sábado, 19 de outubro de 2019

4514) A Canção Fantástica: "Downbound Train" (19.10.2019)




Falamos o tempo todo em “literatura fantástica”, mas é sempre no domínio da prosa: romance, conto, novela. Os temas fantásticos, contudo, estão presentes onde quer que haja a Narrativa, e isso inclui também a poesia. Nem vou falar em outros gêneros. Lembro apenas que na Encyclopedia of Fantasy editada por John Clute o verbete mais longo é o que se refere a “Ópera”, indo da página 709 à página 733.

Uma canção excelente mas pouco comentada do repertório de Chuck Berry é “Downbound Train” gravada em 1955, o ano em que Berry começou a trabalhar com a famosa Chess Records, gravadora que deu um impulso enorme ao blues e ao rock dos anos 1950, e lançada no começo de 1956. A canção era o lado B do compacto que tinha como faixa principal “No Money Down”.

“Downbound Train” é uma daquelas histórias de terror a respeito de um indivíduo bêbado e desordeiro que um dia tem uma visão terrificante dos castigos do inferno, e graças a isso se regenera. Um exemplo conhecido é “Cavaleiros no Céu” (“Ghost Riders in the Sky”, com versão gravada no Brasil por Carlos Gonzaga, Milton Nascimento e outros: “Vaqueiro do Arizona, desordeiro e beberrão... / Seguia em seu cavalo pela noite do sertão... Ipiaê, ipiaô...”

“Downbound Train” é uma variante de um poema anônimo tradicional, “The Hell Bound Train”, e há várias gravações desse material, com mudanças no título, na letra e na melodia, como aliás é típico de todo material que tem origem na cultura oral e anônima, de domínio público.

A gravação de Chuck Berry procura reproduzir o ritmo contínuo e repetitivo de um trem em movimento, efeito que cada artista busca recriar no palco com a instrumentação que dispõe. Guitarra, baixo e percussão criam uma batida hipnótica, constante, muito diferente do rock-and-roll nascente da época em que surgiu.

Muito se fala nas letras modernas e inovadoras de Chuck Berry, com sua crônica social bem humorada e irreverente. Deve-se reconhecer também que sua maneira de tocar guitarra e as “levadas” que ele concebia com seus músicos davam a cada álbum seu uma variedade musical muito superior à de qualquer contemporâneo, e que só os Beatles foram capazes de superar.

A letra é composta de estrofes de quatro versos com aproximadamente doze sílabas, cada quadra rimando AABB. Abaixo, uma tradução aproximada, sem tentar reproduzir a métrica ou as rimas.


O TREM PARA O INFERNO

Um desconhecido estava caído no chão de um bar;
tinha bebido tanto que não aguentava mais.
E assim adormeceu, com a mente atormentada,
e sonhou que viajava num trem para o inferno.

A locomotiva estava coberta de sangue e umidade
e nela ardia uma lâmpada de enxofre;
duendes com pás alimentavam com ossos
a fornalha que rugia com mil gemidos.

A caldeira estava cheia de cerveja até a borda
e o Diabo em pessoa era o maquinista;
os passageiros eram uma multidão misturada
alguns eram forasteiros, outros ele conhecia.

Homens ricos, mendigos esfarrapados,
jovens bonitas, velhas feias como bruxas,
e o trem avançava a toda velocidade
fumaças de enxofre queimavam suas mãos e seus rostos.

Em volta deles se alargavam os campos
e cada vez mais veloz o trem avançava,
e mais alto e mais alto soava o trovão
e os relâmpagos ofuscavam com seu clarão.

E o ar ia ficando cada vez mais quente
até que suas roupas começaram a arder
e por sobre o ruído um grito se ergueu
ha ha, disse o diabo, estamos perto de casa.

Oh, os passageiros gritavam de dor
indo rumo a Satã no seu trem infernal;
e o desconhecido com um grito acordou
com a roupa encharcada, e os cabelos em pé.

Ele ficou de joelhos no chão do bar
e rezou como nunca rezara antes;
e suas preces e juras não foram em vão,
porque nunca mais viajou no trem para o inferno.


Esta é a versão da letra cantada por Chuck Berry, para mim a “original”, por ser a primeira que conheci. O tema do “trem para o inferno” é aberto para mil variantes, sempre com o conceito de um veículo cheio de pessoas aparentemente aleatórias, que entram nele pensando em fazer uma viagem comum, mas no meio do trajeto percebem que estão se encaminhando para um destino sobrenatural.

O filme recente dos Irmãos Coen, A Balada de Buster Scruggs, termina com um episódio que é uma versão sofisticada desse tema: uma diligência onde várias pessoas trocam reflexões sobre a vida e no final chegam num ambiente fantasmagórico.

A letra original da gravação de Chuck Berry:

A gravação de Berry, no disco original da Chess Records:

Uma boa versão da mesma música, com George Thorogood:

No videogame Red Dead Redemption, personagens cantam a letra gravada por Berry, mas com melodia tradicional:

A banda Those Poor Bastards canta aqui a letra cantada por Berry, com outra melodia:

A banda Delta Moon tem também uma versão diferente, com pontos de contato com a original: