do final.

“Corpo Fechado” vem no livro logo depois de “São Marcos” e é, como esta, uma história de feitiçaria. Parece ter crescido de dentro da outra, processo criativo que não era estranho ao autor. “Meu Tio, o Iauaretê” (1961) cresceu (ao que se diz) de dentro do Grande Sertão: Veredas, que por sua vez parece ter sido pensado como uma das novelas de Corpo de Baile (1956) e foi se expandindo até ganhar casa própria.

Rosa faz um jogo de simetria entre o amor pela besta ruana e o amor pela noiva; faz outro entre a magia de fechar-corpo e o fato de que Manuel Fulô acredita ser filho natural de Nhô Peixoto, o maior negociante do arraial, e isto de certa forma é uma magia heroicizante de outra natureza.

Picaresca, divertida, verossimilmente improvável, a história repete os triângulos amorosos de outros contos do livro, perpassados de comicidade e tragédia. E, ao dar destaque ao tema dos valentões arruaceiros, prepara o terreno para o clímax de “Augusto Matraga”.

E é cheia dos achados verbais do autor. Imagino os leitores de 1946 ouvindo-o dizer que Manuel e a besta ruana “juntos, centaurizavam gloriosamente”, e que a noite silenciosa do arraial tinha “grilos finfininhos e bezerros fonfonando”. Ou esse diálogo-parlenda, muito semelhante aos que praticávamos na Paraíba:

– Não, porque...
– Porque-isquê!
– A minha...
– Que-inha?
– Cala a boca!
– Que oca?

Quando o valentão chega no arraial, “o povo se mexeu, como água em assoalho”. E ninguém deixa de sorrir como linguajar de Manuel Fulô, para quem “a cacunda do bobo é o poleiro do esperto”, ou “até hoje eu gosto mais de me alembrar disso do que de comer doce” ou o brabo Adejalma tem um “nome bobo, que nem é de santo...”








domingo, 12 de novembro de 2017

4286) O miniconto (12.11.2017)



Que tamanho deve ter um conto?   Os critérios editoriais definem a extensão de um texto pelo número de palavras. (Como ponto de referência, este artigo tem exatamente 979 palavras).

O mercado literário norte-americano, mais industrializado e preciso do que o nosso, define quatro faixas de extensão:

Conto (“short story”), até 7.500 palavras
Noveleta (“novelette”), entre 7.500 e 17.500 palavras
Novela (“novella”), entre 17.500 e 40 mil palavras
Romance (“novel”), de 40 mil palavras em diante

Dica: não tentem achar uma equivalência entre os termos ingleses e os termos cognatos em português (novela, romance). Usamos palavras parecidas para falar de coisas diferentes.

Edgar Allan Poe definiu o conto, de maneira pragmática e intuitiva, como uma "narrativa curta, cuja leitura atenta requer de meia-hora a uma ou duas horas." 

Poe tinha em vista o que ele chamava de unidade de efeito.  O conto deveria ser curto para não ser interrompido.  Deveria ser uma experiência mental única, contínua, do começo até o fim, para que não se diluíssem as tensões, e o desfecho tivesse toda a carga emocional preparada pelo autor. 

Curiosamente, a duração que ele preconizava para o conto é aproximadamente a que tem um filme de longa-metragem no cinema comercial.  E qualquer espectador de cinema mais exigente sabe que a experiência de ver um filme na TV “quebra o efeito”, por causa dos intervalos comerciais.  Tanto um conto quanto um filme devem ser, idealmente, uma experiência mental ininterrupta.

Isto se torna mais fácil quando praticamos o que chamamos de “miniconto” (“short-short story”).  Para este não há um limite específico, mas em geral podemos considerar como minicontos aqueles de duas páginas ou menos.  Algumas experiências vão mais além.  Revistas literárias de língua inglesa promovem de vez em quando concursos para contos com apenas seis palavras.  O modelo para isto é um texto famoso atribuído a Ernest Hemingway, que diz: "For sale: baby shoes, never worn" (“Vende-se: sapatos de bebê, sem uso”).  Há toda uma história de tragédia familiar por trás deste minitexto. 

