quarta-feira, 7 de novembro de 2018

4402) Lembranças de Zé Limeira (7.11.2018)




De vez em quando eu digo a alguém que sou de Campina Grande e a pessoa diz: “Ah, então me fala alguma coisa sobre Zé Limeira... Ele era como?!”

Eu sou velho, mas pegue leve. Zé Limeira, de acordo com o indispensável Dicionário Bio-Bibliográfico de Repentistas e Poetas de Bancada, dos meus mestres e amigos Átila Almeida e José Alves Sobrinho, faleceu no já longínquo ano de 1955.

Quem sabe maiores detalhes sobre a vida real dele é o poeta Astier Basílio, que está preparando uma biografia de Orlando Tejo. Tejo foi “O Homem Que Viu Zé Limeira”, conforme o título do excelente documentário de Maurício Melo Júnior, que pode ser assistido aqui:

Limeira ficou conhecido como “o Poeta do Absurdo” por versos cheios de disparates impecavelmente rimados e metrificados como estes:

Eu me chamo Zé Limeira
de Lima Limão Limança;
a estrada de São Bento
bezerro de vaca mansa...
Valha-me Nossa Senhora,
tão bombardeando a França!

Eu já cantei no Recife
perto do Pronto Socorro:
ganhei duzentos mil-réis
comprei duzentos cachorro;
ano passado eu morri
mas esse ano eu não morro.

Eu só gosto dessa moça
porque tem vegetação,
porteira de pau-a-pique,
três pneus de caminhão,
peido de jumenta ruça...
e haja chuva no Sertão!

Eram versos que, nos meus 10, 11 anos, meu pai recitava para gargalhada geral nas noitadas boêmias do terraço da nossa casa no Alto Branco.

Orlando Tejo transformou Limeira em mito com seu livro Zé Limeira, Poeta do Absurdo (1973). É um livro irregular e brilhante, talvez o mais criativo já escrito sobre a poética dos cantadores. O “livro sobre cantadores” geralmente se desenvolve na chave do relato jornalístico e documental (registro de versos), com uma ou outra incursão descritiva do ambiente, ou rememoração lírica.

Tejo projetou nesse gênero tão severo uma dose inesperada de humor, doidice e inverossimilhança. E ao mesmo tempo uma dose de prosa de ficção, porque quando começa a contar um fato o homem se entusiasma, e a prosa se apossa dele e leva a história pra onde bem entende.

O capítulo 11 registra muitos versos e os encaixa num leve romancear que dá mais vida ao relato. Em muitos trechos de Tejo, a gente chega a se esquecer e a ler aquilo como um romance. Isso não ocorre nos relatos de cantoria. Nem mesmo dos que mais caprichavam na parte narrativa, como F. Coutinho Filho ou Leonardo Mota. Já Orlando Tejo, nesses trechos, se emparelha com Oliveira Paiva e sua descrição de festejos de fazenda, em Dona Guidinha do Poço.

O capítulo 13, “Pela última vez em Campina”, reconstitui uma longa cantoria entre Limeira e José Gonçalves, num cabaré da feira, num belo momento da prosa urbana. De fato, um leitor preguiçoso dos folcloristas tradicionais se espantaria com este parágrafo de Tejo, descrevendo o amanhecer do dia, quando os cantadores começam a se despedir:

A cidade despertava ao berro metálico das sirenes, o operariado – termostato da máquina do desenvolvimento – deslocando-se dos subúrbios para a faina do dia-a-dia, lotando os coletivos, apinhando as calçadas, chegando para as fábricas. Era o atendimento à voz das chaminés que na sua multiplicidade saturavam os céus da metrópole dos sertões nordestinos, turvando de progresso o alto da paisagem serrana.

Tejo retrata e recompõe a cantoria urbana com a mesma fluência com que resgata e reafirma o perfil da cantoria de sítio, a cantoria de vilarejo. Não sei se esse parque industrial todo já fazia parte da Campina Grande pré-1955, ou se isso já era o Tejo dos anos 1970 finalizando o livro e se entusiasmando ao teclado; pouco importa. A cantoria hoje é assim.

A parte com que eu implico no livro de Tejo é o capítulo 5, “O Poeta do Absurdo e o Absurdo dos Poetas”, quando ele começa a implicar com a poesia modernista em geral. Como poeta, Tejo era um híbrido de parnasiano e cordelista. Para improvisar um soneto bastava que lhe botassem lápis e papel na frente. Se fosse soneto de patifaria, melhor ainda.

Nessa parte do livro ele adota a tática de, para elogiar as doidices de Limeira, mostrar que os poetas ditos eruditos eram autores de disparates maiores do que os do cantador do Teixeira. E nessa varrida não escapam os surrealistas franceses nem os concretistas paulistanos. Tejo, com os bigodes eriçados de um polemista profissional, desce o chanfalho numa enorme lista de exemplos modernistas.

Zé Limeira não precisa ser comparado a nada disso. Tem sua receita personalíssima e ao mesmo tempo universal. Para imitá-lo basta ir um pouco nessa direção: a fluência na criação instantânea de neologismos, da colagem de elementos díspares, da justaposição do ilustre ao plebeu. A presteza e a articulação melódica do verso se sobrepondo a qualquer longínqua intenção de fazer sentido.

Limeira lembra alguma coisa de Marc Chagall, de Bispo do Rosário, de Gordurinha.

Me lembro de versos recitados por Dona Joana, uma mulher que ajudava minha mãe no trabalho doméstico e sabia muitos versos como este, que decorei:

Peguei na cobra jibóia
com dez dias de viagem;
pisei na ponta da vagem
tirei vinte e cinco jóia;
aonde chove e não móia
lá na várzea da agurita
onde os pombo canta e grita
dá volta no cotovelo:
quero um cacho de cabelo
da morena mais bonita.

Não sei o autor do verso, mas Limeira está todo aí. Tem a imagem visual marcante: o cara pisando a ponta do rabo de uma cobra de encontro ao chão, enquanto estica o corpo dela, abre-o (com uma faca?) e dali retira jóias como caroços de uma vagem. Tem a palavra absurda que pode ser corruptela e pode ser invenção (agurita). Tem uma Natureza surpreendente como a de um mundo de desenho animado (essa chuva, esses pombos). E tudo isso para glosar um mote bem lugar-comum, daqueles que geralmente só inspiram versos pedestres e sem imaginação.