terça-feira, 14 de setembro de 2010
2346) Drummond: Lagoa (14.9.2010)
Este é um poema despretensioso e discreto do livro Alguma Poesia de Drummond, que está completando 80 anos de lançamento. Nunca lhe dei maior atenção, certamente porque o via ladeado por poemas de muito maior peso e ressonância, e isto reflete uma distorção no conceito estético de “livro de poemas”. Em tese, um poema devia ser uma obra de arte autônoma, podendo (e até devendo) ser lido à revelia de todos os demais poemas do autor. No melhor dos mundos, livros de poemas só existiriam quando esses poemas fossem seriais, fossem mutuamente necessários para existir e significar, como é o caso (com diferentes perfis) de livros como A Educação pela Pedra de João Cabral, Doze Noturnos da Holanda de Cecília Meireles, etc. Para que um poema fosse lido, respeitado e valorizado no que é, cada um devia ser publicado sozinho, num livro à parte. O que, é claro, é impraticável. (Era. O mundo está mudando. Eletronicamente, a gente pode publicar as coisas no formato que bem entender.)
“Lagoa” tem uma linguagenzinha tão beabá e direta que soa, no livro do poeta de 28 anos, como a voz de um menino amuado: “Eu não vi o mar. / Não sei se o mar é bonito. / Não sei se ele é bravo. / O mar não me importa”. Por que um poema sobre uma lagoa começa negando o mar? Talvez porque entre os mineiros exista uma inveja do mar do mesmo jeito que entre as mulheres, segundo Freud, existe uma inveja do pênis. Não ter um mar é, por alguma razão oceânica, amniótica e profunda, não ter algo essencial à vida, e cada um se compensa disto como pode (os bolivianos, por exemplo, têm lá seu Ministério da Marinha). O menino, casmurro por não ter um mar, dá-lhe as costas.
“Eu vi a lagoa. / A lagoa, sim. / A lagoa é grande / e calma também”. Que beleza essa frase-que-contém-tudo: “A lagoa, sim”. Pronto. O que vem depois é mera ilustração. “Na chuva de cores / da tarde que explode, / a lagoa brilha. / A lagoa se pinta / de todas as cores. / Eu não vi o mar. / Eu vi a lagoa...”
Que lagoa será essa? Alguma lagoa doméstica, por trás dum quintal de Itabira? A da Pampulha, ainda bravia e pré-Juscelino, pré-Niemeyer? Uma lagoa meramente mental? Drummond só se transferiu para o Rio de Janeiro em 1934, mas eu, por vício de contiguidade, sempre li este poema com os olhos da memória na Lagoa Rodrigo de Freitas, que fica a dois ou três quarteirões do mar, protegida por uma selva de arranha-céus ipanemenses. Poucas visões do “meu” Rio são tão belas quanto a que temos ao rodear de carro a Lagoa ao anoitecer, porque os prédios em volta dela acendem-se em luzes azuis, amarelas, violetas, verdes, laranjas, e essas luzes refletem-se no espelho descansado das águas. O roxo do céu, a luz das estrelas, a iluminação branquicenta dos postes de mercúrio e as formas dos morros mudam esse panorama de cem em cem metros. Natureza e civilização fazem uma urdidura de beleza e complexidade urbana. Mar? Quem precisa de mar? Eu sou mineiro.
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