domingo, 10 de agosto de 2014

3574) Utopias totalitárias (10.8.2014)




(ilustração: Alessandro Bavari)


Embora o conceito e o nome tenham nascido no século 16 com a Utopia de Thomas Morus (1516), a utopia literária é um gênero típico do século 19. Antes disso, as utopias costumavam ser satíricas, ou meras fantasias literárias. No século 19 começaram as utopias científicas. O marxismo é produto desse tempo em que, num dos auges periódicos do capitalismo, a Razão mobilizou todos os seus instrumentos conceituais para criar o paraíso social na Terra.

Uma das utopias brasileiras mais curiosas é O Reino de Kiato (1922) de Rodolfo Teófilo, sobre o qual já falei aqui (http://tinyurl.com/qbomjfl). É a típica utopia positivista, baseada na higiene, no civismo, na obediência, na pontualidade, na estrita obediência às leis vigentes, na organização administrativa e burocrática, na tecnologia, na padronização das idéias e do comportamento.  Foi esse livro que me veio à memória ao ler Viagem (1954), o relato póstumo de Graciliano Ramos sobre sua visita à URSS no último ano de vida de Stálin.

Em Kiato, a história é narrada pelo ponto de vista de James Paterson, um visitante que vai parar naquele reino por acaso e que começa a se inteirar da revolução que pôs no trono o Rei Pantaleão III, a quem Kiato deve sua indescritível prosperidade e sua estabilidade política. Kiato, fantasia utópica, contemporânea de Stálin, não é uma república comunista, mas prefigura muitos dos aspectos que em 1922 (ainda em plena guerra pós-revolucionária) mal começavam a ser implantados na URSS.

John Paterson e Graciliano Ramos passeiam pelas avenidas, pelas fábricas, pelas praças e pelos centros cívicos de Kiato e da Rússia, conduzidos por cicerones que lhes explicam o impecável funcionamento das instituições burocráticas, a assiduidade infalível dos trabalhadores, o entusiasmo dos cidadãos diante de qualquer chance de manifestar sua lealdade ao regime. Não se vê um mendigo, um trombadinha, um monte de lixo, uma droga. As bibliotecas estão cheias de coleções encadernadas.

Toda utopia é um sonho centralizado, o mundo reformatado do ponto de vista de uma só idéia, um mundo onde tudo é possível para a mente que comanda. Já a democracia é esta bagunça que conhecemos, eleições, falcatruas, manifestações, todos mandam e ninguém obedece, grupos se alternam no poder, cada um desmonta o que o outro começou a construir, todos reclamam, saem à rua, quebram coisas. Não admira que em plena democracia muita gente sonhe com utopias centralizadas, assépticas, eugênicas, um povo sem pobres, um povo de operários bem vestidos e bem alimentados que leem os livros impressos pelo Estado e que vão dormir pontualmente às dez da noite quando soam as sirenes.