O miniconto procura sugerir, já que não pode descrever ou narrar muita coisa.  Em oficinas literárias ou de roteiro, vez por outra os alunos recebem esta tarefa: “Conte sua história em uma frase. Depois, em dez linhas. Depois, em trinta linhas; depois em 200 linhas”. 

Quem for capaz de manter a precisão e a coerência ao longo destas etapas provavelmente será capaz de escrever um roteiro de 120 páginas.  

A concisão é uma virtude em declínio nesta época do mundo eletrônico e seu espaço aparentemente sem limites.  Antigamente, escrevíamos pensando no número de toques por linha (eram 70) e no número de linhas por lauda (eram 30).  Compactar qualquer história em seis palavras nos traz de volta um pouco dessa antiga disciplina.

A revista Wired promoveu certa vez um concurso de contos fantásticos e de ficção científica em seis palavras.  Uma tarefa difícil, uma vez que é preciso sugerir, além de uma história, uma ambientação com a qual o leitor, a princípio, não tem familiaridade.  Mesmo assim, houve tentativas bem sucedidas.  Como esta, de Eileen Gunn: “Computador?  Trouxemos baterias?  Alô!  Computador?  Computador?…”  Não precisa mais nada para imaginarmos uma nave silenciosamente à deriva no espaço, cheia de astronautas congelados. 

Gregory Maguire propôs: “Nos arranha-céus calcinados, homens criaram asas”.  É um cenário pós-catástrofe, que lembra os quadrinhos de super-heróis.  Viagens no tempo são um caminho interessante para estas narrativas super-rápidas.  Harry Harrison propõe esta hipótese: “MÁQUINA CHEGA AO FUTURO.  Ninguém lá...”  Um recurso mais operacional, meio clichê dentro do gênero, mas eficaz nas curtas dimensões do miniconto, é a historieta de Alan Moore: “Tempo. Sem querer, inventei máquina do.”  E tem a humorística hipótese de David Brin: “Dinossauros retornam.  Querem petróleo de volta”.

O interessante nestas experiências é o fato de que o autor conta com a imaginação do leitor, sua capacidade de recorrer a um banco-de-dados comum para preencher as lacunas, as partes não explicadas (não dá para explicar muito em seis palavras). 

As seis palavras funcionam como um cartum, criando uma unidade de sentido que se percebe de um só relance, sem precisar ficar esmiuçando “comos” e “por quês”.  São como um título de livro ou uma manchete de jornal: exigem que a gente seja capaz de “já saber” e também de imaginar.

Outra publicação, a revista online Smith, lançou para seus leitores um desafio parecido: contar em seis palavras a própria vida.  As respostas foram muitas e variadas.  O quesito verossimilhança ficou um pouco fora de questão, pois os editores não poderiam checar se o que cada colaborador afirmava de si próprio era verdade ou não – mas isto é o que menos importa.  Algumas sínteses foram cronológicas e bem-humoradas, como a de Dick Hadfield: “Feto, filho, irmão, marido, pai, vegetal”.  Outras foram visualmente eficazes: “Cabeça entre livros, pés sobre flores” (Heather Thomson).  Outras foram pessimistas até a medula, como a auto-avaliação de Patsy Wheatcroft: “Época errada.  Classe errada.  Sexo errado”.   Outras otimistas, como a de Peter Elvish: “Companheira fiel, amor, risadas... e agora?” 

Tem uma que dá um calafrio incômodo: “Quatro casamentos, três filhos, depois câncer” (Gillian Johnson).   E outra com um sabor de volta-por-cima: “Atropelada duas vezes, felizmente ainda viva” (Trudi Evans).  Steve MacMullen impressiona pela sobriedade e ausência de ambição: “Desposei namorada de infância.  Filhos. Contente”.

