segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

4649) "Onibaba, a Mulher Demônio" (7.12.2020)



É uma experiência interessante ver um filme, achá-lo magnífico, e vê-lo pela segunda vez 50 anos depois e achá-lo tão bom quanto da primeira.
 
Da série “Privilégios da Terceira Idade”.
 
Foi em 1970 (ou 71, pouco importa) que vi em Belo Horizonte Onibaba, a Mulher Diabo (1964) de Kaneto Shindo, provavelmente na sala 35mm da Imprensa Oficial de Minas Gerais, uma sala com uma programação constante de filmes de arte. Foi lá que vi também pela primeira vez Hiroshima Meu Amor de Alain Resnais. Era na rua Rio de Janeiro, em frente ao atual Sesc Palladium (que ocupa o local do cinema homônimo, bem simpático).
 
O filme de Kaneto Shindo está disponível agora, com legendas em português, no YouTube, sob o título Onibaba, a Mulher Demônio. A imagem é de qualidade razoável, mas imagino que valeria a pena ter o DVD ou Blue-Ray para poder admirar o preto-e-branco excepcional da fotografia de Kiyomi Kuroda.

https://www.youtube.com/watch?v=hpyaz_Vl7Is&t=2683s&ab_channel=CineAntiquaPurple
 
A história: no Japão medieval, as guerras entre dois Imperadores simultâneos deixam a população rural esfomeada e cruel. Duas mulheres sobrevivem no mato saqueando os cadáveres dos guerreiros e trocando as peças por grãos. Esperam a volta de um homem, filho da mais velha, marido da mais jovem. Quem aparece, porém, é um vizinho, que escapou da guerra e informa que o amigo foi morto.
 
Começa então a sedução do vizinho pra cima da mais jovem. A sogra fica irritada, acha aquilo uma traição ao filho supostamente morto. A moça e o vizinho entregam-se todas as noites (quando a sogra adormece) a uma “paixão tórrida” no meio do mato. Tudo isso enquanto todos morrem de fome e fazem de tudo para sobreviver.
 
A história caminha para um desfecho quase sobrenatural (mas realista), com violência e morte.



Onibaba vale acima de tudo pela criação de um ambiente fechado (apesar de quase tudo ser a céu aberto, no matagal), com poucas pessoas, uma ilha de expectativa e terror permanente no meio de uma guerra brutal. As mulheres são aparentemente indefesas, mas quando ameaçadas são capazes de matar com ferocidade.
 
Na trilha sonora a parte mais impressionante são os gritos ásperos e a percussão daqueles enormes tambores japoneses. Um efeito que põe no bolso qualquer música orquestral de filme de terror norte-americano.
 
A música é o equivalente ideal para o som áspero das pessoas correndo, nuas ou vestidas, no meio do matagal. As cenas do homem e da mulher, de noite, correndo ao encontro um do outro pelo mato, acompanhados pela câmera, são de uma selvageria eufórica. Não há sexo “gráfico”; no máximo, alguns seios de fora. O que há é a brutalidade do sexo, não a brutalidade do estupro, mas a do sexo buscado, consentido e praticado com voracidade.


É um filme de situação-limite, um mundo incendiado pela guerra onde as pessoas são capazes de qualquer coisa, literalmente, para sobreviver. Uma espécie de Mad Max do século 14.
 
Alguns críticos de meio século atrás se chocaram com as cenas de sexo, que hoje considero até pudicas. O que não me assustou naquele tempo, e me assusta hoje, é a expressão de pessoas com fome. O modo como gente faminta atulha a boca de comida mais depressa do que pode mastigar. O modo como arranca com os dentes pedaços de um bicho assado. A concentração com que sacia a fome acumulada, que mal lhes deixa escutar o que a outra pessoa está falando.
 
Ariano Suassuna conta, no Folheto XXI de Ao Sol da Onça Caetana (1977), um episódio pungente (claramente autobiográfico) em que chega à fazenda dos Quaderna uma família de retirantes esfomeados, e quando lhes servem um prato de farinha-com-leite e três colheres (enquanto vão buscar dois outros pratos de comida), o pai velho e a filha pequena disputam a pouca comida.
 
“Farinha pouca, meu pirão primeiro”, diz o dito popular citado por Caetano Veloso na canção “Eles” (1967). Um ser humano com fome é um bicho perigoso.
 
As primeiras sequências do filme mostram esse clima de “terra de ninguém”: dois guerreiros feridos que fogem pelo mato, são mortos pelas duas mulheres, depois são saqueados e têm os corpos nus jogados num buraco. O primeiro diálogo surge quase aos onze minutos, quando a sogra vai vender as armas roubadas aos dois.


Kaneto Shindo, ao que se diz, arrastou a equipe inteira para “o Meio do Nada” e passou três meses filmando, tendo imposto a condição de que quem desistisse não ganhava um centavo.
 
A fotografia explora o matagal de susuki, com talos mais altos que uma pessoa, um verdadeiro labirinto filmado em ângulo ligeiramente oblíquo, dando a impressão de que o personagem avança num oceano de hastes flexíveis, que o vento açoita e agita sem parar, criando efeitos sonoros e luminosos.
 
Isso é destacado pelo uso de uma imagem horizontal, de proporção extrema, a meu ver muito rara no cinema de hoje.


O clima claustrofóbico lembra outro grande filme japonês seu contemporâneo, A Mulher da Areia (1964) de Hiroshi Teshigahara, que explora a relação entre um homem que se vê aprisionado numa espécie de caverna na areia onde mora uma mulher, num lugar ermo e cheio de assaltantes.
 
O roteiro de Kaneto Shindo vai direto no osso. Tem uma história pouco comum mas de entendimento imediato, situação-limite, paixões vorazes, duplicidade moral, sutilezas psicológicas, reviravoltas. É uma história contada basicamente com câmera, ruídos (e música percussiva), iluminação expressionista, diálogos cortantes.
 
Fiquei curioso a respeito de outro de seus filmes, A Ilha Nua (1960), sobre as dificuldades de sobrevivência de camponeses pobres, que dizem ser o melhor.
 
Kaneto Shindo morreu em 2012, aos 100 anos de idade. Geralmente escrevia os próprios roteiros. Seu último filme como diretor foi Ichimai No Hagaki, realizado quando ele tinha 98 anos.