É uma experiência interessante ver um filme, achá-lo magnífico, e vê-lo pela segunda vez 50 anos depois e achá-lo tão bom quanto da primeira.
https://www.youtube.com/watch?v=hpyaz_Vl7Is&t=2683s&ab_channel=CineAntiquaPurple
A história: no Japão medieval, as guerras entre dois
Imperadores simultâneos deixam a população rural esfomeada e cruel. Duas
mulheres sobrevivem no mato saqueando os cadáveres dos guerreiros e trocando as
peças por grãos. Esperam a volta de um homem, filho da mais velha, marido da
mais jovem. Quem aparece, porém, é um vizinho, que escapou da guerra e informa
que o amigo foi morto.
Começa então a sedução do vizinho pra cima da mais jovem.
A sogra fica irritada, acha aquilo uma traição ao filho supostamente morto. A
moça e o vizinho entregam-se todas as noites (quando a sogra adormece) a uma
“paixão tórrida” no meio do mato. Tudo isso enquanto todos morrem de fome e
fazem de tudo para sobreviver.
A história caminha para um desfecho quase sobrenatural
(mas realista), com violência e morte.
Onibaba vale
acima de tudo pela criação de um ambiente fechado (apesar de quase tudo ser a
céu aberto, no matagal), com poucas pessoas, uma ilha de expectativa e terror permanente
no meio de uma guerra brutal. As mulheres são aparentemente indefesas, mas
quando ameaçadas são capazes de matar com ferocidade.
Na trilha sonora a parte mais impressionante são os
gritos ásperos e a percussão daqueles enormes tambores japoneses. Um efeito que
põe no bolso qualquer música orquestral de filme de terror norte-americano.
A música é o equivalente ideal para o som áspero das
pessoas correndo, nuas ou vestidas, no meio do matagal. As cenas do homem e da
mulher, de noite, correndo ao encontro um do outro pelo mato, acompanhados pela
câmera, são de uma selvageria eufórica. Não há sexo “gráfico”; no máximo,
alguns seios de fora. O que há é a brutalidade do sexo, não a brutalidade do
estupro, mas a do sexo buscado, consentido e praticado com voracidade.
É um filme de situação-limite, um mundo incendiado pela
guerra onde as pessoas são capazes de qualquer coisa, literalmente, para
sobreviver. Uma espécie de Mad Max do
século 14.
Alguns críticos de meio século atrás se chocaram com as
cenas de sexo, que hoje considero até pudicas. O que não me assustou naquele
tempo, e me assusta hoje, é a expressão de pessoas com fome. O modo como gente faminta
atulha a boca de comida mais depressa do que pode mastigar. O modo como arranca
com os dentes pedaços de um bicho assado. A concentração com que sacia a fome
acumulada, que mal lhes deixa escutar o que a outra pessoa está falando.
Ariano Suassuna conta, no Folheto XXI de Ao Sol da Onça Caetana (1977), um
episódio pungente (claramente autobiográfico) em que chega à fazenda dos
Quaderna uma família de retirantes esfomeados, e quando lhes servem um prato de
farinha-com-leite e três colheres (enquanto vão buscar dois outros pratos de
comida), o pai velho e a filha pequena disputam a pouca comida.
“Farinha pouca, meu pirão primeiro”, diz o dito popular
citado por Caetano Veloso na canção “Eles” (1967). Um ser humano com fome é um
bicho perigoso.
As primeiras sequências do filme mostram esse clima de
“terra de ninguém”: dois guerreiros feridos que fogem pelo mato, são mortos
pelas duas mulheres, depois são saqueados e têm os corpos nus jogados num
buraco. O primeiro diálogo surge quase aos onze minutos, quando a sogra vai
vender as armas roubadas aos dois.
Kaneto Shindo, ao que se diz, arrastou a equipe inteira
para “o Meio do Nada” e passou três meses filmando, tendo imposto a condição de
que quem desistisse não ganhava um centavo.
A fotografia explora o matagal de susuki, com talos mais altos que uma pessoa, um verdadeiro
labirinto filmado em ângulo ligeiramente oblíquo, dando a impressão de que o
personagem avança num oceano de hastes flexíveis, que o vento açoita e agita
sem parar, criando efeitos sonoros e luminosos.
Isso é destacado pelo uso de uma imagem horizontal, de
proporção extrema, a meu ver muito rara no cinema de hoje.
O clima claustrofóbico lembra outro grande filme japonês
seu contemporâneo, A Mulher da Areia (1964)
de Hiroshi Teshigahara, que explora a relação entre um homem que se vê
aprisionado numa espécie de caverna na areia onde mora uma mulher, num lugar
ermo e cheio de assaltantes.
O roteiro de Kaneto Shindo vai direto no osso. Tem uma
história pouco comum mas de entendimento imediato, situação-limite, paixões
vorazes, duplicidade moral, sutilezas psicológicas, reviravoltas. É uma
história contada basicamente com câmera, ruídos (e música percussiva),
iluminação expressionista, diálogos cortantes.
Fiquei curioso a respeito de outro de seus filmes, A Ilha Nua (1960), sobre as dificuldades
de sobrevivência de camponeses pobres, que dizem ser o melhor.
Kaneto Shindo morreu em 2012, aos 100 anos de idade. Geralmente
escrevia os próprios roteiros. Seu último filme como diretor foi Ichimai No Hagaki, realizado quando ele
tinha 98 anos.