Na verdade não se trata de esperar dos colaboradores uma pequena façanha literária, apenas um poder de síntese satisfatório.  Um tal de Patric se resume: “Nasci londrino, vivi fora, morri dentro” (no original: “Born London, lived elsewhere, died inside”).  Jane Kirk demonstra bom humor: “Príncipe no cavalo branco nunca apareceu”.  

O desabusado C. North afirma: “Nenhuma nota dez, mas virei milionário”.   O esperançoso Sunny Tailor pergunta: “Alguma chance de começar de novo?”  E John Ball confessa com resignação: “Trabalhei toda vida, ainda pago impostos”.    E Alexandra Lackey diz: “Nada de romance tipo Jane Austen”

Mas há um grande romance latente em cada meia-dúzia de palavras, desde que bem escolhidas.




(Uma versão diferente deste artigo foi publicada na revista Língua Portuguesa, da Editora Segmento, São Paulo, em julho de 2009)





quinta-feira, 9 de novembro de 2017

4285) "Incrível! Fantástico! Extraordinário!" (9.11.2017)





Falei algum tempo atrás neste blog sobre a figura de Almirante (Henrique Foreis Domingues), radialista, cantor, compositor, um desses personagens fundamentais na história da música popular e do rádio no Brasil.


Almirante criou programas de variedades escutados pelo Brasil todo. Colecionava informações sobre cultura popular, cultura oral, folclore, histórias, crendices, costumes, superstições. Seu arquivo pessoal acabou se transformando no Museu da Imagem e do Som, no Rio.

Incrível! Fantástico! Extraordinário! era um programa radiofônico com histórias verdadeiras de assombração. Quando eu era pequeno, meus pais tinham esse livro das Edições O Cruzeiro, com um longo prefácio falando da importância dos contos de fantasmas, e uma série de “relatos autênticos” que foram dramatizados no programa.


No começo eu tinha medo até de tocar nesse livro. Quando estava em cima de um móvel e eu precisava mexer nele por alguma razão, eu pegava qualquer objeto comprido (uma régua, um cabo de espanador) e o empurrava. Pra não tocar.

Depois cresci, perdi o medo e li o livro todo. Minha história preferida era “A Companheira Macabra”, história de um cara (talvez um estudante de Medicina) que pega uma caveira humana de verdade e a leva de bar em bar, bebendo e dando bebida à caveira. Depois ele encontra uma mulher linda e misteriosa que começa a fazer-lhe companhia. E por aí vai.

Quando vim morar no Rio, encontrei essa primeira edição na Biblioteca Nacional.

E depois, em 1989, a Editora Francisco Alves compilou um segundo volume dos casos relatados por Almirante, com prefácio de Sérgio Cabral. É este exemplar o que tenho comigo hoje.



Os casos eram enviados pelos ouvintes, no Brasil inteiro. Histórias no perfil tradicional do conto de fantasma brasileiro. Uma pessoa que é vista depois de morta, ou no instante em que está morrendo bem longe dali. Pessoas que prometem “fazer uma visita”, morrem, mas vêm cumprir a promessa. E assim por diante.

Como escritor, essas histórias não me interessam, porque a mecânica é sempre a mesma: alguém vê a “alma” de uma pessoa que já morreu, e geralmente isso acontece para “dar uma lição de moral” aos vivos.

Alguns contos, no entanto, têm leves variantes que poderiam servir como ponto de partida para um argumento de ficção.

