domingo, 13 de junho de 2010

2145) Os 10 Mandamentos do Ateu (22.1.2010)



Recolhi na Internet esta série de mandamentos, atribuídos a Richard Dawkins em seu livro Deus, um Delírio. (Em: http://bit.ly/5X3GFM) Confesso que não fui à fonte checar a procedência. O livro de Dawkins nunca me atraiu, pelo tom desaforado com que ele tratou, em entrevistas, a idéia de Deus e as religiões em geral. Vá lá que o sujeito seja ateu, mas daí a insultar o Deus dos outros... Quê que tem que as pessoas acreditem em Jesus, em Jeová, em Allah, desde que isso lhes faça bem, e as faça querer o bem dos demais? Por mim, está ótimo. Eu julgo uma crença pelo comportamento dos seus crentes.

Para explicar a razão de ser do Universo, da Terra e da vida humana, acho que as Ciências têm dado explicações bastante satisfatórias, e não vejo necessidade de outras. O que o Cristianismo nos fornece de mais importante é um humanismo, um modo de ver e considerar as outras pessoas como se fossem parte de nós mesmos. É a velha parábola do sujeito que vem andando na estrada, vê um mendigo com a perna quebrada, bota-o nas costas e leva-o até a cidade mais próxima. Lá, alguém lhe pergunta: “Não é muito pesado?”, e ele diz, “Não, é meu irmão”. Era um mero mendigo anônimo; mas o viajante o considerava um irmão, um semelhante, um igual a si. Eu diria (se não parecesse meio herético) que esta noção de igualdade é uma visão científica do ser humano. Somos todos iguais, biológica e socialmente, e temos o dever moral de ajudar aos que precisam.

Com pequenas ressalvas, é esse o espírito científico-cristão que pode ajudar as pessoas a tomarem decisões difíceis. E grande parte dele está contido no decálogo abaixo, atribuído a Dawkins:

“1) Não faça aos outros o que não quer que façam com você. 2) Em todas as coisas, faça de tudo para não provocar o mal. 3) Trate os outros seres humanos, as outras criaturas e o mundo em geral com amor, honestidade, fidelidade e respeito. 4) Não ignore o mal nem evite administrar a justiça, mas sempre esteja disposto a perdoar erros que tenham sido reconhecidos por livre e espontânea vontade e lamentados com honestidade. 5) Viva a vida com um sentimento de alegria e deslumbramento. 6) Sempre tente aprender algo de novo. 7) Ponha todas as coisas à prova; sempre compare suas idéias com os fatos, e esteja disposto a descartar mesmo a crença mais cara se ela não se adequar a eles. 8) Jamais se autocensure ou fuja da dissidência; sempre respeite o direito dos outros de discordar de você. 9) Crie opiniões independentes com base em seu próprio raciocínio e em sua experiência; não se permita ser dirigido pelos outros. 10) Questione tudo.”

Eu diria que os cinco primeiros são mandamentos cristãos e humanistas, e os cinco últimos são mandamentos científicos, de natureza racionalista e intelectual (no melhor sentido destas palavras). Problema é achar um sujeito capaz de colocar tudo isto como prática de vida, e não como assunto de colunas de jornal. Mas não custa nada tentar.

2144) Tecnologias obsoletas (21.1.2010)



(retrofizz.com)

Um artigo no websaite IDG NOW enumera dez tecnologias obsoletas que “devem ser esquecidas” em 2010, e explica por quê. Pra mim não ficou muito claro se esse “devem ser esquecidas” é para ser lido como uma profecia ou como um mero desejo do redator (“dez tecnologias que bem que podiam ser esquecidas...”). O autor do texto, Mike Elgan, começa sua lista com os aparelhos de fax, que, segundo ele, se tornaram obsoletos quinze anos atrás. De fato, o último rolo de papel de fax que eu comprei foi em 2007. Não uso nunca; mas como meu aparelho é conjugado com telefone e secretária eletrônica, não tenho porque livrar-me dele. Inclusive porque quando a Internet dá pane (sim, isso existe) tenho a opção de receber ou mandar um texto urgente por fax.

