sexta-feira, 9 de agosto de 2024

5090) Os monstros a vapor (9.8.2024)




Quando eu tinha uns dez ou onze anos, Victor Hugo era um dos autores lidos lá em casa, por meu pai, minha mãe, minha irmã Clotilde e eu (os mais novos eram muito pequenos ainda). Eu era pequeno mas metido a esperto, e li tanto Os Miseráveis quanto O Corcunda de Notre-Dame. Entendia tudo?  Entendia todas as palavras, todas as idéias, todos os significados? Claro que não; mas conseguia acompanhar os acontecimentos, e captar alguma coisa dos dramas que aconteciam com aquelas pessoas. 
 
Nessa época aprendi uma lição fundamental como leitor: eu não preciso entender tudo que estou lendo, desde que possa continuar a leitura. Absorvo o que consigo entender. Depois cuido do resto. Nenhuma palavra desconhecida e nenhuma idéia adulta já tiveram o poder de me afastar de um livro. (Isto é exagero, claro. Ainda hoje tem uma porção de livros que eu simplesmente não compreendo, e vou ler outra coisa.) 
 
Hoje lembrei Os Homens do Mar (1866), numa edição do Clube do Livro. (Anos depois encontrei outra tradução, com o título Os Trabalhadores do Mar.) Contava a história de um tal de Gilliatt, pescador jovem que vive à beira-mar, na ilha de Guernsey, no litoral da França. (Onde Hugo morou durante seu exílio.)  Desde o começo achei o lugar fascinante, porque tinha uma pequena elevação de terra que, na maré alta, ficava submersa. Quando a maré baixava, a terra emergia, e nela havia um rochedo escavado em forma de cadeira, uma cadeira que os locais chamam de “Gild-Holm-‘Ur”. 
 
Gilliatt tinha o costume de sentar nessa cadeira e ficar olhando o oceano, enquanto a água da maré montante subia pouco a pouco, molhando seus pés, depois suas pernas... E esta cena se repete tragicamente no final do livro. (Não li o livro todo: outro costume salutar que cultivei era o de abrir qualquer livro em qualquer página e começar a ler em qualquer ponto, para ver se entendia e se gostava.) 
 
Nesse tempo eu já estava escolado em romances espantosos de ficção científica e de terror. Já sabia quem eram Drácula e Frankenstein, então... “sou um ser humano, e nada que seja sobre-humano me é estranho.”  
 
A certa altura do livro de Victor Hugo ele introduz, no mundo rústico de Gilliatt, duas personagens, que dão nome ao capítulo: Durande e Déruchette. Quem serão essas duas? Vamos ver como elas entram no livro, na tradução catita de Machado de Assis. (Que não sei se é a mesma do livro da foto, o volume que li na época.) 
 
(...)
LIVRO TERCEIRO
Durande e Deruchette.
 
I
GARRULICE E EFLÚVIOS
 
Deruchette tinha as mais lindas mãozinhas deste mundo, e pés iguais às mãos, quatro pezinhos de mosca, dizia mess Lethierry. Tinha em si a bondade e a doçura: o tio Lethierry era toda a sua família e riqueza: o trabalho dela, era deixar-se viver; tinha por talento algumas canções, por ciência a beleza, por espirito a inocência, por coração a ignorância; tinha a graciosa indolência crioula, mesclada de travessura e de viveza, a jovialidade traquinas da infância com um pendor à melancolia, vestuários um pouco insulares, elegantes, mas incorretos, chapéus de flores todo o ano, fronte ingênua, pescoço flexível e tentador, cabelos castanhos, pele branca com alguns toques arruivados no verão, boca grande e sã, e nessa boca o adorável e perigoso esplendor do sorriso. Eis o que era Deruchette. 
 
Algumas vezes, à noite, após o pôr o sol, no momento em que a noite se mistura com o mar, à hora em que o crepúsculo dá uma espécie de terror às vagas, via-se entrar na barra de Saint-Sampson, ao tumulto sinistro das ondas uma certa massa informe, uma coisa monstruosa que silvava e cuspia, que roncava como uma besta e fumegava como um vulcão, uma espécie de hidra babando espuma e arrastando um nevoeiro, atirando-se sobre a cidade com um horrível movimento de barbatanas e uma goela donde as chamas irrompiam. Era Durande. (...) 
 
Este trecho me marcou porque corresponde a uma certa sensibilidade despertada nos leitores pela literatura fantástica. 

