(Isabella
Rossellini e David Lynch, Veludo Azul)
Talvez a reflexão mais famosa sobre a relação entre
diretores de cinema e seu elenco seja a que o pessoal atribui a Alfred
Hitchcock: “Os atores de cinema são gado.”
Ora, tudo que cerca Hitchcock é cheio de nuances, e de
reviravoltas divertidas. Conta-se que ele, questionado sobre esta frase, defendeu-se:
“Eu nunca disse que os atores são gado. Disse apenas que devem ser tratados como gado.”
Hitchcock tinha (pelo que me consta) bons relacionamentos
com alguns atores de filmes seus, como Cary Grant e James Stewart. Com as atrizes
a coisa era diferente. O diretor tinha um indisfarçável fetiche por mulheres
loiras e lindas. Gostava de dirigi-las em cenas onde aquela aparência fria,
distante, aristocrática era arrebatada pela ação de um erotismo interno, e elas
“se derretiam suaves, neve no vulcão”, como na canção de Chico César.
Com essa mistura, ele compôs cenas memoráveis com Kim
Novak, Eve Marie Saint, Tippi Hedren, Grace Kelly, Ingrid Bergman...
Quem mais sofreu, ao que parece, foi Tippi Hedren. O
livro de Camille Paglia sobre Os Pássaros
(Ed. Rocco) relata algumas coerções psicológicas (vá o eufemismo) por que a
atriz passou durante as filmagens (e em Marnie
a história se repetiu).
(Tippi Hedren em Os Pássaros )
O problema com Hitchcock não era somente o machismo, era
o fato de que o cinema era para ele um teatro de marionetes. Ele concebia
complicadas coreografias entre atores, cenários e câmera, e finalizava essas
coreografias na mesa de montagem. Durante esse processo, ficava muito
impaciente quando alguém (homem ou mulher) não obedecia suas marcações exatas,
precisas, e que não necessitavam de justificativas (pelo menos na cabeça dele).
Pensei nisto recentemente lendo os depoimentos de algumas
atrizes sobre seu trabalho com David Lynch, morto recentemente. Sou admirador
dos filmes de Lynch desde que vi O Homem
Elefante por volta de 1981, num cinema no centro do Recife. Gosto de todos,
até dos que são (aos meus olhos) cheios de defeitos, ou de
coisas-que-eu-preferiria-ver-filmadas-de-um-jeito-diferente.
(Naomi Watts e David Lynch)
Ao longo dos anos vi muita gente falando da experiência
de filmar com Lynch, e parece uma unanimidade dizer que ele conseguia
transformar o set de filmagem num ambiente agradável, animado, respeitoso, e
até mesmo “leve” – se é que isto é possível num trabalho tão complicado, tão
sujeito a problemas.
E não é elogio póstumo com missa-de-corpo-presente. Dizem
isso do estilo de filmar de Lynch há pelo menos vinte anos. O que é tanto mais
notável quando se sabe que seus filmes, fatalmente, em algum momento, fazem um
mergulho, tenso e sem concessões, em algumas regiões cruéis, violentas e
doentias da mente humana. (E do corpo humano.)
É fácil ter um “set” de filmagem descontraído e de bom
humor quando se está filmando uma comédia com Billy Crystal ou um filme-de-amor
para adolescentes. Mas filmar histórias como Veludo Azul ou Twin Peaks,
com seu teor de crueldade física e morbidez mental, requer um talento especial.
É preciso manter o nível de tensão necessário à empreitada, e ao mesmo tempo conseguir
que a equipe não saia dali massacrada ou deprimida. É arte, mas é carrêgo.
(Laura Dern e David Lynch)
Depoimentos de atrizes sérias e ótimas (pelos meus
critérios) como Laura Dern, Naomi Watts e Isabella Rossellini mostram o quanto
David Lynch conseguia conduzir todo mundo ao longo dessa corda-bamba sem que
ninguém caísse.
Deprimidas ou massacradas saem muitas equipes (elenco +
técnicos) dos sets de filmagem de várias obras-primas. Filmes que chegam a esse
nível de qualidade porque são realizados por diretores exigentes,
perfeccionistas, geniais, dotados de “uma visão”, impiedosos para com erros ou
limitações.
(Shelley Duvall em O Iluminado)
São fofocas de Hollywood, mas ainda hoje se fala nas
centenas de takes que Stanley Kubrick
(cujos filmes eu admiro tanto quanto os de Lynch) exigia de seus atores. Li
alguns meses atrás, por ocasião da morte de Shelley Duvall, depoimentos dela
sobre a via-crucis por que passou para filmar O Iluminado. Mais madura,
mais tranquila, Shelley tentava minimizar o sofrimento por que passou nas mãos
de Kubrick, mas as histórias que se contavam na época são assustadoras e
plausíveis.
Não só ela – até um homão hardboiled como George C. Scott foi obrigado a refazer dezenas de
vezes os mesmos takes, que ele, ator
brechtiano, queria fazer a sério, e Kubrick queria ver na chave mais grotesca
possível. Diz-se que ao ver Dr.