Elgan diz que locadoras de DVDs não têm mais razão de existir: “Filmes não são mais do que arquivos digitais. Você pode baixá-los ou receber um disco por correspondência”. Neste ponto eu discordo. Nem todo mundo ainda baixa filmes na Internet – eu pelo menos não o faço. E ir à locadora, pelo menos na rua em que moro, é um pretexto para encontrar os vizinhos, bater papo, comentar este ou aquele filme, e no fim alugar um. Por mais que existam twitters e orkuts e facebooks, este tipo de contato humano não precisa ser substituído.

Taí uma pedra que vive sendo cantada e não bateu: CDs de música. Para Mike Elgan, “os CDs musicais funcionam perfeitamente, mas não possuem nenhuma vantagem significativa sobre mídia que pode ser baixada, como arquivos MP3. CDs são um problema para o meio ambiente, são frágeis e inconvenientes para transporte. É possível migrar para um acervo digital, baseado em arquivos, com funções de busca, backups e que possa ser carregado de qualquer lugar.” Todo mundo está fazendo isso, mas bote mais uma década para o CD sumir.

Uma informação útil é a de que o “www” ao digitar um endereço de Internet já está tão obsoleto e redundante quando o “http”. Diz Elgan: “Os administradores de rede podem escolher se um endereço precisa tecnicamente de um www. Mas os navegadores complementam essa informação mesmo quando ela não é digitada. É por isso que o www como parte de um endereço, seja impresso em um cartão de visita ou digitado no navegador, é sempre desnecessário. Paramos de usar o HTTP:// anos atrás, e também é hora de parar de usar o www.” Vou botar em prática pra ver se é mesmo.

O artigo ainda condena à obsolescência coisas como cartões de visita, acendedores de cigarro nos automóveis, controles remotos (cuja função será absorvida pelos smartphones), telefones fixos e cadastros redundantes onde precisamos digitar cidade, estado e CEP (a informação sobre cidade e estado já está contida no número do CEP). Ele questiona também o rádio via satélite, porque a Internet já provê isto, mas é o tipo da previsão apressada, porque não faria sentido abrir mão de um canal só porque apareceu outro. Sempre haverá ocasiões em que o canal antigo será necessário.

2143) O sobrevivente (20.1.2010)



(Tsutomu Yamaguchi)

Conta-se por aí uma história a respeito dos dois grandes incêndios de edifícios em São Paulo nos anos 1970, o do Edifício Andraus em 1972 (16 mortos e 330 feridos) e o do Joelma em 1974 (187 mortos e centenas de feridos). Ao que se diz, no incêndio do Andraus um helicóptero veio na direção da cobertura do prédio, onde se amontoavam centenas de pessoas, e um bombeiro salvou entre várias outras um homem, que agarrou e levou para lugar seguro. Três anos depois, quando o Joelma pegou fogo, o helicóptero e o bombeiro partiram para o salvamento, e a certa altura, quando o bombeiro desceu sobre a cobertura, deparou-se com o mesmo sujeito que havia salvo no Andraus – e acabou salvando-lhe a vida pela segunda vez. Imagino que isso não passe de uma lenda urbana; as possibilidades disso acontecer são mínimas. O bombeiro tudo bem, porque era seu ofício. Mas as possibilidade de que um mesmo sujeito estivesse nos dois prédios, e acabasse sendo salvo pelo mesmo bombeiro... No dia que eu conseguir acreditar numa história assim eu me animo a apostar na Mega-Sena.

Mais incrível, contudo, e verdadeira até a medula, é a história de Tsutomu Yamaguchi, um japonês falecido nos primeiros dias de 2010, aos 93 anos. Yamaguchi estava em viagem de negócios na cidade de Hiroshima em 6 de agosto de 1945, quando caiu sobre a cidade a bomba atômica conduzida pelo piloto Tibbets no bombardeiro Enola Gay. A catástrofe que se espalhou pela cidade é de conhecimento público. Yamaguchi sofreu graves queimaduras, foi levado a um hospital e no dia seguinte conseguiu ser trasladado de volta para a cidade em que morava. Ganha uma assinatura grátis da minha coluna quem adivinhar qual era a cidade dele. Isso mesmo, Nagasaki, que três dias depois foi explodida por uma segunda bomba atômica. E Yamaguchi escapou novamente.