 

(“La Durande”, desenho de Victor Hugo)

 
A “Durande” que Victor Hugo descreve de maneira tão brilhante (ainda mais pelo contraste entre as descrições dos dois parágrafos) é o barco a vapor do Mestre Lethierry, seu ganha-pão. A descrição horrífica e fantasiosa se justifica dramaturgicamente: trata-se de uma pequena ilha no litoral da França, habitada por gente antiga e rude, e “Durande” é o primeiro barco a vapor que eles conhecem, o que justifica o senso de estranheza e medo diante dele. 
 
Ao prosseguir na leitura, entendi aos poucos o que era Durande. Por algumas horas, no entanto, ou minutos, acreditei piamente que se tratava de um monstro real, um monstro misto de dragão e kraken, domesticado pelo Mestre Lethierry, uma criatura viva que convivia com ele e a mocinha. Na minha cabeça de leitor enxerido, não havia separação entre os gêneros literários. Não havia o realismo e o fantástico. Todo livro era uma história, e em qualquer história podia acontecer qualquer coisa. 
 
Os Homens do Mar pode servir, pelo menos nesse trecho, como precursor de um fantástico pré-steampunk, um registro do impacto das transformações sociais e psicológicas produzidas pela chegada de uma nova tecnologia: a máquina a vapor. Hoje, a descrição técnica de Victor Hugo ao longo do livro é considerada pelos críticos como extremamente precisa, e reflete um bom conhecimento de motores a vapor e de engenharia naval.  
 
Durande me veio à mente (e com ela esse aspecto semi-alegórico da máquina a vapor) ao ver uma referência a um livro que não li, mas tem várias traduções brasileiras: La Bête Humaine (“A Besta Humana”, 1889), de Émile Zola.  
 
É um daqueles romances naturalistas em que um certo determinismo biológico e social predispõe um indivíduo ao crime. Jacques Lantier é um maquinista de trem, e no transcurso da narrativa comete alguns assassinatos, pois é sujeito a acessos sádicos onde mistura o desejo sexual e a vontade de matar (principalmente mulheres). 
 
No clímax do romance, em suas últimas páginas, Lantier, depois de mais uma vez escapar à identificação como assassino de outras pessoas, vai pilotar um trem cheio de soldados bêbados rumo à fronteira, pois acaba de ser declarada a guerra entre a França e a Prússia. 
 
Já era noite, quando os soldados embarcaram, como carneiros, em vagões de gado. Tábuas haviam sido pregadas às paredes para servir de bancos, e os homens se amontoavam ali, superlotando os vagões; uns em pé, uns sentados sobre os outros, apertados, sem poder mexer um braço. (trad. BT) 
 
Depois que o trem parte, Lantier se envolve numa briga com o foguista, Pecqueux, cuja namorada ele havia seduzido. Os dois brigam, se engalfinham na cabine, caem do trem, são despedaçados... e o trem segue a toda velocidade, sem ninguém no comando. (Este final catastrófico foi modificado por Jean Renoir em sua adaptação cinematográfica de 1938.) 



(Jean Renoir, La Bête Humaine, 1938)
 
 
A enorme massa, com dezoito vagões apinhados de homens como gado humano, cruzava os campos desertos emitindo um rugido contínuo; e esses homens que caminhavam para o massacre estavam cantando, cantando a plenos pulmões, fazendo um tal clamor que podia ser ouvido por cima do barulho das rodas. 
 
Chefes de estação e telegrafistas se desesperam, mandando ordens para que todos os trens das próximas estações possam se refugiar em algum desvio e permitir a passagem do trem enlouquecido. 
 
Quem ligava para as vítimas que a máquina teria esmagado em seu trajeto? Ela não ia rumo ao futuro, apesar de tudo, indiferente ao sangue derramado? Sem guia, no meio da escuridão, como um animal cego e mudo que alguém libertou por entre a morte, ela rodava e rodava, carregando sua carne de canhão, cheia daqueles soldados que, embrutecidos pelo cansaço e pela bebida, não paravam de cantar. 
 
O livro termina assim, interrompendo-se antes do desenlace inevitável. A “besta humana” do título, ao longo da novela, era Jacques Lantier, o maquinista sádico e assassino; nestas cenas finais, esse epíteto pode caber ao trem que ele pilotava, e que agora se transforma numa máquina insensível, feroz, cheia de gente e matadora de gente, rumo à guerra que se inicia. Homens que agem como máquinas assassinas, e máquinas que parecem adquirir um espírito assassino próprio. 
 
Na época de Zola, o trem a vapor era um símbolo recente do poder e da ousadia do Homem, um ser de alta tecnologia que a essa altura já adquirira dimensões mitológicas.