Fantástico pronto, Scott arrancou os cabelos ao ver que Kubrick jogara no
cesto de lixo seus esforços mais sérios e transformou o General Buck Turgidson
num dos personagens mais caricatos de sua filmografia.
(George C. Scott em Dr. Strangelove)
Claro que Kubrick sabia o que estava fazendo, e tinha o
direito de fazê-lo. Mas trabalhar com ele era provavelmente algo que todo mundo
morria de vontade antes, e suspirava de alívio depois.
Kubrick era do time de Hitchcock. Cinema é o que vai
aparecer na tela, e se for preciso passar a estrela principal num
moedor-de-carne para obter esse efeito, traga-se o moedor.
Também não é preciso fazer como (num caso muito discutido
em anos recentes) Bernardo Bertolucci e Marlon Brando, que nas filmagens de O Último Tango em Paris combinaram entre
si como seria a cena do estupro da personagem de Maria Schneider, e a atriz, jovem
e pouco experiente, deixou-se levar. (E arrependeu-se publicamente depois.)
(Marlon Brando e Maria Schneider, em O Último Tango em Paris)
Já conversei com diretores que defendem, com restrições,
esta prerrogativa de poderem recorrer a diferentes métodos para “extrair do
ator uma emoção verdadeira”.
Deixar o ator/atriz em insegurança; irritar; ameaçar;
ofender; fazer chantagem emocional; confessar uma paixão (verdadeira ou falsa);
ridicularizar a pessoa na frente de toda a equipe...
E quando a pessoa estiver no estado emocional desejado,
pegar o megafone e gritar: “Vamos lá! Cena 132, take 1!... Rodando!...”
Tudo vale a pena quando resulta numa boa cena, diria
Fernando Pessoa, se fosse roteirista. O que acontece é que existem estirpes
diferentes de diretores. Eu costumo classificá-los em três tipos principais
(estas simplificações são sempre toscas, é só para dar uma idéia):
a)
Diretor de Imagem: para quem o que mais
importa é botar na tela imagens perfeitas, originais, espantosas, não importa o
trabalho que isso dê. Não é apenas o “filme com fotografia bonita”, é também o
filme com estética própria, o filme que inventa uma nova linguagem, o filme
fundado em efeitos especiais... Muitos são diretores que vieram da área técnica
(câmera, etc.).
b)
Diretor de História: o que quer contar uma
história, e tudo deve colaborar com essa história. A narrativa é o centro do
filme, não apenas pela originalidade do enredo, mas pelas idéias que essa
enredo provoca. É um tipo de cinema mais próximo da Literatura; muitos
roteiristas se tornam diretores, atuam nesta faixa, dizem nas entrevistas: “Sou
um contador de histórias”.
c)
Diretor de Atores: é o diretor para quem
o trabalho com o elemento humano é o centro de tudo; muitas vezes são diretores
que têm também uma carreira no teatro. Quando dão um close-up em alguém, decerto estão preocupados com a lente, a
iluminação, e tudo o mais: mas, principalmente, com o que se está se passando
naquele instante na cabeça do ator/atriz.
Claro que um bom diretor (nem precisa ser genial) mistura
todas essas coisas. Precisa fazê-lo, se quer dirigir. Mas já vi dezenas de
diretores dizendo coisa do tipo: “Eu quero é contar uma boa história com
perfeição, o elenco pode ser qualquer um, a imagem precisa apenas ser correta e
sem erros.”. Já vi depoimentos dizendo: “Me dê um elenco de amigos com quem já
trabalhei, eu invento uma história em uma semana, e eles vão criar todo o
resto.”
Lynch dirigiu O
Homem Elefante (1980) aos 34 anos. Teve que se mudar para a Inglaterra e
dirigir feras como Sir John Gielgud e Anthony Hopkins, quando seu currículo
incluía apenas o bizarríssimo Eraserhead (1977).
(David Lynch e Anthony Hopkins em O Homem Elefante)
Ele já fez vários relatos do pesadelo que foi esta
experiência, até porque Hopkins detestou trabalhar com ele, os dois não
coincidiam em quase nada, mas quem bancou Lynch do começo ao fim foi Mel
Brooks. O produtor acreditou no jovem inexperiente, comprou todas as brigas,
não permitiu nenhuma interferência dos financiadores, e a verdade é que The Elephant Man acabou recebendo oito indicações ao Oscar.
(Eu vejo com certo desdém essa fixação da turma do cinema
pelo tal do “Oscar”, mas enfim, ele rende dinheiro, e fica o registro.)
Há diretores que, não importa o quanto se preocupem com a
fotografia ou com a amarração do roteiro, parecem gostar de entrar em sintonia
com seus atores, quase numa ligação telepática. Uma ligação que envolve
memória, afeto, improviso, confiança mútua. O que pode ser um bom antídoto para
a tendência, no cinema de hoje (tanto o cinemão industrial quanto o cinema
descolado-alternativo), para o estilo “arrancar uma interpretação boa dessa
turma, nem que seja no chicote”.
(Federico Fellini e Marcello Mastroianni, em Oito e Meio)