Embora haja um grande número de pessoas que sobreviveram a cada um desses bombardeios, Yamaguchi é oficialmente reconhecido como a única pessoa no mundo que sobreviveu às duas únicas bombas atômicas já detonadas durante uma guerra contra alvos humanos. Não sei quantos anos se passarão até que um segundo indivíduo possa disputar esse título. O que há de mais curioso em sua história é a sua aura de predestinação, tanto a negativa quanto a positiva. Yamaguchi morava em Nagasaki (as duas cidades ficam a cerca de 300km uma da outra). Estava há três meses fazendo um trabalho em Hiroshima, e ia voltar para casa justamente no dia 6. Antes de deixar Hiroshima ele percebeu que havia esquecido um objeto de que precisava e voltou para pegá-lo; foi então que a bomba caiu.

Levado de volta para Nagasaki, ele, mesmo ferido, foi trabalhar no dia 9, e estava contando aos colegas o que tinha acontecido quando a segunda bomba caiu, Desta vez, ele não sofreu novos ferimentos, mas o caos resultante agravou sua condição física. É como se duas forças estivessem em jogo uma empurrando-o para ficar em baixo das bombas, e a outra protegendo-o.


2142) “O Conforto dos Estranhos” (19.1.2010)



The Comfort of Strangers é um romance de Ian McEwan, escritor inglês cujo livro mais conhecido aqui no Brasil parece ser Desejo e Reparação (Atonement), que não li. Acabei lendo este, que é de 1990, porque assisti algum tempo atrás o filme feito por Paul Schrader, ambientado em Veneza e impregnado daquilo que Macalé chamava de “morbeza romântica”, a mistura perigosa de morbidez com beleza. O livro de McEwan é um romance de crime, uma dessas histórias em que uma situação ominosa vai se desenhando aos poucos, com a implacabilidade de uma tragédia grega ou de dois petroleiros em rota de colisão.

Colin e Mary são um jovem casal inglês fazendo turismo numa cidade histórica européia, que em momento algum é identificada (o autor não diz sequer em que país a história acontece). Vários detalhes (canais, barcos, uma praça principal) sugerem Veneza, e foi em Veneza que Paul Schrader ambientou o filme; mas um dos charmes do livro é o fato de que sua Veneza é implícita, sugerida nas entrelinhas. Em momento algum o autor fornece qualquer nome próprio (da cidade, dos pontos turísticos, das pessoas, das ruas); em nenhum momento ele diz que ali se fala italiano; mas mesmo quem não tenha visto o filme irá pressentindo a cada capítulo que tudo aquilo ocorre em Veneza.

Essa cidade onipresente, invisível, nunca nomeada mas inconfundível, é a imagem que melhor exprime o funcionamento desse romance em que “a coisa principal” nunca é dita às claras, embora seja desvelada o tempo todo. Porque Colin e Mary logo conhecem um casal mais velho, Robert e Caroline, e entre eles se estabelece uma relação mórbida de sedução e repulsa que resulta num final cruel, inexplicável e arrepiante. Sabemos, ao terminar a leitura, o que aconteceu, e temos uma idéia aproximada de como deve ter acontecido. Podemos até mesmo arriscar um “por quê”, uma explicação psiquiátrica para o que sucede. Depois de nove capítulos de preparação, o capítulo final não nos traz uma surpresa (é uma daquelas histórias que a gente lê pensando “isso não vai acabar bem”), mas um mistério.

O Conforto dos Estranhos pertence ao sub-gênero que chamo de “Pesadelo Turístico”: histórias de viajantes que vão para lugares distantes em busca e excitação e aventura, e encontram o horror. (Lembrei de Song of Kali de Dan Simmons, Don’t Look Now de Daphne du Maurier, O Caminho do Poço Verde de Rubem Figueiredo, o filme Kalifornia de Dominic Sena.) Mexe com profundidades inquietantes da mente humana, como certos livros de Ruth Rendell ou de Patricia Highsmith. Existe no casal mais velho a malignidade de quem vive em função de um vício torturantemente cultivado. E existe no casal mais jovem a atração pelo abismo, o “demônio da perversidade”. Julio Cortázar já observou que a Vitimologia é uma ciência tão legítima quanto a Criminologia, porque em muitos casos vê-se na relação entre criminoso e vítima uma “aura de fatalidade e consentimento”.