segunda-feira, 12 de agosto de 2019

4493) A arte e o ruído (12.8.2019)




Uma definição possível (e incompleta) de arte seria: a reunião de um número reduzido de elementos capazes de fornecer a maior quantidade possível de informação. Um mínimo capaz de sugerir um máximo.

Lenore Coffe, uma roteirista de Hollywood dos anos 1920-30, dizia que um escrever era apenas colocar as palavras certas na ordem certa.

O que me lembra a “boutade” de Glauco Mattoso ao afirmar que todas as palavras da Ilíada e da Odisséia estavam no dicionário, só que em outra ordem.

Qualquer tentativa de descrição do que seja uma forma de arte nos conduz nessa direção de algo que, dos zilhões de estímulos com que o mundo nos bombardeia, escolhe um número mínimo deles, e com isso é capaz de produzir uma ressonância muito maior do que essa tempestade zilionária.

Isso me vem à mente escutando uma coisa indescritível que um internauta, Antoine Souchav, postou no YouTube.


Neste clipe, foram reunidas e superpostas as 555 sonatas para cravo compostas por Domenico Scarlatti. É uma massa sonora única, algo como uma avalanche onde em vez de neve há notas muscais, um paredão gigantesco delas derramando-se lentamente dentro dos nossos ouvidos, submergindo tudo.

É uma experiência semelhante à que vi há algum tempo – a de superpor todos os fotogramas de um filme gerando uma única imagem.

Uma “redução ao absurdo” só possível por se dispor da tecnologia digital, que simplifica, agiliza e barateia qualquer idéia maluca baseada no gigantismo quantitativo.

Juntar 555 sonatas num bloco musical simultâneo significa anular o efeito estético de cada uma, por completo.

Notas musicais só podem se superpor até um determinado ponto. Imagens, idem. Pixels, idem. Superpor esses elementos indefinidamente significa apenas produzir ruído, entropia, indiferenciação.

É uma experiência estética? Sem dúvida. Uma demonstração às avessas. “Agora vou mostrar como a música deixa de existir quando é amontoada sobre si mesma.”

Não é produção de efeito, nem produção de sentido: é potencialização de ruído, como uma microfonia amplificada.

Experiências semelhantes foram feitas com a obra de outros compositores. Aqui estão, por exemplo, postagens feitas por Remo De Vico:

Os 21 noturnos para piano de Chopin, superpostos:

Os 25 Caprichos para Violino Solo, de Paganini:

O resultado desses sons acumulados não nos dá propriamente uma experiência estética. Seu objetivo não é o mesmo objetivo que tinha Scarlatti (ou qualquer outro) ao compor uma peça musical.

Pode ser uma dessas brincadeiras que tantos internautas desocupados fazem por mero desfastio, e pode também ser uma experiência para-científica, uma tentativa de ir até o limite sensorial de uma experiência para ver até que ponto ela mantém seu conteúdo original, e a partir de que ponto começa a se deteriorar em entropia.

Não é a mesma coisa de experimentalismos que visam a produzir efeito estético, como a do sujeito que fez um anagrama de um romance – pegou todas as palavras de um livro (repetições inclusive) e, sem adicionar ou subtrair uma só, rearranjou todas até compor um livro diferente.

Veja aqui:

É nesse momento que alguém diria, coçando a cabeça: “Mas meu ilustre, afinal de contas, qual é o propósito dessa pirotecnia toda?”.

Eu diria que o propósito de toda arte experimental é justamente fazer algo sem saber no que vai dar, sem prever com clareza os resultados, e sem estar buscando consequências. Fazer por fazer, fazer for the sake of it como dizem os ingleses.

Daí que seja tão difícil, para o público e para uma parte da crítica, a convivência com a arte experimental. São pessoas acostumadas a conviver com uma arte de efeitos deliberados e de idéias esboçadas com um mínimo de clareza: a arte que tem um objetivo, um propósito, uma mensagem, um posicionamento no mínimo de natureza apenas estética – como têm a composição de um noturno para piano ou de um punk rock.

Podemos teorizar de maneira um tanto arbitrária que há dois tipos de artista: o que tem uma idéia e em seguida parte para sua realização, e o que começa a realizar sem saber o que vai resultar daquilo, e a idéia, quando existe, é formulada a posteriori.

É este o caso da arte experimental, sempre levando em conta os inúmeros casos em que a experiência não resulta em nada. O que aliás também se dá na arte mais convencional – quantos manuscritos de romances ou poemas, depois de prontos, não são jogados no lixo porque não resultaram em nada?

Mas existe um caminho meio arrepiante nisso tudo. Fico imaginando um futuro em que teremos inteligências artificiais desenvolvidas a ponto de necessitarem de experiências estéticas: computadores que, por um motivo qualquer, precisam ler histórias, ou ouvir música.

O protetor de tela, por exemplo, é uma “pequena arte” desenvolvida para o bem das telas dos nossos monitores. Para que, quando estiverem ociosos, a imagem fixa não acabe desgastando as pequenas células luminosas.

Talvez os computadores de próxima geração sejam tão complexos que não possam se dar o luxo de serem desligados – precisem ficar rodando permanentemente alguns programas, resolvendo problemas, programando efeitos...

Esses computadores podem refinar sua apreciação estética a ponto de considerar uma sofisticada iguaria a superposição de todas as faixas do Metallica ou a anagramatização recursiva, recorrente, de algum clássico como Os Sertões ou A Rosa do Povo. Porque não podem parar de pensar. Porque são inteligências artificiais e desconhecem a morte, a inconsciência.

As possibilidades, como sempre, são infinitas.