Como em “Fenômeno de Levitação”, ocorrido em 1949 na estrada Rio-Petrópolis. Um casal se hospeda com a filha pequena, Fanny, para pernoitar à beira da estrada. De noite, dão por falta da menina. Dão o alarma. Vem polícia, vem bombeiro, mais de 100 pessoas buscando a criança sumida. E o autor conclui:

A verdade é que minha querida Fanny, às quatro e meia da manhã do dia 27 de julho daquele ano de 1949, foi encontrada lá embaixo no fundo de um despenhadeiro de uns 80 metros, a mais de 200 metros da casa! Lá estava ela, num ponto dificílimo de ser alcançado, calmamente, sentada, sem um arranhão, sem um ferimento, tão sossegada como se estivesse em sua caminha...

Gosto quando a “vingança” do defunto se dá por outros meios. Em “O Retrato” (caso de 1944), duas irmãs, Elvira e Leonor, eram brigadas; odiavam-se, e não se falavam mais. Leonor morre e anos depois Elvira encontra o ex-cunhado, que lhe pede uma foto da falecida. Elvira vai buscar e percebe que a foto está intacta, mas Leonor não aparece mais nela. Foi apagada.  E conclui:

Seu ódio é tão forte que nem quis deixar com a irmã uma lembrança do que fora em vida.

Dramaturgicamente, o clichê do “fantasma que aparece” poderia ser substituído com vantagem pelo “fantasma que faz desaparecer as coisas relacionadas com a sua vida na Terra”.

Gente morta que aparece a gente viva me parece pouco interessante. Mais intrigantes são mistérios que ocorrem sem nenhuma morte envolvida, como em “A Irmã Ausente”, um caso de 1914 na Bahia.

Um casal tem cinco filhas e, por problemas de saúde, precisa deixar três delas passando um tempo em casa de parentes distantes. Um dia, “M.”, uma das duas crianças que ficaram, afirma que uma das irmãs ausentes, “Si”, apesar de distante apareceu de repente na casa, e ao vê-la assustou-se.

Dias depois a mãe fala com a família onde “Si” estava hospedada e ouve o relato assustado:

Então foi um caso de telepatia, de transmissão de pensamento, pois ontem à noite a Si deitou-se naquele sofá e adormeceu. De repente, ela deu um pulo e acordou toda espantada. Perguntei o que houve, se ela estava com alguma dor e ela respondeu que não, que estava sonhando com a M. E que, quando a irmã chegou perto dela, assustou-se e acordou...

Pode ser telepatia mas pode ser também uma dessas dobras do espaço-tempo em que por uma fração de segundo dois pontos distantes se tocam (como quando vamos dobrar um lençol, pegamos duas quinas distantes e as juntamos uma com ao outra).

As histórias de assombração mais interessantes são as que não têm lição moral, nem exemplo humano, nem valor afetivo, nem catarse emocional. São simplesmente inexplicáveis, como o caminhão carregado de latões (que balançam sem fazer barulho) e sem ninguém ao volante, que repetidamente ultrapassa outro veículo numa estrada deserta à noite (“O Caminhão Fantasma”, 1952) ou o caminhoneiro que ao chegar perto de uma ponte resolve parar no acostamento para tirar um cochilo, desliga o motor, apaga os faróis... e acorda quatro horas depois, mais de 20 km à frente, com o carro ainda desligado (“A Ponte Sinistra”, 1949).

A história de terror tem geralmente o viés, o cacoete, a mania de ser um conto moral, quando poderia ser uma investigação dos bugs, dos “glitches”, dos maus-funcionamentos das leis do Universo; dos erros da Matrix.










segunda-feira, 6 de novembro de 2017

4284) O autor e a palavra (6.11.2017)




O saite Literary Hub fez um teste com seus leitores, via Twitter. A idéia lançada era: Existe alguma palavra do idioma inglês que, assim que a vemos, lembra de imediato um autor?

O autor da matéria, Kaveh Akbar, argumenta que não pode ouvir a palavra “purple” (=roxo) sem lembrar de Prince, por causa da canção “Purple Rain”.

A questão lançada tem uma certa sutileza, porque ele não está perguntando palavras inventadas por autores, o que seria muito mais fácil. “Jabberwocky” é uma palavra inventada por Lewis Carroll, “cyberspace” foi inventada por William Gibson, “riverrun” por James Joyce e assim por diante.

O que ele pergunta é o caso de palavras que já eram termos comuns da língia inglesa, mas que foram usadas de forma tão marcante por um autor que acabaram se associando a ele.

Os leitores trouxeram twitters com muitas sugestões, a maioria de autores que desconheço, mas tem alguns que não há como negar.

Quem pode negar, por exemplo, que “Howl” ficou para sempre associada ao famoso poema de Allen Ginsberg? O substantivo uivo e o verbo uivar continuam aparecendo normalmente em um milhão de textos, mas é como se grudado a eles viessem sempre, como um balão de gás amarrado no parachoque de um carro, a barba e os óculos do poeta beat do Greenwich Village.

Ele dá exemplos recentes: “handmaid” (=aia, criada) ficou associado a Margaret Atwood depois do romance/série de TV The Handmaid’s Tale.

Alguém lembrou que mesmo uma coisa de uso prático como a escala Fahrenheit passou a lembrar Ray Bradbury por causa do romance Fahrenheit 451 – a tal ponto que Michael Moore intitulou um documentário seu Fahrenheit 11/9, em alusão ao mundo de Bradbury, não ao da medição térmica.

O saite lembra que a palavra “tyger” ficou associada a William Blake pelo seu famoso poema “Tyger, tyger, burning bright / in the forest of the night...” Com o detalhe de que isso só ocorre na forma arcaica da grafia, com “Y”.

Também na lista aparecem “flâneur” (a cara de Charles Baudelaire), “inferno” (a cara de Dante – note-se que o uso corriqueiro em inglês é de “hell”, sendo “inferno” uma palavra de cunho latino usada em casos excepcionais), “solitude” (a cara de Garcia Márquez, e o tradutor Gregory Rabassa já explicou por que preferiu este termo a “loneliness”).

De minha parte, nunca deixou de me espantar o título do famoso conto de Edgar Allan Poe sobre a carta furtada: “The Purloined Letter”. Em décadas de leituras em inglês não me lembro de ter visto esse verbo, “to purloin”, usado por quem quer que fosse. É como se Poe o tivesse inventado.

E em português?

A primeira palavra-pregada-a-um-autor que me ocorre é a inevitável “nonada”, que já era corrente no idioma mas Guimarães Rosa tornou inequivocamente sua.

Igualmente corrente era a palavra “armorial”, mas como substantivo (“livro ou códice onde se reúnem reproduções de brasões e armas heráldicas”). Neste sentido, existe até em inglês (vejo de vez em quando em livros por aí). Ariano Suassuna deu-lhe cunho de adjetivo e tornou-se indissociável dele.

A palavra “banguê” pode ser de uso corrente na zona canavieira, mas no caso de leitores de qualquer outra parte a sensação que temos é de que foi José Lins do Rego que a inventou no título de um livro famoso. O mesmo argumento pode valer para “bagaceira” e José Américo de Almeida.

São palavras meio raras, e essa raridade torna mais fácil a sua anexação a um uso famoso. Porque palavras mais comuns, como “pedra” poderiam ser associadas por leitores diferentes a Drummond, a João Cabral, ao próprio Ariano... Palavras a que diferentes autores deram usos marcantes em cada caso, e que acabaram não se fixando em nenhum deles.

Vale para nomes próprios, também, nomes de lugares que já existiam antes de um autor se apossar para sempre do seu topônimo. Eu, por exemplo, sempre pensei que “Pasárgada” fosse uma invenção de Manuel Bandeira, mesmo tendo visto repetidas declarações dele de que colheu o nome dos livros de História.


Fico imaginando se para outros leitores as palavras “veranico”, “amanuense”, “bugre”, “catavento”, “escarro”, “senzala”, têm para todos os leitores as mesmas referências literárias imediatas que têm para mim.